Flávia Canavarro
Com a experiência de 35 anos de carreira em televisão, cinema e teatro, e atuações memoráveis em telenovelas e séries, como em Barriga de Aluguel (1990), Anos Rebeldes (1992), Celebridade (2003), Belíssima (2005) e Cheias de Charme (2012) no currículo, a atriz, e agora escritora, Cláudia Abreu, retorna aos palcos gaúchos de maneira especial. Na próxima quinta-feira, 6 de outubro, ela estreia no centenário Theatro Treze de Maio, com o monólogo estrelado e escrito por ela, Virginia, inspirado na vida e na obra da escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941). Antes disso, em 4 de outubro, ela se apresenta em Santa Cruz do Sul, e, depois da passagem pelo Coração do Rio Grande, segue para Porto Alegre, onde receberá o aplauso dos gaúchos nos dias 8 e 9.
O primeiro contato de Cláudia com a autora dos clássicos Mrs Dalloway, Ao Farol e As Ondas ocorreu aos 18 anos. Entretanto, somente em 2016, após a indicação de uma professora de literatura, a atriz reencontrou o universo da pensadora britânica e mergulhou de cabeça nas leituras e releituras de livros, biografias e diários. Ao resgatar essa memória, a vontade de escrever sobre Virginia falou mais alto.
– Eu me apaixonei por ela novamente. Fiquei fascinada ao perceber como uma pessoa conseguiu construir esta obra brilhante com tanto desequilíbrio, tragédias pessoais e problemas que teve na vida. Como ela conseguiu reunir os cacos? – questiona a atriz, que enxerga Virginia também como um marco de maturidade na trajetória que construiu.
A estrutura do texto se apoia no recurso mais característico da literatura da escritora: a alternância de fluxos de consciência, capaz de “dar corpo” às vozes reais ou fictícias, sempre presentes na mente dela.
– O texto também vem deste desejo de fazer algo que me toca, do que me interessa falar hoje. De falar do ser humano, sobre o que fazemos com as dores da existência, sobre as incertezas na criação artística, e também falar da condição da mulher ontem e hoje. Não poderia fazer uma personagem tão profunda sem a vivência pessoal e teatral que tenho hoje – avalia.
Virginia já passou por temporadas de sucesso nas cidades de São Paulo e Belo Horizonte, é o primeiro monólogo da carreira da atriz, e já está indicado a três categorias do Prêmio Cenyn de Teatro. A vida e a obra da autora inglesa são os motores da criação do espetáculo, fruto de um processo de pesquisa de mais de 5 anos, que marca a estreia de Cláudia na dramaturgia e o retorno da parceria com Amir Haddad, diretor de Noite de Reis (1997). O projeto conta com a codireção de Malu Valle, que chegou no processo quando Amir se recuperava da covid-19, e contribuiu com um olhar feminino.
– Ela começou a fazer teatro comigo praticamente há 20 anos, com Shakespeare. A minha relação com ela sempre foi muito boa, cordial, fértil. Tenho a sensação de que estou sempre trabalhando com ela. Durante dois anos, investigamos a vida da Virginia Woolf para produzir o texto e fazer o que ela tá fazendo. É muito poderosa a nossa relação e tem frutos poderosos, suculentos – resume Amir.
A dramaturgia de Virginia foi concebida como inventário íntimo da vida da autora. Em seus últimos momentos, ela rememora acontecimentos marcantes na vida, a paixão pelo conhecimento, os momentos felizes com os queridos amigos do grupo intelectual de Bloomsbury, entre outros.
– Nunca estivemos em Santa Maria. É uma coisa que dá um sabor especial ao espetáculo. A viagem ao trabalhar, ir em lugares que você não conhece, plateias que você desconhece. Eu gostaria muito de estar aí com ela, conhecer o povo, a região, a gastronomia. Eu gosto de conhecer a comida da região – explica o diretor.
Agende-se
- O que – Espetáculo Virginia
- Onde – Theatro Treze de Maio
- Quando – 6 de outubro, quinta-feira, 20h
- Quanto – Ingressos de R$60 (meia-entrada), R$100 (solidária) e R$120
Na última quinta-feira à tarde, a atriz Cláudia Abreu conversou com a repórter Mirella Joels, por telefone, e falou a respeito do espetáculo e da carreira. Confira!
MIX – Sobre o processo de criação do monólogo, quais recortes foram usados para produzir essa montagem?
Cláudia – Eu quis fazer um texto totalmente acessível porque, em primeiro lugar, falo da Virginia, que é uma grande escritora, complexa e tal, mas estou falando, na verdade, da vida dela, do ser humano. Quando você fala de sentimentos e acontecimentos que são inerentes a todos nós, isso já fica horizontal, sabe? Já não tem nada tão hermético (oculto) que as pessoas não possam compreender, se envolver. A obra vem a reboque da vida, de como ela se tornou Virginia Woolf, se formou uma intelectual, autodidata, porque ela era uma mulher e elas não tinham direito de ir à escola, como ela enfrentou tantos desafios e se tornou uma das autoras mais importantes do século 20. Meu recorte é pessoal sobre ela, que se matou em um rio com pedras no bolso, e se passa nos últimos instantes de consciência, quando ela repassa a vida dela, desde as tragédias pessoais, até como ela se formou intelectualmente. Todas as dores da existência, da criação, de como é difícil quando a gente, muitas vezes, tem milhares de incertezas e desconfianças sobre o próprio talento, além da condição feminina que não mudou tanto assim ao longo do tempo.
MIX – Sente que tem semelhanças ou afinidades com a escritora? Em quais aspectos você se identifica com a Virginia Woolf?
Cláudia – Me identifico muito. Resolvi pesquisar sobre a vida da escritora porque eu estava lendo uma obra dela e eu ficava sempre tão emocionada com a visão sensível que ela tinha sobre acontecimentos simples da vida ou mesmo sobre grandes questões. Ela abordava questões da vida com profundidade e delicadeza. Eu falava “meu Deus, às vezes, sinto isso e, na hora que eu vou exprimir em palavras, empobrece tanto”. Ela não empobrecia em palavras os sentimentos profundos que ela tinha diante do mundo, da perplexidade, ou mesmo da sensibilidade nos eventos cotidianos. Eu quis saber mais sobre ela exatamente porque ela me tocava muito. Descobri que a vida dela era tão interessante quanto a obra. Percebi que o que eu gostaria de escrever era exatamente sobre isso, sobre essa mulher, essa pessoa, que teve tantas adversidades, que teve tantos problemas emocionais, psíquicos e, mesmo assim, conseguiu superar e fazer uma obra brilhante. Mesmo que no final da vida ela não tenha aguentado todas as questões que eram insuportáveis para ela, de escutar vozes e tudo mais. No processo da vida, ela conseguiu muita coisa. Na peça, vocês vão ver que realmente a vida dela é muito complexa, é muito trágica e, ao mesmo tempo, nao é só isso. E onde eu posso colocar humor, eu coloco, porque ela também teve milhares de alegrias, como todo mundo na vida, ninguém é só tristeza, né?! Ela integrou o grupo de intelectuais da Inglaterra, o Bloomsbury. Tudo isso está na peça! Fico feliz de poder escrever minha primeira peça sobre uma pessoa que, para mim, fala tanto e, ainda, poder dividir isso com a plateia.
MIX – Como nasceu a Cláudia Abreu dramaturga?
Cláudia – Cada vez mais, tenho gostado de escrever. É interessante poder me aprofundar nesse processo criativo que é escrever o que eu vou interpretar. Isso me dá muita autonomia, me deixa muito dona da minha voz, de chegar em cima do palco e falar “olha, gente, vocês me conhecem de muitos personagens, mas eu quero falar sobre isso”. Na verdade, eu comecei a escrever na faculdade de Filosofia, mas a ficção mesmo foi com Valentins, uma série que escrevi pro canal Gloob. A partir dessa experiência prazerosa, comecei a querer escrever outras coisas e fui atrás de pesquisar fluxos de consciência. Eu soube através de uma professora de literatura que encontraria na Virginia Woolf a fonte ideal para falar sobre fluxos de consciência. Eu havia feito Orlando com a diretora Bia Lessa, aos 18 anos, e voltei a ter contato com a obra dela só agora, há uns 5 anos. Me encantei pela obra e depois pela vida. Como eu queria falar de fluxo de consciência, que são várias vozes que se alternam, pude fazer um monólogo também por isso, porque as vozes estão dentro dela. Ela conta a vida através de vários personagens que estão dentro da cabeça, seja da família, do marido, da amante ou qualquer outra figura que tenha passado pela vida dela. Então na verdade eu sou em cena a Virginia Woolf, mas também muitas outras pessoas que estão contando a vida dela.
MIX – Atualmente, quais ideias considera que são à frente do tempo?
Cláudia – Uma questão fundamental que Virginia escreveu em Orlando é: Orlando é um nobre que se transforma, da noite para o dia, em mulher, e não explica por que, simplesmente acorda mulher. Na época que fiz a peça, eu não me questionei sobre transição de gênero. Simplesmente lidei com isso como um realismo fantástico. Atualmente, com a questão da transição de gênero ficar mais “popular”, digamos assim, mais aceita, me faz pensar que ela propôs um corpo livre pra amar lá atrás. Ela mesma era casada com homem, mas os desejos dela por mulheres eram conhecidos. O que eu acho que hoje seria à frente do tempo, seria uma cabeça aberta para amar, sem que isso fosse preso a qualquer tipo de convenção. Que as pessoas pudessem amar, sem uma cabeça conservadora para apontar qualquer tipo de preconceito. Acho que isso é ter uma cabeça à frente do tempo, você ter a liberdade de amar quem você quiser.
MIX – Quais trabalhos você destacaria?
Cláudia – Em teatro, eu fiz Hamlet aos 20 anos, com Antônio Abujamra dirigindo. Eu fiz o próprio Hamlet, foi uma experiência realmente marcante para mim. Lembro que cortei o cabelo bem curtinho. Com o próprio Amir Haddad, que é diretor de Virginia, eu fiz Noite de Reis, do Shakespeare, há 25 anos, e a gente está se reencontrando também com a Malu Valle, que fazia, como atriz, e hoje é codiretora da peça. Em televisão, tem vários personagens que eu destacaria, tem a Clara, de Barriga de Aluguel, tem a Heloísa de Anos Rebeldes, tem a Laura de Celebridade, a Chayene de Cheias de Charme. São várias personagens que me marcaram muito. Tem a Ignes, de Desalma, que foi a última que filmei, inclusive aí, no Rio Grande do Sul. Cinema tem Guerra de Canudos, O Que É Isso, Companheiro?, O Homem do Ano, e o último filme que foi lançado foi O Silêncio da Chuva, tem vários.
MIX – Com 35 anos de carreira, o que lhe motiva a seguir fazendo teatro e levando peças para vários lugares, inclusive, para cidades do interior do Brasil, como Santa Maria?
Cláudia – O que mais me motiva é poder me renovar. Temos que renovar nosso entusiasmo. Não é à toa que eu estou me desafiando a fazer um monólogo de um texto que eu mesma escrevi. Sendo que é o meu primeiro texto, ou seja, eu estou me arriscando em muitas áreas para trazer um frescor, algo novo, curioso, para o público. Eu não gostaria, depois de tantos anos de carreira, de fazer mais do mesmo, ficar preguiçosa, fazer personagens parecidos na televisão e me contentar com isso. Quero ir para Santa Maria, Santa Cruz do Sul, gostaria de ter ido para várias outras cidades. Eu quero ir onde o público está, que a gente não fique só em capitais, em lugares óbvios. As pessoas do interior merecem estar nessa rota cultural, não é todo mundo que tem condições de ir à capital para ver uma peça e voltar no mesmo dia. Eu fico muito feliz de ter esse contato com o público e também de poder me instigar em um lugar diferente, me renovar como atriz, me desafiar. Escrever meu primeiro texto sobre um mulher tão importante como a Virginia Woolf e estar sozinha em cena, isso é um grande desafio que tem me instigado muito. É uma renovação, é uma questão que me deixa muito feliz de ter me colocado em risco, de ter saltado sem rede. E de estar aqui orgulhosa de poder mostrar isso para o público. É sobre isso que eu quero falar. “Olha só, escrevi isso e estou aqui sozinha no palco para falar para vocês”, acho que isso estabelece uma relação de cumplicidade, de verdade com o público. Não estou fazendo qualquer peça para ganhar dinheiro. Estou fazendo uma peça que pesquisei, escrevi e me dediquei a fazer sozinha. Me importa levar algo de qualidade para o público, sabe? Eu estou indo para Santa Maria para esse teatro lindo porque eu quero que o público veja a minha peça. Tudo que eu quero é despertar as pessoas para a literatura da Virginia, se eu conseguir fazer essa ligação entre o teatro e a literatura, já vai ter valido a pena para mim.