Caso Gabriel

Especialista explica como um golpe na cervical pode ter matado o jovem Gabriel

Durante as investigações da morte do jovem Gabriel Marques Cavalheiro, 18 anos, uma informação que chamou a atenção foi de que ele acabou morrendo de hemorragia interna provocada por uma agressão contundente na região cervical, do pescoço. Com isso, a hemorragia se estendeu para o tórax. Essa foi a conclusão do laudo do Instituto-Geral de Perícias (IGP), cujo resultado foi divulgado na última segunda-feira, em coletiva de imprensa, em Porto Alegre. O exame foi feito pela 5ª Coordenadoria Regional de Perícia, com sede em Santa Maria, e indicou ainda que não havia sinais de afogamento, e que Gabriel já estava sem vida antes de ter sido colocado no local onde foi encontrado no dia 19 de agosto: um açude na localidade de Lava Pé, em São Gabriel.

Mas afinal, como um golpe nessa região da coluna cervical, que fica entre a cabeça e o tórax, pode provocar hemorragia e morte? Para tirar essas dúvidas, a reportagem do Diário entrevistou o médico neurocirurgião Davidson Alba. Natural de Santa Maria, Davidson graduou-se na UFSM em 2008 e, em 2013, concluiu sua especialização em neurocirurgia no Hospital São José da Santa Casa de Porto Alegre. Desde então atua com neurocirurgia do crânio e da coluna vertebral em Santa Maria.

Diário - O que é a região cervical e como ela se diferencia das demais regiões da coluna?
Davidson Alba
- O termo cervical vem do latim cervix, que significa "pescoço". Além da cervical, existem a coluna torácica (ou dorsal), que corresponde ao tórax; a coluna lombar, que fica entre o tórax e a pelve (formada pelos dois ossos do quadril articulados ao sacro e cóccix); e o sacro (ou cóccix), que é a porção final da coluna vertebral. A coluna cervical é justamente a porção mais móvel, onde a gente tem movimentos de rotação (eixo horizontal) e extensão e flexão (eixo vertical). Por isso, também que ela é mais propensa a lesões instáveis, onde pode haver, por lesão ligamentar, óssea, discal, ou um somatório delas, uma mobilidade excessiva, patológica, entre as vértebras e, em consequência disso, haver lesão ou das raízes nervosas ou da medula espinhal.

Diário - Quais fatores são levados em conta para avaliar uma lesão na cervical?
Davidson
- A gente precisa entender que existem diversas coisas envolvidas. Primeiro, a integridade óssea, a integridade das estruturas ligamentares, articulares e discais dessas estruturas ósseas, como discos intervertebrais, cápsulas articular das facetas, ligamentos da coluna. E também o tecido nervoso propriamente dito. Meninges, raízes nervosas, medula espinhal, que ocupam uma boa porção do canal vertebral no interior da coluna cervical. São estruturas que estão sob risco em um eventual traumatismo. Em caso de haver instabilidade traumática por lesão óssea, discal, ligamentar ou um conjunto dessas, pode haver dano à medula espinhal.

Diário - Quais veias e artérias passam pela região da coluna cervical e que ficam propensas a uma hemorragia em uma eventual lesão nesta região?
Davidson
- A gente tem várias estruturas nobres no contexto do pescoço, especialmente nas proximidades da coluna cervical. A gente tem a bainha carotídea (tecido conectivo - conjuntivo - que envolve os grandes vasos do pescoço), que contém a veia jugular interna, a artéria carótida, o esôfago, a traqueia, mais inferiormente as cartilagens, tireóide, cricóide (anel cartilaginoso que ocupa a parte inferior da laringe), porções da laringe. Não apenas os vasos sanguíneos, mas estas partes moles também podem ser fonte de sangramento no contexto de trauma. Lógico que estes grandes vasos têm um potencial de gravidade em uma lesão hipotética muito maior, a ponto de poder causar até choque, se houver uma hemorragia aberta, um traumatismo cortante, que haja a secção (ruptura), ou lesão de um desses vasos, é muito severo, e muito grave. Mas nem sempre acontece isso nesses contextos de trauma. Pode acontecer uma lesão fechada, digamos assim. Uma hemorragia que talvez nem seja tão grande, mas se ela for grande o suficiente para comprimir a via aérea, obstruir a laringe ou a traqueia, é o bastante pra gente ter um eventual êxito letal (morte).

Diário - Quando uma vítima sofre um golpe, uma lesão na cervical, qual o perigo que ela corre em termos de sistema nervoso e de danos neurológicos?
Davidson
- Em caso de haver instabilidade traumática por lesão óssea, discal, ligamentar ou um conjunto dessas, pode haver dano à medula espinhal. Nem sempre um dano anatômico, uma secção (ruptura) da medula espinhal. Mas tão somente haja uma lesão que interrompa a transmissão de impulsos nervosos, mesmo que não haja lesão anatômica, isso pode ser o suficiente para que não haja mais transmissão de impulsos motores do cérebro para os membros através da medula espinhal. É o mesmo mecanismo que a gente pode dizer que acontece nas lesões dos traumatismo raquimedulares, pessoas que se acidentam e ficam "paralíticas". Isso é uma das coisas. Por isso, a preocupação que sempre que alguém sofre esses traumatismos é estabilizar a coluna cervical, até que se possa fazer exames, se possa tratar uma eventual instabilidade que possa haver pelo traumatismo. Isso, muitas vezes, tem que ser feito de forma cirúrgica, e averiguar também se existe integridade neurológica. Se o paciente está sendo capaz de respirar, de mover os membros.

Diário - Quais as consequências de traumas mais severas na cervical?
Davidson
- No que se refere ao contexto do caso Gabriel, é uma situação bastante delicada porque a gente não sabe as circunstâncias exatas do ocorrido. A gente está apenas levantando hipóteses, no campo hipotético. Com relação ao contexto de traumatismos, podem haver hemorragias massivas que levem a óbito de maneira quase instantânea, pode. No contexto específico de hemorragias no interior do tórax, isso pode acontecer por ruptura aórtica (da artéria aorta), ou coisas dessa ordem, até de forma muito rápida. Pode acontecer algum tipo de hemorragia a nível de partes moles cervicais, traqueia, esôfago, alguma coisa nessa região do pescoço que leve a uma situação aguda, que possa levar ao óbito? Teoricamente, sim, se acontecer uma hemorragia que leve a uma obstrução da via aérea. Consequentemente, o paciente eventualmente faleça de parada respiratória, pois não consegue ventilar por obstrução da via aérea, e consequentemente o sangue não oxigena e vem a óbito. Isso inclusive é um cuidado que existe não apenas em cirurgias vasculares, ou de cabeça e pescoço. Sempre há um cuidado redobrado no sentido de não acontecer hemorragia pós-operatória, no leito cirúrgico, de partes moles cervicais, porque a gente sabe que pode acontecer de forma aguda que não dá tempo sequer de trazer o paciente de volta ao centro cirúrgico pra desfazer um eventual sangramento, ou drenar um hematoma, estancar uma hemorragia. É um cenário bastante específico.

Diário - Pode haver relação entre uma lesão na cervical e uma parada respiratória?
Davidson
- Se ocorrer uma lesão de coluna cervical alta a ponto de interromper a transmissão de impulsos nervosos antes da emergência das raízes que inervama o diafragma, que são a 3ª, 4ª e 5ª raízes nervosas cervicais, que formam o que chamamos de "nervo frênico" (um nervo que se origina no pescoço e passa entre o pulmão e o coração para alcançar o diafragma. É importante para a respiração, pois ele passa as informações motoras para o diafragma e recebe informações sensoriais do mesmo), nervo responsável pela elevação do diafragma, o paciente pode acabar falecendo de parada respiratória por uma lesão cervical alta. Por isso, que quando, muitas vezes, se necessita operar um paciente que tem um tumor medular, ou uma lesão traumática cervical alta, opta-se por o paciente fazer sua recuperação em ambiente de terapia intensiva, tamanho é o risco que existe de precisar ser entubado com urgência, ou coisa do tipo.

Diário _ Qual seria a força necessária de um golpe na região da cervical para causar uma hemorragia, a ponto de ocorrer um sangramento interno no tórax?
Davidson
- São várias coisas numa. Se a gente pensar em termos de lesão de medula espinhal cervical, isso pode ser predisposto se o paciente já tem uma hérnia discal cervical, especialmente se ela for de dimensões mais generosas associada a um osteófito, vulgo "bico de papagaio". Se há artrose, espondilose da coluna cervical (degeneração dos ossos do pescoço - vértebras - e dos discos entre elas, exercendo pressão - compressão - sobre a medula espinhal no nível do pescoço), são condições que diminuem o tamanho disponível dentro do canal vertebral pra medula espinhal. É como se a medula espinhal, no caso de um paciente portador dessas condições, já tivesse uma "pedra" apontada pra medula. E às vezes até, num acidente de carro banal, uma colisão, pode acontecer pelo impacto uma lesão, que a gente chama "por chicote", e haver a compressão, a transferência de energia da medula espinhal, contra essa hérnia discal, ou complexo disco osteofitário, e consequentemente haver uma lesão na medula. Em situações mais severas, especialmente em pacientes mais fragilizados, do ponto de vista físico, isso pode acontecer em quedas ditas banais, no contexto doméstico, inclusive. Também pode acontecer em impactos mais significativos, pode também. Essas lesões podem ou não ser acompanhadas, dependendo de como elas ocorrerem, de outras associadas, lesões de partes moles, lesões que ocorre uma queda que envolva o tórax, isso é uma outra coisa. São lesões que podem ocorrer em conjunto, mas elas não são a mesma coisa.

Diário - Visto que um potencial trauma na coluna cervical pode acarretar na interrupção da transmissão de impulsos motores, exite também a possibilidade de uma reação que resulte em estado de rigidez dos dos membros?
Davidson
- Rigidez, senso estrito, de forma aguda não. Isso pode acontecer num paciente que tem uma lesão e apresenta o que a gente chama de paralisia espástica (um distúrbio do desenvolvimento causado por danos no cérebro antes do nascimento, durante o parto, ou nos primeiros anos de vida, que impede o desenvolvimento normal da função motora). Mas isso pode demorar de horas a dias para se instalar de forma franca. Normalmente, quando acontece uma lesão aguda, acontece o que a gente chama de choque medular. Isso é um conceito ainda controverso. É muito difícil a gente estabelecer uma hipótese a partir de uma situação que não presenciamos ou da qual não temos informações concretas ou oficiais. Em determinadas situações alheias a este contexto, a gente já pode ter manifestações de rigidez e de piramidalismo (uma alteração no controle dos músculos de várias partes do corpo por um problema que afeta uma região específica do sistema nervoso), de manifestações de lesão medular, digamos assim, a partir de um eventual traumatismo. Embora, teoricamente, se devesse esperar um certo tempo para que estas manifestações ocorressem. Isso é uma coisa que não é muito matemática, muito exata. Pode ser uma reação em minutos, ou em poucas horas. Mas varia muito entre indivíduos no contexto de traumatismo raquimedular (lesão da medula espinhal que provoca alterações, temporárias ou permanentes, na função motora, sensibilidade ou função autonômica).

Glossário

  • Bainha carotídea: tecido conectivo (conjuntivo) que envolve os grandes vasos do pescoço
  • Cricóide: anel cartilaginoso que ocupa a parte inferior da laringe.
  • Espondilose cervical: degeneração dos ossos do pescoço (vértebras) e dos discos entre elas, exercendo pressão (compressão) sobre a medula espinhal no nível do pescoço
  • Nervo frênico: um nervo que se origina no pescoço e passa entre o pulmão e o coração para alcançar o diafragma. É importante para a respiração, pois ele passa as informações motoras para o diafragma e recebe informações sensoriais do mesmo
  • Paralisia Espástica: um distúrbio do desenvolvimento causado por danos no cérebro antes do nascimento, durante o parto, ou nos primeiros anos de vida, que impede o desenvolvimento normal da função motora
  • Pelve: Formada pelos dois ossos do quadril articulados ao sacro e cóccix. Constitui a parte inferior do tronco, região onde ocorre a fixação do mesmo aos membros inferiores
  • Piramidalismo: Uma alteração no controle dos músculos de várias partes do corpo por um problema que afeta uma região específica do sistema nervoso.
  • Traumatismo raquimedular: lesão da medula espinhal que provoca alterações, temporárias ou permanentes, na função motora, sensibilidade ou função autonômica.

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Lenon de Paula

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