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OPINIÃO: Uma noite má

Era domingo de manhã. Eu havia chegado tarde da noite. Era 14 de junho de 1965. Morava separado da casa da família. Meu quarto era no fundo do pátio, onde ficava assegurada minha privacidade. Acordei pelas 8h da manhã com os gritos da minha mãe, que esbordoava a porta do meu quarto pedindo socorro.

Meu avô morava na casa ao lado. Estava caído no chão da cozinha. Gemia com muita dor no peito. Chamamos um taxi, naquela época, chamado de "carro de praça". Levado ao hospital, foi sedado. Iniciaram os exames para o diagnóstico. Só à noite descobriram que era um aneurisma na aorta, que estava por rebentar. A única solução era uma cirurgia heroica.

Minha  avó  estava  desesperada.  Amava meu avô. O cirurgião disse que tínhamos de providenciar doadores de sangue naquela hora, pois não existiam bancos de sangue na cidade.

Enquanto minha namorada ficava no hospital, fui para a rua à cata de doadores. Consegui alguns nos quartéis da cidade. Mas eles foram desnecessários. Mal a operação havia iniciado, a aorta rompeu-se e esguichou sangue por todo o bloco cirúrgico. Meu pai, enfermeiro, auxiliava na cirurgia como instrumentador.

Quando subi ao segundo andar da "Casa de Saúde", em Santa Maria, eu o vi com o avental ensanguentado. E os médicos também. Meu pai chorava. Eu tive a péssima ideia de entrar no bloco cirúrgico enquanto retiravam o cadáver de meu avô. Duas funcionárias já providenciavam a limpeza. O local me pareceu mais um abatedouro. Era como se tivessem sangrado um porco.Quando desci ao térreo, minha mãe estava desolada. E me disse: "Tu és a pessoa mais ligada com a tua avó, tu tens de contar para ela". Coube a mim falar para minha amada avó. Ela se agarrou a mim. Ficou muda. Petrificada. Com olhar de espanto.

Nunca haverei de me esquecer daquela noite. O carro fúnebre levando o corpo do meu avô para casa. É que naquela época, os corpos eram velados em casa. O carro subindo a avenida Rio Branco, coberta de densa cerração. E minha avó, com a cabeça deitada em meu ombro, soluçando, num táxi que nos levava, porque ninguém da família possuía carro.

Daquela hora em diante, eu e minha namorada Vera Maria - com quem casei - ficamos exclusivamente cuidando da minha avó. O enterro teve grande acompanhamento, pois meu avô era muito querido no meio dos ferroviários, no Clube de Atiradores Santa-Mariense, no grupo de bolão "7 de Setembro", na Igreja Católica, onde ele fazia parte dos Vicentinos.

Eu não fui ao enterro e nem deixei minha avó ir. Vi aquela enorme fila de carros atrás do carro fúnebre subindo a Rua Silva Jardim. Ficamos em casa,  eu, minha namorada e a vó Olina. Ela apertou minha mão e me disse que não podia haver coisa mais triste do que aquela. Anos depois, eu ficaria de mãos com ela na hora de sua morte.

E nestes últimos anos, morreram meu pai e meus sogros. E por último, minha mãe. Tempos mais modernos, de se morrer sozinho no Centro de Terapia Intensiva (CTI), na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) ou Unidade Cardiológica (Unicor). Não importa a sigla burocrática. Ouvindo ruídos de eletrocardiográficos, respiradouros artificiais, tubos de oxigênio, no máximo de sua pressão, murmúrios de vozes, rostos estranhos, máquinas que tentam fazer o impossível, sem ninguém para apertar suas mãos. Como provavelmente também morrerei eu. Sozinho.

Ah...lembrei que o Tarso, um dos meus netos, está no quarto ano de Medicina na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Com um pouco de sorte, quem sabe ele - já formado - esteja de plantão por lá para agarrar minha mão e enquanto a vida for se esvaindo, como o som do clarinete do Benny Goodmann.

Seria muita sorte...

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