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PLURAL: os textos de Juliana Petermann e Eni Celidonio

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A melhor professora
Juliana Petermann 
Professora universitária

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Naqueles dias, eu deixava a cama bem mais cedo do que eu gostaria e só acordava de fato horas depois. Sonolenta, me entrouxava bem, porque sendo verão ou inverno, às 6h é sempre meio friozinho. Íamos de mãos dadas até a parada. Meu corpo pequeno sacolejava, de buraco em buraco, no percurso que o velho ônibus escolar percorria. Meus pés ainda não alcançavam o chão e eu não sei bem com qual desculpa eu faltava a aula e ia para o trabalho com a minha mãe, alfabetizadora em escolas do interior profundo de Candelária. Campo ou serra, mas sempre profundos. Mas o fato é que naqueles dias, eu tive as melhores lições. E isso não quer dizer que eu não tenha tido bons professores e boas professoras. Mas, naqueles dias com a minha mãe, eu aprendi sobre humanidade e sobre amor pela docência.

MEMÓRIAS

No caminho, aos poucos, o sol ia subindo e atravessando o vidro empoeirado do ônibus. A cada parada entrava pela porta um pequeno ou uma pequena que descobria letras e palavras com a ajuda da minha mãe. Esses miúdos carregavam os cadernos em embalagens vazias de arroz ou de açúcar. E, embora eu tenha tido uma infância humilde, eu tinha uma mochila e, por isso, a falta dela me chamava a atenção. Mas lembro de entender como um signo de capricho com os cadernos que iam ali, dentro do saquinho, bem protegidos. Cada criança entrava no ônibus e já corria para a minha mãe com um efusivo "Bom dia Sora", lhe enchiam o rosto de beijos e abriam bem os bracinhos, dando conta de lhe abraçar apertado.

HERANÇA

Naquela época eu nem sonhava em ser professora. E embora eu tenha felizmente me tornado, nunca sonhei. Mas me tornei. Como se eu tivesse aprendido essa lição com minha mãe, ao vê-la ensinar em qualquer condição e amar sua profissão. No final do mês de setembro, o ministro da Educação disse que "Hoje, ser um professor é ter quase que uma declaração de que a pessoa não conseguiu fazer outra coisa". Com a proximidade do dia dos professores, olho para o passado e vejo que minha mãe não conseguiria fazer outra coisa se não dedicar sua vida a ensinar e a promover o ser humano. Não conseguiria fazer outra coisa que não fosse superar as dificuldades de uma profissão precarizada para possibilitar que crianças do interior pudessem sonhar com um futuro melhor. Acho mesmo, ministro, que, embora a docência não seja um sacerdócio, minha mãe não conseguiria fazer outra coisa: sabia ensinar, tinha orgulho da profissão e, mais do que isso, dedicava a vida a mudar a vida de outras pessoas. E que bom que ela não sabia fazer outra coisa.

Meu avô e suas certezas
Eni Celidonio 
Professora universitária

style="width: 25%; float: right;" data-filename="retriever">Meu avô era o melhor avô do mundo, assim como o avô de todo mundo. Tinha um senso de humor que, graças a Deus, herdei. E era uma das pessoas mais teimosas que conheci. Tinha uma mania de olhar de soslaio, dar uma risadinha e sair à francesa, quando não concordava com alguma coisa. E a gente ficava sem saber se ele concordava e sorria de satisfação ou se estava querendo dizer "me poupe! Vai arrumar o que fazer". Eu amava isso!

Pois bem... Vovô morava em Conservatória, tinha uma pensão chamada Hotel Santo Antônio, onde passávamos férias. Era uma cidade que, na época, não tinha nem Banco do Brasil. Todo mundo se conhecia. A antena de TV era desligada às 22h. Jornal? Vinha no ônibus, numa estrada de chão batido lá de Barra do Piraí ou de Valença.

 A CHEGADA À LUA E A PONTE RIO-NITERÓI

Quando o homem pisou na lua, em 1969, a televisão mostrou, em preto e branco, com péssima qualidade, Neil Armstrong saindo do módulo lunar para cair com os dois pés na casa de São Jorge. Todos comentavam o grande feito, já se vislumbrava um grande bairro humano no espaço, o termo "fulano vive no mundo da lua" deixava de ser metafórico para virar realidade. Todos comentavam, tinham opiniões, menos vovô Zeca. Para ele, tudo não passava de armação dos "Yankees", daquele povo da América que, cansado dos filmes de faroeste, estava metido a mostrar um mundo fora da Terra. E os pobres dos brasileiros engoliam... Quanta ingenuidade! Não tinha argumento que fizesse ele entender que não era ficção, não era Hollywood... Para ele era tudo lorota e fim de papo.

Mas nada se compara à inauguração de a ponte Rio-Niterói, em março de 1974... Uma semana depois de ter sido inaugurada, papai resolveu mostrar ao vovô a maravilha que era poder atravessar para Niterói de carro, sem depender das balsas que saíam da Praça Quinze. Saímos de manhã, pegamos a ponte e vovô quieto, olhando o mar, o Rio se afastando, e ele mudo, não esboçava nenhuma reação. Quando chegamos do outro lado, papai perguntou o que ele tinha achado, se não era uma obra maravilhosa, ao que ele respondeu: "o brasileiro está chegando perto, mas a lua dos 'yankees' é muito mais bem feita... Tem que ser muito idiota para acreditar que a gente pode fazer uma ponte entre o Rio e Niterói. Façam-me o favor... Sou do Interior, mas não sou besta", e morreu sem acreditar que a ponte fosse uma realidade.

CRENÇAS E TEORIAS

Estou falando de 1960/1970, de alguém que morava a três horas do Rio, que necessitava pegar dois ônibus para poder chegar do Rio até lá. Uma cidade em que o leite chegava da cooperativa em latões, no lombo de burros. Isso numa época em que não havia internet, globalização, TV a cabo... Vovô morreu em junho de 1974 sem acreditar que o homem tivesse pisado na lua ou construído uma ponte para atravessar a Baía de Guanabara, porém, nunca, jamais duvidou das teorias de que a Terra seja redonda. Pelo menos isso...

*Este texto foi originalmente publicado em 23 de junho de 2020



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