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OPINIÃO: Vicentão, o egiptólogo

Na Rua do Acampamento, em Santa Maria, funcionava o Centro de Saúde nº 7. Era um órgão da Secretaria de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul. Nas décadas de 1950 e 1960, ali se faziam as vacinações, consultas, raio-X e latas de leite em pó eram distribuídas. Anos depois o Centro de Saúde foi para sua definitiva sede, na Rua Floriano Peixoto, logo abaixo do Hospital de Caridade Astrogildo de Azevedo. E o antigo prédio da Rua do Acampamento foi devolvido à Sociedade Italiana de Santa Maria, originalmente a dona do prédio.

Eu frequentei muito a antiga sede porque meu pai trabalhou ali durante décadas. Era o enfermeiro responsável pelas vacinações. E conheci todos os funcionários que lá trabalhavam. O sisudo e magérrimo Tolentino, responsável pela portaria. Sua esposa, dona Maria, responsável pelo aparelho de raio-X. O Dr. Izidoro Lima Garcia era o chefe. O Dr. Rubem Valeriano Fabrício, mais conhecido como "Barão da Bossoroca", era o médico dermatologista e responsável pelo setor de doenças sexualmente transmissíveis (àquela época chamadas de doenças venéreas). A Julinha era a responsável pela limpeza geral do posto de saúde e também pela feitura diária do cafezinho. Julia era famosa na cidade por ser médium espírita e receber grande número de consulentes na sua modesta casa, situada próxima ao Hotel Hamburgo, na Rua Sete de Setembro, logo após os trilhos da Viação Férrea.

No subsolo do Centro de Saúde trabalhava o personagem desta minha reminiscência de hoje: Vicente de Oliveira, enorme, alto, gordo, conhecido em toda a cidade pelo nome de Vicentão. Casado com dona Tolola, morava na Rua do Acampamento, nas imediações da casa do teatrólogo Edmundo Cardoso, de quem era grande amigo. Vicentão trabalhava no setor de fiscalização de carnes, produtos alimentares, entre outras coisas, junto com o médico veterinário Armando Vallandro que, anos depois, foi reitor da UFSM. Vicentão amava livros. Frequentador diário da Livraria do Globo, ele tinha crediário para comprar livros.

Os gerentes Cavalheiro e Vidal Castilhos Dânia (que chegou a ser prefeito de Santa Maria, pelo então PTB) eram amicíssimos do Vicentão, assim como os intelectuais da época que se reuniam na livraria: Amaury Lenz, Romeu Beltrão, Prado Veppo, Lamartine Souza, Edmundo Cardoso, Fernando do Ó, Eduardo Trevisan, Hygino Trevisan e tantos outros. Vicentão comprava livros de todos os tipos. Mas tinha preferência por livros de paleontologia, arqueologia, história. Tinha verdadeiro fascínio pelos livros sobre o Egito. Tinha centenas de livros sobre os egípcios, múmias, pirâmides, faraós... sabia tudo sobre isso. Ele mesmo me dizia: "Eu sou um egiptólogo".

Mas eu estou fazendo este registro por uma razão: Vicentão foi quem me deu de presente de aniversário o primeiro livro que ganhei em minha vida. O livro se chamava "As aventuras de Tibicuera", de autoria de Érico Veríssimo, pai do Luiz Fernando Veríssimo. Encadernado, capa de cor vermelha, o livro contava a história do Brasil narrada por um índio de nome Tibicuera. Este livro foi determinante, além da influência do Vicentão, para que eu me apaixonasse definitivamente pelo hábito de ler.

Quase todos os funcionários do Centro de Saúde daquela época já morreram. Dona Tolola morreu e Vicentão ficou solitário. Eles tinham um filho de criação que fugiu com um circo que passou pela cidade. Vicentão ficou muito doente e, antes de morrer, fez a doação de sua monumental biblioteca.

Por isso, até hoje dou livros de presente para meus netos. Desde pequeninos. Revistas. Livros didáticos para os netos mais velhos. Livros e polígrafos de cursinhos para os netos vestibulandos.

Na esperança de que adquiram o hábito pela leitura.

Claro, nunca serei um Vicentão.

Mas pelo menos tenho tentado.

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