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O homem-tronco

data-filename="retriever" style="width: 100%;">Nunca soube seu nome. Sabia apenas que era pobre. Mendigo. Deficiente físico.

Ficava na esquina da Floriano Peixoto com a Rua 24 horas. Coração de Santa Maria, Rio Grande do Sul.

Arrastava-se. Pernas viradas para trás. Braços partidos. Cabeça pequena. Chapéu velho.

Peito arqueado para a frente. Visível deformação nas costelas. Lembrava um lagarto.

Nunca soube seu nome. Sabia que era pobre. Várias vezes reparei em suas mãos.

Mãos grossas. Deformadas. Inchadas. Calejadas. Mãos de atrito com o asfalto quente.

Pois era com a palma das mãos que se apoiava no asfalto. Dava um impulso.

E numa coreografia macabra gingava o corpo para a frente.

Não era corpo. Era meio corpo. Era um homem-tronco.

Nunca soube seu nome. Sabia que era pobre. Mendigo.

Costumava observá-lo todo dia. Do terraço da sede antiga da Rádio Universidade. Prédio da Antiga Reitoria.

Ele era pontual. Quando o relógio marcava 16h, ele partia. Atravessava a rua.

Mas ficava longo tempo com o meio corpo encostado na calçada.

E agarrava-se na lixeira presa ao poste. Para manter o equilíbrio.

Nunca soube seu nome. Sabia que era mendigo. Deficiente.

E que demorava para atravessar a rua. Dependia do fluxo de automóveis.

Ele era muito pequeno. Roupa escura. Não seria notado por motorista apressado.

Corria o risco diariamente de ser atropelado.

Ele que já tinha o corpo atropelado pela fatalidade embriológica.

Nunca soube seu nome. Sabia que era pobre. Mendigo.

Depois de atravessar a rua ficava quieto.

Encostado na parede do prédio da ex Faculdade de Direito da UFSM. Na parada do ônibus.

Nunca vi ninguém ajudá-lo a atravessar a rua.

E também sem ajuda ele fazia a penosa subida no ônibus. Erguia os dois tocos de braços.

Agarrava-se como podia. E com formidável força erguia o meio corpo.

E se arrastava pelo corredor do ônibus.

Nunca soube seu nome. Sabia que era pobre. Deficiente.

Sempre ficava olhando o ônibus descer a Floriano Peixoto.

Levando no seu ventre de lata aquela criatura. Meia criatura.

Sacolejando no corredor aquele meio corpo. Carregando a féria do dia. Que servia de sustento.

Naquela tarde eu observava tudo. Escorado no beiral do terraço da Rádio Universidade.

O chuvisqueiro havia parado. Um sol ainda tímido fazia buraco entre as nuvens.

As pombas da Antiga Reitoria iniciavam a revoada.

Pombas brancas. Normais. Inteiras. Asas abertas. Serenas.

Elas planavam. E pousavam do outro lado da rua. No prédio do Colégio Santa Maria.

Lá embaixo as pessoas passavam. Apressadas. Com pastas pretas.

Uma senhora loira carregava um ramo de flores. O bilheteiro estendia seus bilhetes.

As pessoas passavam. Cumpriam seu destino de passar.

No outro dia o homem-tronco estaria de volta.

E na semana seguinte. E no outro mês. E no próximo ano.

E ficaria no mesmo lugar. Olhando as pernas normais. Os passantes apressados.

Um dia ele não voltou nunca mais.

E ninguém notou a sua falta.

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