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A maravilha do isolamento social foi mexer no tesouro da família, o que por falta de tempo, oportunidade ou coragem, era postergado desde a morte da minha mãe.
O maior tesouro sempre foi a Malinha. Uma mala de 25cm por 40cm usada como bagagem de mão pela minha avó materna Bronislawa Uminski Tonkowski ao vir da Polônia. Depois foi para minha mãe, e hoje para mim.
Vivi a infância com referências da Malinha, mas sem curiosidade de pegá-la, pois fui criada sabendo que se tratava de "coisa particular" e que um ser desta categoria se respeita, para não se abrir precedente.
A mãe nunca falou do seu conteúdo, nem a abriu na presença de pessoas mesmo que a vissem remexer e ordenar seu conteúdo. Ao passar dos 95 anos, a revirava com mais frequência, chamava seus enfermeiros, viam seu conteúdo, riam, e me olhavam de soslaino.
Com a pandemia foi minha vez de ver o tesouro. Nele encontrei recortes de jornal com notícias da 1ª e da 2ª Guerra Mundial; dos meus 15 anos; das nossas formaturas; e de eventos sociais. Tinha, ainda, santinhos, marias e terços. Bandeira e brasão da Polônia. Jóias e relógios. Fotos. Dentinhos, boletins escolares, e Almanaques do Pensamento, até de 1914, ele iniciou em 1912.
Almanaque, do árabe Al-manãkh, a quem não lembre, é uma publicação anual com utilidade, poesia, literatura, anedota, curiosidade, história, esporte, palavra cruzada, chá, cataplasma, emplastro, simpatia, reza de comadre e curandeira, tudo atualizado. Soube, pelas anotações, que seu sucesso devia-se ao calendário de datas e efemérides astronômicas como solstícios, fase lunar e previsão da época de plantar e colher.
Fiquei fã de calendário depois de ver um que, não sei onde ela arranjou, uma velharia do século passado, que catalogava os municípios do RS. Igual aquele, não tinha visto, bem arranjado e consciente do que cada local devia preservar para a posteridade. Exaltava as belezas que todo lugar possui, o clima, descrevia os vultos ilustres como: capitalistas, fazendeiros, lojistas, médicos, padres, professores, bacharéis, e boticários. Depois, em ordem alfabética, vinham as demais profissões.
A lista me surpreendeu e pensei onde foram parar: caçador de rato, datilógrafo, quebra gelo, arrumador de pino, telefonista, telégrafo, leitor, tropeiro, ressureicionista, limpador de chaminé, lanterninha de cinema, vendedor de enciclopédia e... O fato é que desapareceram ou se meteram para além da correria do civilizado, onde a vida anda lenta e tranquila. Aí lembrei de Arthur Miller com A Morte do Caixeiro Viajante vendo o progressivo crepúsculo e irremediável solidão trazidos pela tecnologia.
No isolamento, desvelei o tesouro da Malinha!
Caro leitor, sua mãe também tinha uma caixa, lata, ou malinha onde guardava o tesouro que ninguém podia mexer?