Após 11 anos, Caso Kiss ainda não teve fim e vai para segundo júri em fevereiro

Foto: Nathália Schneider (Diário)

11 anos, familiares das 242 vítimas e os 636 sobreviventes da tragédia na boate Kiss enfrentam a dor, o sofrimento e a angústia de uma madrugada que, até o momento, parece não ter fim. São mais de 4 mil dias de saudade e de luta por Justiça desde o incêndio em 27 de janeiro de 2013.

Em meio a esse período, leis de prevenção foram criadas e flexibilizadas, associações e coletivos atuaram, um memorial foi projetado, vigílias foram organizadas. E um júri foi anulado. Agora, a um mês do novo julgamento, familiares, sobreviventes, Ministério Público do Estado, réus e defesas têm expectativas diferentes sobre os próximos episódios que podem dar um desfecho ao caso que marcou Santa Maria. Enquanto defensores apostam num novo júri, a acusação ainda tem esperança de que ele não seja realizado em 26 de fevereiro.

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Do último júri até aqui, já se passaram dois anos com o processo da Kiss percorrendo várias instâncias do Judiciário. Após a condenação dos quatro réus, Mauro Hoffmann, Elissandro Spohr, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão, no júri de dezembro de 2021, os advogados de defesa recorreram e conseguiram reverter a decisão por meio da anulação concedida pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS).

Depois disso, foi a vez do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) entrar com recursos ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao Supremo Tribunal Federal (STF). O primeiro pedido foi julgado em setembro de 2023. Os desembargadores do STJ decidiram manter o júri de 2021 anulado e, na época, um novo julgamento foi marcado.

Já o STF ainda não analisou o recurso e também não definiu se vai aceitar o pedido da Associação de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) e do MPRS para a suspensão do segundo júri, marcado para 26 de fevereiro. Os ministros da corte retornam do recesso no início de fevereiro.

É nesse contexto que encontram-se as expectativas distintas dos envolvidos. Por um lado, as defesas dos réus querem que o júri ocorra na data marcada e avaliam que as tentativas do MPRS com recursos nas cortes superiores se mostraram sem sucesso até agora. Apesar da indefinição quanto ao julgamento do recurso no STF, dois advogados dos réus afirmam que a corte não deve conseguir realizar essa análise até o dia 26 de fevereiro.

Já a AVTSM e o MPRS pedem a suspensão do novo júri até que o STF julgue o recurso extraordinário. Isso porque, caso se consiga uma resposta positiva dos ministros, volta a valer a decisão do Tribunal do Júri de dezembro de 2021 com a condenação dos quatro réus.

Assim, passados 11 anos da tragédia, o cenário do Caso Kiss ainda permanece sem respostas em meio às incertezas dos próximos acontecimentos.

“Entendemos que é possível que o julgamento seja suspenso ou não aconteça até que o STF se posicione”, afirma procurador-geral de Justiça do RS

Foto: Deni Zolin (Diário)

O Ministério Público do Estado acredita que o recurso extraordinário pode ser analisado pelo STF antes do dia 26 de fevereiro. O procurador-geral de Justiça, Alexandre Saltz, lembra que os magistrados da corte superior retomam as atividades em fevereiro e que há tempo suficiente para decidir sobre o pedido de suspensão do júri.

– O Ministério Público entende que o recurso encaminhado ao Supremo Tribunal Federal deve ser provido porque a soberania dos veredictos é um valor que está colocado na Constituição. O que estamos buscando junto ao Supremo Tribunal Federal é justamente isso, é que o Supremo diga que a decisão do Conselho de Sentença de Porto Alegre é soberana nesse caso e que, evidentemente, nenhuma nulidade houve dentre essas que acabaram sendo reconhecidas por alguns tribunais – destaca o chefe do MPRS.

Saltz ainda ressalta que um novo júri pode causar mais dor para os familiares das vítimas e os sobreviventes:

– Se há um recurso extraordinário que vai ser analisado pelo Supremo Tribunal Federal, entendemos que é possível que o julgamento seja suspenso ou não aconteça até que o Supremo se posicione em relação à validade ou não da decisão do Tribunal do Júri de Porto Alegre. Queremos, com isso, evitar que os familiares das vítimas e que as vítimas sobreviventes sofram novamente longos dias de acompanhamento de um julgamento, que criem uma expectativa de Justiça a partir de uma condenação, que temos certeza que ocorrerá, e que esse sentimento se transforme numa grande frustração como aconteceu da vez passada.

Independente das próximas decisões, o procurador-geral de Justiça diz que os promotores do caso, Lúcia Helena Callegari e Eugênio Paes Amorim, estão preparados para o novo júri. O objetivo do MPRS é, assim como no julgamento de 2021, buscar a condenação dos responsáveis sustentando que o incêndio não foi um acidente, mas um homicídio por dolo eventual (quando o acusado assume, por meio de suas ações, risco de matar).

Defesas estão confiantes e esperam júri com menor duração

A expectativa do advogado de defesa de Elissandro Spohr, Jader Marques, é que o próximo julgamento ocorra com normalidade e de acordo com os parâmetros legais do Tribunal do Júri. O advogado também explica que seguirá com a atuação que vem fazendo desde o início do processo do Caso Kiss. Segundo Marques, Elissandro não deveria ser julgado na modalidade de dolo eventual.

– Esse dolo eventual, no caso da Boate Kiss, foi inventado, não existe. Se o Elissandro dissesse que não se importava com o incêndio é como se ele pensasse assim, "podem morrer os meus funcionários, podem morrer os meus amigos, os frequentadores da minha casa, a minha mulher grávida, e, além de tudo, perderei todo o meu patrimônio, mas não me importo, deixo que as coisas acontecem". Não há possibilidade juridicamente de se falar em dolo eventual – detalha.

Bruno Seligman, que representa Mauro Hoffmann, aguarda um júri com transparência. O advogado entende que Mauro não pode ser responsabilizado por ações que extrapolam a atuação que ele exercia na boate Kiss como sócio investidor.

– A expectativa é que esse processo consiga, enfim, chegar ao fim. Sempre alertamos dos riscos de nulidades ao longo de todo o processo e, inevitavelmente, elas aconteceram e foram reconhecidas. Agora, nos resta fazer um segundo júri e esperar que tenhamos uma solução. Esperamos que seja reconhecido que o Mauro não teve participação dolosa, não agiu por dolo eventual, não tinha qualquer poder de ação e mando que pudesse impedir esse resultado e, com isso, fazer a absolvição ou a desclassificação da conduta – defende o advogado.

Foto: Pedro Piegas (arquivo Diário)

A advogada de Marcelo de Jesus dos Santos, Tatiana Borsa, deseja que o júri ocorra na data estabelecida com tranquilidade. No próximo julgamento, ela seguirá defendendo que não houve dolo eventual.

– A expectativa é que o júri ocorra dentro da legalidade, em prazo mais exíguo e que ocorra tudo bem, que seja feita a justiça dessa vez, que o Marcelo seja absolvido e possa seguir a sua vida trabalhando honestamente porque a dor de estar respondendo este processo, a dor de estar fazendo parte dessa grande tragédia que aconteceu, isso aí não vai se apagar nunca, essa pena vai ser eterna para ele – conta Tatiana.

Jean Severo, advogado de Luciano Bonilha Leão, afirma que vai reforçar que o réu não fazia parte da banda Gurizada Fandangueira, pois apenas prestava serviços para o gaiteiro do grupo, Danilo Jaques. Outra questão que o advogado informa que vai continuar defendendo é que o réu comprou os fogos de forma unitária e, por isso, não teria tido acesso às instruções da caixa, que indicavam uso exclusivo para ambientes externos.

– São esses dois pontos que vamos reforçar para o jurado compreender e absolver o Luciano, porque ele não tem nada a ver com isso. Estamos confiantes. Sinto que devido ao clamor popular que temos observado nas redes sociais, o Luciano tem uma chance muito grande de ser absolvido desse júri porque as pessoas entenderam que ele realmente não tinha participação em nada na banda e aquela primeira condenação foi completamente absurda – fala Severo.

Associação está se organizando para acompanhar o júri na capital

O presidente da Associação de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Gabriel Rovadoschi Barros, afirma que há ainda uma pequena chance de que o recurso enviado ao STF seja julgado antes do dia 26 de fevereiro. Ele indica que, caso ocorra esse julgamento em Brasília, com decisão favorável ao restabelecimento da decisão do primeiro júri, o próximo não seria mais necessário.

– Com um novo júri, podemos enfrentar mais dois ou três anos de recursos e isso é extremamente angustiante. Esse é o motivo principal que nos fez querer um adiamento para que houvesse tempo o suficiente para que se julgasse no STF o recurso, para, então, depois de fato ver se é necessário um novo júri. Esse pedido não foi por capricho, nem nada parecido. Foi por entender que seria uma estratégia que minimizaria os danos que sofremos – relata.

Foto: Nathália Schneider (Diário)

Apesar disso, a associação continua se preparando para ir até Porto Alegre acompanhar o novo júri. Até o momento, cerca de 50 pessoas, dentre familiares e sobreviventes, estão inscritas no TJ/RS para assistir o julgamento presencialmente. Assim como em 2021, excursões de ônibus vão sair de Santa Maria em direção à Capital. Os custos da hospedagem e alimentação estão em negociação com entidades que têm interesse em apoiar o grupo.

– A respeito da decisão, do resultado do júri, seguimos confiantes para que haja condenação como foi na última vez, sabemos que a história está sempre do nosso lado, sempre esteve e sempre vai estar, independente de quantos júris levarem. Os 11 anos mais o júri é uma carga diferente. É uma expectativa muito grande. Janeiro sempre é um mês difícil para todo mundo e, com o júri em fevereiro, nos bate em dobro, parece. É bem desgastante. Mas, não temos escolha – comenta Barros.

Entenda

O júri

Os quatro réus foram condenados no júri que durou 10 dias e ocorreu no Foro Central I, em Porto Alegre, em dezembro de 2021. Os sócios da casa noturna, Mauro Hoffmann e Elissandro Spohr tiveram pena de 19 anos e 6 meses e de 22 anos e 6 meses, respectivamente. Marcelo de Jesus dos Santos, vocalista, e Luciano Bonilha Leão, roadie da banda que tocava na boate na noite do incêndio, tiveram pena de 18 anos.

Após o resultado, as defesas recorreram, afirmando que houve várias nulidades durante o processo.​

Anulação

O pedido dos advogados foi analisado em 3 de agosto de 2022 pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS). Por dois votos a um, os desembargadores do TJRS entenderam que três nulidades eram válidasanulando, assim, o júri de 2021. Os quatro réus, que tinham sido condenados e cumpriam penas desde dezembro de 2021, foram soltos.

Depois disso, quem recorreu dessa decisão foi o Ministério Público. Em fevereiro deste ano, o MPRS submeteu um recurso especial ao STJ. O recurso especial é sempre dirigido ao STJ para contestar possível má aplicação da lei federal por um tribunal de segundo grau. No recurso especial do Caso Kiss, o MPRS estava questionando a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

Foto: Nathália Schneider (Diário)

O julgamento do recurso especial

No dia 13 de junho de 2023, o STJ começou o julgamento do recurso especial. Na oportunidade, o ministro relator, Rogerio Schietti Cruz, destacou que nulidades precisam de comprovação de descumprimento de norma e um prejuízo para a defesa, não devendo se basear em argumentos “meramente retóricos”, mas sim em razões plausíveis.​

O ministro comentou cada uma das nulidades, afirmando que todas eram inválidas em função de não ter causado prejuízos aos réus ou de serem atingidas pela preclusão (perda de prazo de manifestação pelas defesas). Dois ministros pediram mais tempo para analisar o processo e o julgamento foi adiado.​

Em 5 de setembro, o julgamento teve continuidade no STJ. Os ministros Sebastião Reis Júnior e Antonio Saldanha Palheiro não reconheceram o recurso do MPRS. O desembargador convocado Jesuíno Aparecido Rissato considerou válidas duas nulidades, dando provimento parcial ao recurso. Já a ministra Laurita Vaz avaliou uma nulidade como válida e afastou as outras três alegações das defesas.

Por quatro votos a um, a sexta turma do STJ não reconheceu o pedido do MPRS e manteve a anulação do júri de dezembro de 2021.

Novo julgamento é marcado

Após a decisão do STJ, o novo júri da Kiss foi marcado para 26 de fevereiro de 2024, em Porto Alegre.

O recurso extraordinário

Diante da anulação do júri, além de recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), o Ministério Público do Estado também submeteu um recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal (STF). Esse tipo de recurso é enviado à corte para discutir possível violação da Constituição Federal em decisões de outros tribunais. O STF ainda não analisou o recurso.

O pedido de adiamento do júri

A Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) e o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) fizeram pedido de adiamento do júri da Kiss até que o STF decida sobre o recurso extraordinário.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS)negou o pedido, afirmando que o recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, além de não ser possível estimar quando o STF poderá examinar em definitivo a questão.

Depois disso, a AVTSM e o MPRS solicitaram adiamento ao STF. Ainda em dezembro de 2023, o ministro da corte Dias Toffoli negou a solicitação por razões processuais. Ele considerou que o Supremo não poderia atuar no caso e sequer analisou o pedido liminar do Ministério Público do RS.

O MPRS recorreu da decisão indicando que despacho de Toffoli partiu de uma premissa errada. O ministro Luís Roberto Barroso pediu que a Procuradoria-Geral da República (PGR) fizesse a análise do recurso.

Foto: Nathália Schneider (Diário)

No início de janeiro deste ano, a PGR se manifestou favorável ao adiamento, pois compreende que a suspensão deva valer até que seja analisado o recurso contra a anulação do primeiro júri. A Procuradoria também indicou que a suspensão serviria como forma de economizar gastos com a preparação do julgamento.

Os prazos processuais estão suspensos até o dia 31 de janeiro em função do recesso forense. Por isso, a decisão do STF deve ocorrer somente após esse período, mas não tem data definida.

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