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Relatos da Kiss: enfermeira acompanhou de perto o sofrimento de familiares e amigos das vítimas

Relatos da Kiss: enfermeira acompanhou de perto o sofrimento de familiares e amigos das vítimas

Foto: Marcelo Oliveira (Diário)

Desde a tragédia na boate Kiss, os santa-marienses guardam memórias que gostariam de nunca ter vivenciado. Pais, mães, amigos das vítimas, assim como sobreviventes e pessoas que trabalharam na noite do dia 27 de janeiro de 2013 ainda sofrem com a dor e a lembrança do incêndio, que, para muitos, ainda não teve fim.

Desde o início da semana, o Diário traz uma série com relatos de pessoas que fizeram parte da tragédia da boate Kiss. Nesta quinta-feira, o depoimento é da enfermeira aposentada Liliane de Mello Duarte. Em 2013, ela fazia parte do quadro de oficiais de saúde do Hospital da Brigada Militar (HBM).

Na noite do dia 27 de janeiro, a enfermeira estava de sobreaviso e foi chamada pelo capitão para ir até o Hospital da BM. Quando chegou no local, se deparou com pessoas intoxicadas. Ela lembra que muitos jovens já estavam sendo intubados, pois a saturação piorava rápido.

Em um primeiro momento, Liliane e a equipe médica não sabiam o potencial daquele incêndio, principalmente, porque as pessoas não chegavam queimadas, mas com sinais de edema de pulmão, por exemplo.

Quando o capitão chegou na boate, ele ligou para a enfermeira solicitando que ela fosse até o local do incêndio, pois a situação era urgente.

– Eu fui a primeira mulher a entrar dentro da boate, depois dos bombeiros. O calor era insuportável, doía muito minha garganta. Quando entrei, eu usava, e ainda uso, uma Nossa Senhora da medalha milagrosa. Naquele momento, eu peguei a medalha e disse "minha Nossa Senhora, minha boa mãe, que eu consiga devolver essas crianças para os pais". Eu sempre chamo de crianças porque a maioria tinha idade para serem meus filhos – lembra.

Outro momento difícil que Liliane recorda foram as tentativas de contato com quem estava dentro da Kiss.

– Quando a gente chegou na boate um dos maiores impactos eram os celulares tocando. Já naquele momento, pactuamos que não íamos atender por respeito a protocolos mínimos.

Ela não permaneceu muito tempo dentro do local, e, logo, começaram as contagens e a retirada dos corpos. O próximo passo foi o transporte das pessoas até o Centro Desportivo Municipal (CDM). No ginásio, teve início o processo de identificação, que, segundo Liliane, durou cerca de 23 horas. Uma equipe com psicólogo ou psiquiatra, enfermeiro e médico acompanhava os pais. Liliane também ajudou na identificação e se emociona ao contar como foi presenciar a dor dos familiares:

– Teve um momento, que foi um dos mais difíceis, em que eu estava ajoelhada com uma mãe. Ela já tinha feito a identificação do corpo da menina, eu levantei e abracei a mãe, porque ela estava chorando muito. Então, ela me pegou pelo braço e me disse "falta outra". Ela tinha perdido duas filhas.

Para Liliane, aquele dia foi marcado pela tristeza e pelo trauma.

– Até a última hora, todos os pais tinham esperança que os filhos não estavam deitados ali naquele ginásio. Foi um dia muito difícil, que não pode ser em vão.

A enfermeira também se coloca no lugar das mães. Durante o dia, ela se manteve firme, mas quando chegou em casa chorou ao abraçar os filhos.

– Eu nunca vou ter a dimensão do sofrimento dessas mães. É muita dor. Quando uma mãe perde um filho, eu digo que todas as mães morrem juntas um pouquinho. Se tu perguntar para qualquer mãe, a única coisa que ela tem medo é de perder seus filhos. É um medo muito grande – lamenta.

Apesar de reconhecer a importância da atuação de vários segmentos durante a tragédia, Liliane avalia que Santa Maria ainda não melhorou em muitos aspectos, principalmente em estrutura.

– O que mais me dói é que pouco se aprendeu com essa tragédia. Não estou generalizando ou fazendo juízo de valor, porque não é da minha competência, mas não houve um entendimento da responsabilidade de todos enquanto entes públicos dos processos quando se fala em prevenção de incêndio, em controle e cuidados. Nós ainda não aprendemos a criar um isolamento acústico adequado, respeitar as leis que vieram pós-Kiss e as lotações dos espaços, ou a organizar os serviços de urgência e emergência na cidade – afirma.

Para ela, a Kiss representa um conjunto de pequenos erros de várias partes.

– Não foram 242 pessoas que morreram, foram muito mais, porque morreu a esperança, o sonho e a alegria de muitos pais e muitas famílias. Não foi um fato isolado, foi um conjunto de pequenas negligências. Foi aquela certeza cruel, que alguns têm, de que vai dar tudo certo, mesmo não fazendo tudo certo.

Ao afirmar que a dor da tragédia é imensurável e talvez nunca se cure, ela espera que o julgamento traga um alento para as mães, pais, familiares e amigos das vítimas.

– Não acredito na justiça dos homens. Eu sou católica e acredito na justiça divina, na justiça de Deus. A dor da Kiss nunca vai passar. A ferida sempre vai estar ali, mas eu espero que o julgamento ajude a colocar um curativo nesse machucado.

*Laura Gomes

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