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Invisíveis em três atos

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Primeiro Ato: Marias. A seguinte história foi contada pelo teatrólogo Augusto Boal (1931-2009). Teatro Glória, Belo Horizonte, 1999. O evento reuniu vários grupos populares de teatro. Um deles denominava-se Marias do Brasil. Era formado por 13 mulheres de nome Maria, todas negras e todas empregadas domésticas.

Como é de costume, após a apresentação todas voltaram ao palco e foram efusivamente aplaudidas. Apenas uma Maria não retornou. Boal perguntou ao diretor da peça o que havia ocorrido. Ouviu que uma das Marias tinha ficado chorando no camarim. Boal foi até lá ver o que tinha acontecido. Perguntou para a Maria o que havia ocorrido e ela disse, soluçando, coisas sem nexo. Tipo: uma boa empregada doméstica tem que ser invisível... Quanto menos vista melhor... lava, passa, cozinha, arruma a cama, recolhe as meias, os sapatos, as cuecas do patrão, as calcinhas da patroa, tira o pó, varre a casa... O importante é que isto seja feito sem que ninguém veja. Hoje quando eu estava no palco o rapaz da iluminação fazia com que a luz incidisse em mim, para eu ser vista. O rapaz do som ajeitava o microfone para eu ser ouvida. Boal ficou pensando que estes seriam motivos para alegria... Maria continuou: agora quando eu estava no palco à família para quem eu trabalho, há 18 anos, estava na plateia me vendo e ouvindo atentamente.

Pela primeira vez, em 18 anos, fui notada e escutada por eles. Agora sabem que eu existo. Boal insistiu que isso era motivo para alegria e não para tristeza. Maria segue... No palco eu não chorei. Chorei depois no camarim quando me sentei e olhei no espelho! Sabe o que eu vi? O que foi que você viu perguntou Boal? Vi uma Mulher...Mas Maria, todos os dias quando faço a barba e olho no espelho eu vejo um homem. Natural você ver no espelho uma mulher. Natural não! Essa foi a primeira vez que eu vi uma mulher no espelho. E antes o que você via quando olhava no espelho? Antes de fazer teatro, no espelho eu via uma empregada doméstica. Maria viu que era Maria e não somente o uniforme que escondia seu corpo. Maria levantou a cabeça! Voltou ao palco para receber os merecidos aplausos.

Segundo Ato: prisioneiros. Um meio dia qualquer. Uma família qualquer de classe média se reúne para almoçar. Todos à mesa, televisão ligada. Dona Zéfa, empregada doméstica, fica em pé ao fundo para atender algum pedido dos comensais. O jornal do meio-dia noticia uma rebelião na prisão local. Detentos colocam fogo em colchões. Os bombeiros são chamados para apagar o incêndio. A dona da casa, patroa da dona Zéfa, indignada fala: "Que absurdo esses bandidos, comem, dormem, roubam, matam, e ainda botam fogo nas camas. Aí tem que chamar os bombeiros. Se fosse eu, deixava que o fogo tomasse conta e morressem todos lá dentro". Dona Zéfa sai da sala em silêncio, vai até a cozinha, tira o avental e coloca atrás da porta. Vai embora chorando bem baixinho. Dona Zéfa tem um filho de 23 anos que está cumprindo pena no presídio local...

Terceiro Ato: Coronavírus. Depois de muita discussão, o governo brasileiro decidiu conceder um "Auxílio Emergencial" para quem não tem nenhum tipo de renda e que não pertence a nenhum programa assistencial - estão invisíveis. Os burocratas reunidos fazem seus cálculos. Concluem que vão beneficiar cerca de 30 milhões de pessoas. Começam o cadastramento e constatam que cerca de 90 milhões de pessoas serão alcançadas pelo benefício (dados do Dataprev), ou seja, o número de invisíveis mais que dobrou. Como assim? Quase metade da população brasileira é invisível?

Tenho uma sugestão para quem quiser "ver" esses "invisíveis": circulem mais fora dos seus condomínios fechados; dos clubes privados que frequentam; dos corredores das universidades; dos shopping centers; andem pelas ruas, sentem numa praça; peguem um transporte coletivo; podem até tomar coragem e pegar o carro e dar uma volta pela periferia da cidade, podem ir com os vidros fechados e com o ar-condicionado ligado - vão se sentir seguros... Até a próxima pandemia.

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