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Velha senhora

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Segundo domingo de maio de 2020. A velha senhora aguarda a ligação prometida pelos filhos, sozinha no quarto onde tem passado a maior parte de seu tempo. O imóvel antigo, onde agora reside, foi reformado recentemente. Parece um hotel, ainda que a placa instalada na sua frente tenha a palavra "residencial". Não por acaso a velha senhora se sente como uma hóspede naquele local.

Concordou em ser levada para lá ao entender que sua presença passou a ser um problema para a família. A falta de tempo dos filhos, a dificuldade para encontrar bons cuidadores, a estrutura da sua residência, inadequada para suas necessidades, foram os fatores que contribuíram para aquela decisão.

Com um rosário nas mãos enrugadas e o olhar fixo no celular, recorda o último dia das mães que passou na sua própria casa. Relembra o cenário barulhento com a família em torno da mesa saboreando os tradicionais pratos italianos que ela mesma preparou, bem ao gosto dos filhos.

Essa data sempre foi valorizada na sua família. Cultura herdada dos antepassados europeus, onde a figura materna é extremamente importante. Ela ganhou essa valorização ao nascer seu primeiro filho, na metade do século XX. Ainda era muito jovem e conhecida pela ativa participação nos movimentos emancipacionistas da época. Sua rebeldia, inicialmente reprimida pela autoridade paterna, acabou sendo sepultada pelo casamento, em nome da paz familiar.

Ainda assim, em 1962, comemorou a emancipação da mulher casada, sofreu pelo seu povo durante a ditadura, celebrou a Lei do Divórcio, em 1977, e acompanhou a promulgação da constituição cidadã, em 1988. Apesar de sua inteligência e conhecimento, exerceu unicamente a função de dona de casa. Porém, influenciada pelo ideal feminista, cumpriu a promessa feita a si mesma: de que suas filhas usufruiriam da liberdade e da independência econômica.

A velha senhora sabe que abriu espaço para a geração das mulheres que lhe seguiram, ainda que a família jamais tenha reconhecido sua luta, julgando que seus únicos interesses limitavam-se às questões domésticas.

Afastada daquele lar que cuidou por mais de cinco décadas, finge ignorar que o lugar onde se encontra é apenas um luxuoso asilo. Os seus dias passaram a ser uma longa espera pelos finais de semana, pela "visita" à sua própria casa. No entanto, agora até isso lhe está sendo negado. A pandemia lhe tirou esse prazer, assim como trouxe a proibição do aconchego de um abraço e do calor de um beijo.

A mulher que acompanhou tantas mudanças sociais, que transformou sonhos em realidade, que é fruto de uma geração tão forte, difusora da paz, da liberdade e do amor, no final de sua vida se depara com um inimigo invisível e mortal, perdendo o que tinha de mais precioso: a companhia de sua família.

Resta a esperança, não só para ela, mas para todos os idosos na mesma condição, de que o sofrimento da separação imposta sensibilize os corações e que as portas novamente se abram, trazendo-os definitivamente de volta para seus lares.

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