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Ensaio sobre a cegueira

O livro de Saramago, que serve de título para este artigo, conta a história de uma epidemia de cegueira que se espalha por uma cidade. Creio que qualquer semelhança com o nosso país não é mera coincidência. Volto ao tema da "armadilha da renda média" do artigo anterior. A partir de 2014, houve uma reversão do círculo virtuoso da economia brasileira. Ao descontrole das contas públicas seguiu-se um processo de judicialização da política e de politização da Justiça, que culminou com a perda do mandato da presidente da República e ao descrédito das instituições. Cegos pelo ódio, muitos procuram extravasar sua frustração em Lula e Dilma, que passaram a ser "bode expiatório" para todos os males que assolam o país. 

Você seria capaz de, nadando contra a corrente, admitir que a explicação para a crise econômica possa ser mais complicada do que as vontades e erros das pessoas? Se não, paramos por aqui. Se sim, vamos em frente. A teoria da "armadilha da renda média" explica uma contradição: países que tiveram um período favorável de crescimento, com o passar do tempo, acabam sofrendo um esgotamento à medida que os fatores responsáveis pela expansão vão chegando à exaustão. Isso acontece sempre que um país de renda baixa passa por um círculo virtuoso que o coloca num patamar de renda média. Lá chegando, os fatores de propulsão, por assim dizer, começam a atuar em sentido contrário. Dentre eles. destacam-se a falta de investimento e o atraso tecnológico.

No período em que Lula governou, as condições foram extremamente favoráveis ao crescimento. Primeiro, havia o boom das commodities - elevação de preços e da demanda por bens exportáveis pelo Brasil nos mercados externos, melhorando os termos de troca. Segundo, com os juros externos próximos de zero, aumentou o "apetite por risco" nos mercados emergentes como nunca se vira desde o pós-guerra. Terceiro, a oferta elástica de mão-de-obra favorecia à expansão da produção. Quarto, a taxa de câmbio se encontrava muito desvalorizada devido ao "risco Lula", o que beneficiava o controle da inflação.

A situação da economia brasileira era tão confortável nessa época que a crise financeira global de 2008/2009 quase passou despercebida entre nós. Na ocasião, o governo colocou em prática uma política anticíclica que trouxe bons resultados. Baseava-se no aumento do gasto público, crescimento real do salário-mínimo, redução da taxa de juros básica e expansão do crédito. Aparentemente, essa política só seria eficaz na "etapa fácil" do ciclo de crescimento e não quando as condições favoráveis haviam mudado, como acontecia no governo Dilma.

Nesse momento, o país já se encontrava prisioneiro da "armadilha da renda média". Um período comparável ocorreu com o chamado "Milagre Econômico" (1970-1973), durante a ditadura militar, quando a economia brasileira entrou em crise a partir de 1974.

Pelo raciocínio desenvolvido até aqui, a crise seria inevitável. Isso não significa que nada poderia ser feito ou que não existiram erros. Dilma exagerou na sua política de desoneração de impostos para as empresas, que não trouxe maior investimento privado. Por sua vez, o controle de preços dos combustíveis e a corrupção quase levou a Petrobrás à falência, bem como o aumento dos empréstimos do Tesouro ao BNDES prejudicou o controle das contas públicas. Tudo isso pode ser discutido. Para além do messianismo atual, existe espaço para a razão. Só não  enxerga quem não quer ver.

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