Kiss 10 anos

Para pais de vítimas da Kiss, indiferença da comunidade machuca e esquecer a tragédia não é uma opção

Leandra Cruber


Foto: Eduardo Ramos

10 anos, familiares de centenas de jovens que foram se divertir em uma festa na boate Kiss despertaram, durante a madrugada, com telefonemas desesperados que falavam sobre um incêndio no local.

Mesmo que uma década já tenha se passado e que a vida tenha seguido seu curso, em alguns momentos a Rosane Callegaro, mãe do Ruan, o Adherbal Ferreira, pai da Jennefer, e a Carina Corrêa, mãe da Thanise, sentem que os filhos ainda vão chegar em casa. 

Ao longo dos anos, a história de pais e filhos foi contada diversas vezes nas páginas do Diário e jornais de todo o Brasil. E, além de emocionar, quem lia costumava sentir empatia e se colocava no lugar das dezenas de familiares que aprenderam a dividir os dias com a ausência. Mas, agora, a situação parece ser diferente. 

Nesses 120 meses, pais de vítimas sentem que a indiferença tentou se tornar a protagonista da tragédia. A comunidade, que antes lotava as ruas de Santa Maria para homenagear cada uma das 242 pessoas que morreram naquela noite, deixou o desdém pela dor alheia prevalecer. O prédio da boate e a tenda na Praça Saldanha Marinho, que estampa os rostos das vítimas, viraram parte da paisagem e quem passa por ali nem sempre nota.

Para a professora Rosane Callegaro, a insensibilidade machuca e, dia após dia, enfraquece as mobilizações de pais que se dedicam há 3.650 dias na luta por justiça. O corpo e a mente ficaram mais cansados. Hoje, o choro se tornou menos frequente e, com muito esforço, Rosane e Paulo, pai de Ruan, conseguiram doar as roupas do filho que por anos permaneceram no guarda-roupas, como se o tempo realmente tivesse parado naquela madrugada. Mesmo assim, o casal dorme e acorda pensando em toda a felicidade que o filho único emanava e que deixou um grande vazio. 

— O tempo cronológico não é o mesmo tempo psicológico para quem perdeu o filho único. Os livros, os jogos, ainda permanecem na prateleira, assim como as fotografias. Todos os dias as olhamos, pois temos medo da memória nos trair e esquecermos alguns detalhes da vida.  Infelizmente, o ser humano perdeu um pouco da empatia. O colocar-se no lugar do outro. Falam, dão suas opiniões, sem nem pensar que estão ferindo o coração do outro, que já está sangrando há muito tempo — lamenta. 

Mesmo quarto, mesma luta 

Desde o dia 27 de janeiro de 2013, o quarto de Jennefer Ferreira permanece praticamente igual. A filha do empresário Adherbal Ferreira e de Maria Elizabete Mendes tinha 22 anos quando foi à Kiss com duas amigas que também não sobreviveram. Para o pai, o quarto é como se fosse um santuário. As fotos e os pertences da filha ajudam-o a lembrar do sorriso e de cada traço da personalidade da jovem. Adherbal foi o primeiro presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria e, durante dois anos, buscou, de forma incansável, respostas sobre as inúmeras irregularidades da boate apontadas pelo inquérito da Polícia Civil. 

Segundo ele, cada familiar enfrenta as consequências da tragédia de diferentes formas, mas o desejo por justiça é sentido por todos. 

— Até agora nessa questão dos 10 anos, as pessoas acham que deve ser esquecido. Mas se é uma situação que não podemos deixar cair no esquecimento. E de fato, todos os familiares, enquanto a justiça não for feita, o pessoal não vai ter aquele descanso que deveria ter.

A força do amor

Carina Corrêa acaricia emocionada o rosto da filha, uma das 242 vítimas da Kiss. A foto simula como o rosto da jovem estaria hoje, 10 anos depois. Foto: Eduardo Ramos (Diário)
  

A auxiliar de Nutrição Carina Corrêa perdeu a primogênita Thanise Corrêa na Kiss. Aos 18 anos, a jovem estudava Filosofia no Centro Universitário Franciscano e dividia com a mãe a paixão por questionar injustiças. 

Ainda que o incêndio tenha sido a maior tragédia da história de Santa Maria e do Rio Grande do Sul, não foram raras as vezes que Carina se deparou com opiniões sobre esquecer o que aconteceu para que as vítimas pudessem descansar. Apesar da frustração, a mãe de Dime, apelido carinhoso que deu para Thanise,  decidiu transformar o desdém em força para lutar pela preservação da memória da filha:

— Nossas crianças já estão descansando. Quem fala isso é porque não consegue entender a gravidade e a dimensão que a tragédia teve para o mundo. Feridas foram abertas quando eles saíram para se divertir e nós os encontramos, sem vida, deitados em um chão frio de um ginásio. Não se pode apagar o passado, mas parece que essa é a vontade de algumas pessoas. Mesmo que a ausência da minha filha e de mais 241 crianças doa a vida inteira, as homenagens fazem com que todo o amor que eles representam em nossas vidas seja lembrado. É por amor, e não por vingança. 


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