“Todo Dia a Mesma Noite”: Netflix revive dor da tragédia da Kiss com luta

Bernardo Abbad

“Todo Dia a Mesma Noite”: Netflix revive dor da tragédia da Kiss com luta

Guilherme Leporace/Netflix

TODO DIA A MESMA NOITE. (L to R) BIANCA BYINGTON as ANA in TODO DIA A MESMA NOITE. Cr. Guilherme Leporace/Netflix © 2023

Bianca Byington interpreta Ana, uma das mães das vítimas da tragédia da boate Kiss (Fotos: Guilherme Leporace/Netflix)

A partir da madrugada do dia 25, pessoas de todo o Brasil e do mundo poderão saber o que pelo menos 242 famílias e mais de 600 sobreviventes viveram na pior noite de suas vidas. A tragédia da boate Kiss, em Santa Maria, que completa 10 anos no próximo dia 27 de janeiro, agora estará eternizada em uma produção audiovisual. Com cinco episódios, a minissérie Todo Dia a Mesma Noite, lançada pela Netflix, é inspirada no livro-reportagem homônimo da escritora e jornalista mineira Daniela Arbex e, através de uma dramatização, apresenta o ponto de vista de pais, familiares e sobreviventes do incêndio que matou 242 pessoas em 2013.

Desde o anúncio do lançamento de uma obra dramatizada sobre o ocorrido, muitas críticas começaram a surgir nas redes sociais, apontando até mesmo que não havia necessidade de “desenterrar um assunto que deveria ser esquecido”. Mas, logo no início, Todo Dia a Mesma Noite mostra que veio para romper fortemente com esta última ideia. Conforme o trailer já apontava, toda a dor e o sofrimento estão lá, viscerais e com riqueza de detalhes, sobretudo no primeiro episódio, que reconstitui o momento exato do incêndio em cenas difíceis de assistir. E no seguinte, que retrata o incessante toque dos celulares junto aos corpos estendidos no ginásio do Centro Desportivo Municipal, o Farrezão. Mas os episódios que se seguem deixam claro o objetivo da produção: mostrar como os pais, amigos, namorados, colegas, irmãos e sobreviventes rapidamente tiveram que transformar o luto em uma luta por justiça, processo que continua até hoje.

Em ordem cronológica, todos os fatos que sucederam o acidente são apresentados: a criação de uma associação pelos pais e sobreviventes da tragédia, a investigação policial que resultou em uma lista de 28 indiciados pelo incêndio (que depois é reduzida para quatro), o momento em que os pais foram processados por promotores do caso e, claro, a longa e dolorosa recuperação física e emocional dos afetados pelo incêndio. Atores consagrados comovem, encarnando com respeito e força os protagonistas desta trama: os pais e mães da Kiss. Bianca Byington, Raquel Karro, Thelmo Fernandes e Paulo Gorgulho demonstram, através do comportamento, das expressões e ações de seus personagens, toda a complexa mistura de emoções que atravessa um pai que perde um filho: a negação, que logo dá lugar ao sofrimento, que vira raiva e, depois, luta. Mas nunca resignação.

PARA QUE NÃO SE REPITA

Aos atores mais jovens, como Miguel Roncato e Paola Antonini, coube a missão de interpretar vítimas e sobreviventes da tragédia. Todos com histórias bastante reconhecíveis, de vítimas da vida real. Eles aparecem pouco na história, mais no início da minissérie e através de alguns flashbacks. Mas o que eles representavam para seus pais e amigos está lá. A direção de Julia Rezende faz questão de destacar a ausência dos jovens em casas e vidas que, antes cheias de alegria e cor, são tomadas por silêncio e pelos tons cinzentos Cenas de festa de aniversário, a famosa “trova” entre os jovens na UFSM e na própria fila da boate, no início do primeiro episódio, trazem um tom de “normalidade”. Eram apenas jovens querendo curtir uma festa. Mas o telespectador já sabe qual será o destino deles.

A partir de algumas histórias bem escolhidas que são retratadas no livro de Daniela – a escritora ouviu mais de 100 pessoas na época – , o roteirista Gustavo Lipsztein construiu uma narrativa que dá conta de mensurar, em poucos episódios, a grande quantidade de pessoas afetadas pela tragédia, direta e indiretamente, mesclando pais e sobreviventes em personagens ficcionais. O olhar de Daniela Arbex, presente durante todo o processo de produção enquanto consultora criativa, também parece ter ajudado na ambientação da história em Santa Maria. A reprodução de cenários da Cidade Cultura, sobretudo os da fachada e interior da boate Kiss, impressionam pela semelhança e reforçam ao público, sobretudo o santa-mariense, que aquilo tudo ocorreu em uma cidade real, em um local real, que funcionava normalmente. O pouco fiel sotaque gaúcho emulado por parte do elenco – majoritariamente formado por estrelas do eixo Rio-São Paulo – pode incomodar em algumas cenas, mas nada que atrapalhe a transmissão da mensagem.

Paola Antonini (à dir.) interpreta Grazi, uma das sobreviventes da tragédia. A trama da personagem é inspirada em Kelen Ferreira, que também precisou amputar a perna devido ao incêndio.

O forte caráter de denúncia é percebido desde o início da produção. Por meio de falas de advogados, policiais e promotores, por exemplo, apresentadas de maneira exata como proferidas na vida real, Todo Dia a Mesma Noite lembra o tempo todo que o ocorrido não pode ficar impune em nenhuma das esferas da sociedade. Mas aí vem o encerramento da série que deixa um gosto amargo na boca. Essa é uma história que não tem fim. É uma noite que se repete. Muitos telespectadores, principalmente os de outras regiões do país e do mundo que, curiosos, devem buscar ver e relembrar os fatos de uma das maiores tragédias do Brasil, irão se perguntar: “qual é o fim da história?”. Essa pergunta é feita por todos nós há uma década.

Na esteira de um julgamento que se arrastou até ser anulado, a Netflix lança mão de seus recursos de produção para entregar uma obra que se soma, com muito respeito, à luta de pais, vítimas e de uma sociedade que, nem mesmo involuntariamente, deve deixar o ocorrido no esquecimento. Em uma das cenas mais arrepiantes da minissérie, os pais, reunidos em vigília em frente à boate, com os 242 corpos pintados na, agora mundialmente conhecida, Rua dos Andradas, gritam em uma só voz: “Por memória! Por justiça! Para que não se repita!”. Na vida real, eles o fazem até hoje.

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