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ÁUDIO: especialista aponta os 4 pontos polêmicos da Reforma da Previdência

Deni Zolin

Foto: Renan Mattos (Diário)

A proposta de reforma da Previdência tem causando grande polêmica em Brasília e bastante preocupação entre trabalhadores em todo o país. Vista pelo governo e por parte do setor empresarial como uma aposta para melhorar o cenário de negócios no país, ela tem várias propostas que ainda geram dúvidas e confusão, devido à complexidade do assunto e às peculiaridades de cada trabalhador. Para tentar esclarecer alguns pontos, o Diário entrevistou a doutora em Direito Previdenciário pela PUC/SP e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP), Jane Berwanger. Ela, que atua como advogada em Porto Alegre, esteve em Santa Maria para uma palestra sobre o tema e avalia, entre outras coisas, se a Previdência tem déficit ou não e se deve ou não passar por uma reforma.

Diário de Santa Maria - A reforma da Previdência tem tido dificuldade para tramitar. Que pontos da proposta ainda causam mais polêmica e podem gerar mais perdas para o trabalhador?

Jane Berwanger - São quatro os principais pontos de resistência dos parlamentares. A desconstitucionalização, que significa retirar todas as regras da Constituição, inclusive porque isso tira poder do Congresso para, futuramente, alterar regras. O segundo é a capitalização, que eu considero a mais grave, porque significa privatização da Previdência, considerando que o dinheiro dos futuros aposentados seria aplicado no mercado financeiro, e isso é muito instável. Outro ponto é o dos trabalhadores rurais, especialmente pela pressão das regiões Norte e Nordeste, em função da exigência de uma contribuição mínima, e por último, o BPC Loas (Benefício de Prestação Continuada), que é o benefício assistencial às pessoas idosas e que teriam várias regras mais restritivas não só à idade. Se não alterar esses pontos, acho que o governo vai ter mais facilidade de aprovar a reforma.

Diário - O governo segue insistindo. No caso do BPC, em que o governo quer antecipar o pagamento de 70 para 65 anos, mas reduzir o valor para R$ 400, isso seria só uma perda ou inconstitucional?

Jane - Em princípio, a Constituição poderia ser alterada mudando essa regra. Juridicamente falando, seria viável. Tem um detalhe ali. Uma coisa é alterar a idade e falar de um valor que não necessariamente será de salário mínimo, pois começaria com R$ 400, que hoje representa 40% do salário mínimo, mas no ano que vem, não mais, então, esse é um ponto que tem discussão, mas tem outros com reflexos talvez tão importantes. A renda de uma pessoa da família conta para compor a renda per capita dos outros. Por exemplo, seria inviabilizado que dois idosos recebessem o benefício assistencial. E um critério mais duro que existe na lei, mas que o Judiciário relativiza, é do 1/4 do salário mínimo, e essa regra iria para a Constituição, também é um problema, pois o Supremo já discutiu isso e vai também contra uma jurisprudência do STF. Claro que juridicamente isso não seria um problema, mas não sei como o Supremo iria interpretar isso. E a questão do patrimônio da família ser de, no máximo, R$ 98 mil (para poder receber o BPC). Isso é um pouco drástico demais, pois hoje uma família que tem terreno ou uma casinha vai ter esse patrimônio. Então, a gente teria limitador muito grande para poder conceder o benefício assistencial.

Diário - É um ponto que não foi muito divulgado, né?

Jane - Sim, acaba-se falando mais em aspectos gerais e não adentrando nos específicos. São tantas coisas complicadas na reforma que a gente não acaba falando muito porque é tanta coisa, que acaba nem abordando.

Diário - Cada caso é muito complexo e os detalhes que não são tão divulgados acabam afetando o direito do trabalhador e o entendimento de se as novas regras propostas são justas ou não, né?

Jane - Sim, exatamente.

Diário - No caso de tirar da Constituição as regras da Previdência, o risco é de não se saber o que o governo poderá mudar depois?

Jane - Tem dois problemas. O primeiro é que 10% dos deputados não terão mais poder de decidir. Hoje, são 308 votos (para aprovar mudanças), e passariam a ser 257. Seriam 51 votos a menos. Tem um problema de legitimidade nisso, porque são 10 milhões de eleitores que elegeram deputados, direta ou indiretamente, e que esses votos serão desconsiderados. E tem o problema que é jogar para lei complementar, e criar a possibilidade de uma lei complementar significa dizer que teremos uma lei até aqui, teremos uma regra de transição, e uma regra permanente que não será permanente porque logo em seguida poderá vir uma lei complementar. Então, talvez nós teríamos, em 4 ou 5 anos, quatro regras diferentes. Isso é muito ruim para o Brasil, para todos, porque cria muita regrinha diferente, as pessoas vão ficar confusas, inseguras: "Quando me aposento?", "quando não me aposento?".

Diário - Retirar da Constituição as regras da Previdência é uma proposta constitucional?

Jane - Sim, é possível, juridicamente, mas acho que politicamente ela não é legítima. O que pode ter problema jurídico de constitucionalidade é a proposta da capitalização, em função de que a Previdência Social é um direito genérico, é Previdência Social, não é capitalização. No momento em que se criaria espécie de substituição, acho que poderia enfrentar alguma discussão de constitucionalidade, é bem provável isso. O próprio ministro Fux, do Supremo, já se manifestou questionando isso. Outro ponto que poderia gerar questionamento de constitucionalidade é aquele artigo que diz que nenhum benefício poderá ser criado, estendido ou majorado sem a respectiva fonte de custeio total, quer seja por ato administrativo, lei ou decisão judicial. A questão da decisão judicial poderia ter uma discussão de afronta à tripartição de poderes. O Poder Judiciário teria de adentrar em questões do Poder Executivo, como Orçamento, de onde vai tirar o dinheiro, que são competências distintas.

Diário - Existe o debate antigo sobre déficit da Previdência. A senhora, por conhecer tão bem o assunto, pode nos dizer se há ou não déficit? E a reforma é ou não necessária?

Jane - A questão do déficit, se existe ou não, é forma diferente de fazer a conta. A diferença é a seguinte: se jogar todas as contribuições sociais para dentro e tirar dali dinheiro para saúde, assistência e previdência, sobra dinheiro. Se pegar especificamente a Previdência, falta dinheiro. Se a reforma da Previdência é necessária? Acredito que sim, num certo nível. Por exemplo, se a gente falar em servidores públicos, mesmo criar uma idade mínima para aposentadoria, por tempo de contribuição e algumas coisas, sim. Mas acho que o discurso está um pouco desconectado do projeto, porque o governo fala em acabar com privilégios, mas os militares, que representam R$ 99 mil por pessoa de prejuízo, vão representar 0,8% do impacto da reforma. Por outro lado, você está reduzindo salário-família, abono salarial. Para você ter uma ideia, no Rio Grande do Sul não haverá mais salário família e abono salarial. Não terá mais porque esses benefícios serão pagos para quem ganha até um salário mínimo e nós temos um piso regional que é superior ao salário mínimo. Então, praticamente corta esses benefícios. Terminar com privilégio é ótimo, mas acabar com salário família, que é de R$ 32 por filho para uma pessoa que ganha até R$ 1,3 mil, é um exagero. Os próprios dados divulgados pelo governo informam que 12,6% do impacto que terá a reforma é do Regime Próprio (servidores públicos), e 87% é regime geral (trabalhador da iniciativa privada), LOAS, abono. Há um problema de discurso aqui. O governo fala em acabar com privilégios, mas afeta a grande massa da população. Então, se ele falasse assim "todos terão de dar a sua parcela, todos os brasileiros terão de se sacrificar", servidor público e regime geral (trabalhador privado), seria coerente.

Diário - O problema do déficit é causado pela desvinculação de receitas da União (DRU), em que o governo retira verbas da Previdência para cobrir os rombos de outros setores?

Jane - A Constituição diz que haverá um Orçamento da seguridade social. O que entra para esse orçamento? A contribuição que você faz como empregado, aquela que o teu empregador faz sobre o salário, que o produtor rural faz, a Cofins, a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, o PIS, tudo entra para esse caixa da seguridade. Dali, desse todo, retira recursos para a saúde, previdência e assistência. Fazendo essa contabilidade, dessa forma, sobra dinheiro. Nos últimos três anos é que não, em função da crise econômica. Mas dados oficiais de 2006 a 2015, sobraram R$ 600 bilhões, e aí esse dinheiro, com a desvinculação, o governo acabou aplicando em outras áreas. Sem entrar no mérito se essas outras áreas deveriam ou não ter esse dinheiro, mas acaba tirando da seguridade e daí diz "olha só, está faltando dinheiro". Agora, se olhar especificamente contribuição previdenciária e benefício previdenciário pago, falta dinheiro. Mas justamente o Orçamento da seguridade social já foi feito para dar conta disso. A CPMF, quando foi criada, diziam que era para ajudar na saúde e na previdência, só que quando foi a hora de gastar a CPMF, não gastaram nem para a saúde nem para a previdência.

Diário - O grande problema é que o governo gasta muito mais do que arrecada e acaba se socorrendo da Previdência para cobrir os rombos?

Jane - Isso, acaba impactando a Previdência. Tem outro elemento interessante é que o Brasil paga muito de juros e amortização da dívida pública. Então, hoje dados oficiais do Orçamento da União de 2018 executado, 24% foi de gasto com a Previdência, e 40% com juros e amortização da dívida. O governo diz mais ou menos assim: "Mas no momento em que gasto muito com a Previdência, eu não consigo pagar a dívida e ela aumenta." Mas ela não está aumentando por causa da Previdência, porque ela vinha aumentando já em função de outras questões, de política monetária, de juros, Selic, etc. Então, na verdade, se nos últimos três ou quatro anos a gente tem um impacto muito maior da Previdência no Orçamento em função da crise econômica, 12 milhões de desempregados que contribuíam e não contribuem mais, empresas que fecharam, trabalhadores autônomos que não contribuem, eu não posso jogar todo o peso nisso. No mínimo, teria de pensar em outras alternativas. Quando o governo quer colocar isso de forma meio apocalíptica, "ou reforma a Previdência ou vai acabar o mundo", ele está criando um problema para si mesmo, como se ele tivesse só um objetivo ou uma saída. Claro que ele tenta forçar um pouco a reforma com isso, mas isso tem um efeito contrário muito ruim. Quando ele diz para o mundo "nós vamos reformar a Previdência e isso vai salvar o Brasil", mas ele não consegue, significa que o Brasil não tem solução. Na verdade, esse é o problema.

Diário - No caso dos servidores públicos, já houve reformas em anos anteriores. É preciso novas mudanças na Previdência para o funcionalismo público?

Jane - O impacto da reforma para o servidor público é pequeno porque quem entrou no serviço público, a partir de 2013, no âmbito federal, e de 2016, no Estado, já não vai se aposentar mais com aqueles salários maiores. Já vai se aposentar no teto, porque a grande reforma já foi feita. Agora tem aqueles pequenos ajustes que são viáveis e possíveis, como, por exemplo, o cálculo da aposentadoria não ser feito pela remuneração, mas pela média, como é no regime geral. Acredito que isso é possível e que talvez seja necessária uma regrinha de transição ou algo. Só que isso não causa muito impacto. Na verdade, tudo aquilo que já se fala dos juízes e dos grandes salários, não causa muito impacto porque a grande reforma já foi feita.

Uma reforma da Previdência que não cause um impacto tão drástico na população, ela precisa de 30 anos, porque é o tempo em que os atuais aposentados vão deixar de receber. Qualquer coisa com expectativa maior do que isso vai causar um sofrimento muito grande na população. Então, a proposta é muito dura em função de querer fazer em 10 anos o que é aconselhável que se faça em 30.

Diário - No caso dos militares, a senhora acha, então, que deveria haveria uma contribuição maior na reforma, com regras mais rígidas do que está sendo proposto?

Jane - Exatamente. Não acho justificável querer que uma trabalhadora rural trabalhe cinco anos a mais, hoje ela se aposenta aos 55 e vai se aposentar aos 60 anos, enquanto uma filha de militar continuar recebendo o benefício. São coisas incoerentes. Acho que sim, militar tem sua remuneração fixa. Ok, ele tem comprometimento, mas todo trabalhador tem de ter hoje em dia. Se não tiver comprometimento no teu trabalho (na iniciativa privada), você não vai ter trabalho. Essas coisas não justificam. Só o que justifica mesmo é o poder militar. Mas acho que no momento em que o governo é muito militar, ele teria condições de chegar e dizer "Olha só, vamos dar a nossa parte". Seria muito mais legítimo também falar da reforma dos outros se ele conseguisse, nos militares, fazer uma proposta mais rígida.

Diário - A gente vê militares indo para a reserva, muitas vezes, com 48 anos ou 50 anos. Aqui no Estado, em que estamos com uma crise grave, há oficiais da Brigada se aposentando com menos de 50 anos. Nesses casos, deveria haver uma idade mínima maior?

Jane - Deveria haver uma idade mínima. Penso que deveria haver uma diferenciação entre policial militar e Forças Armadas, porque policial militar entra para o que der e vier. Forças Armadas, eles correm riscos, mas são coisas mais inerentes a exercícios, não é uma coisa mais ostensiva do dia a dia como é com o policial militar, que está no risco diário, eles enfrentam assaltantes. Então coloca uma vida em risco mesmo. Então, acho que entre essas duas categorias deveria haver uma diferenciação.

Diário - E no caso dos professores, o que a senhora acha da proposta?

Jane - Para professores, é uma situação meio engraçada. A proposta prevê idade de 60 anos para homens e mulheres e 30 anos de contribuição. Para os demais servidores, é 25 anos. É castigo ser professor? Ele tem de trabalhar mais para poder se aposentar com um pouco de idade a menos. A professora tem uma vantagem de dois anos. É muito estranho isso. Tem coisas que a gente, às vezes, acha que foi feito sem se perceber a incoerência. É uma coisa que teria de, no mínimo, deixar os 25 anos (de contribuição para professores).

Diário - Hoje, a senhora avalia que ainda é necessário haver diferenciação de idade para aposentadoria entre homens e mulheres? Por quê?

Jane - Um dado importante para isso é que, na aposentadoria por idade, as mulheres têm, em média 17,4 anos de contribuição. Elas não alcançam nem os 20 anos que o governo quer para o futuro, o que é um problema. Por que isso ocorre? Durante muito tempo, as mulheres deixavam o trabalho para cuidar dos filhos. Hoje, elas deixam o emprego para cuidar dos pais ou dos sogros. Na verdade, esse trabalho doméstico e familiar acaba sobrecarregado para a mulher. Então, isso acaba fazendo com que ela acabe tendo um menor regularidade contributiva. Ela saiu para cuidar dos filhos e, quando ela vai voltar, não é bem assim. Ela demora para se reinserir no mercado. Ao longo da vida, ela tem irregularidade contributiva. Isso tem de ser considerado. Acho que precisa ter, não só uma idade diferente, mas um tempo de contribuição diferente para a mulher, em função disso tudo.

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