reportagem especial

Por uma consciência além dos novembros

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É uma data celebrada, conquistada e reconhecida. O dia 20 de novembro, aniversário da morte do líder negro Zumbi dos Palmares (1655-1695), virou o Dia da Consciência Negra a partir do movimento organizado como um contraponto ao 13 de maio de 1888, data da Abolição da Escravatura. Por décadas, a historiografia oficial remeteu ao 13 de maio, o símbolo da igualdade entre pretos e brancos, e da liberdade dos escravos, alcançada no por meio de uma mera rubrica real escrita à pena. Mas a história teve seu revés.


- No momento em que se faz esse tensionamento de que o 13 de maio não é dia de negro e não é representativo, o 20 de novembro passa a ter um simbolismo de resistência e luta. Durante muito tempo, brancos abraçaram no 13 de Maio, uma data para colocar um ponto final nas realidades de violência e segregação racial, como se tudo tivesse sido resolvido pelas mãos da princesa Isabel, uma figura branca e da monarquia brasileira - diz Franciele Rocha de Oliveira, historiadora e integrante do Grupo de Estudos sobre Pós-Abolição (Gepa) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

É também pela escrita que esse grupo que Franciele participa busca discutir as liberdades e trajetórias negras, que não se reduz ao passado de escravização. Isso porque, há um ano, os alunos debruçam-se em resgatar registros da imprensa negra na cidade.

Esta reportagem mostra esse trabalho junto de um sólido movimento que tem se articulado em Santa Maria. São frentes que prezam pela valorização do conhecimento, da educação, da cultura, da arte da escuta e do trabalho de coletivos e organizações como o Ara Dudu.

Juntos, estudam, difundem e tentam coibir o preconceito que ainda persiste no ambiente acadêmico, no mercado de trabalho e mesmo no esporte - como o vexatório e recente caso de ataque racial ao jogador Taison (ex- Internacional). Mas, mais do que isso, todos buscam reforçar a autoestima e o protagonismo do povo negro para celebrações além da escravidão e para a formação de uma consciência que extrapole esses e outros novembros.

IMPRENSA NEGRA PARA RESGATAR A HISTÓRIA ESQUECIDA DE SANTA MARIA
No Coração do Rio Grande já pulsaram pelo menos 22 organizações negras dos séculos 19 e 20. São irmandades e clubes sociais negros, escolas de samba, times de futebol, além patrimônios que permanecem edificados, ainda que sem quaisquer políticas de restauração. Buscar essas histórias, trazer trajetórias à tona ou mesmo redescobri-las têm sido o que move o Grupo de Estudos sobre Pós-Abolição (Gepa) da Universidade Federal de Santa Maria com subsídio de um amplo levantamento sobre a imprensa negra na cidade. Já foram identificados cinco periódicos desde 1919. Neste mês, comemora-se um ano de pesquisa com o lançamento da Campanha de Preservação dos Jornais da Imprensa Negra de Santa Maria.

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- Temos a Irmandade Negra da Igreja do Rosário, o Clube União Familiar e comunidades quilombolas. A história de Santa Maria é pautada na escravidão, mas na resistência. Geralmente se olha para a população negra apenas em escravidão, nos livros didáticos, sobretudo, na escola. segundo, que essa Imprensa Negra, realizada desde 1919 em Santa Maria, surgiu mesmo com o intuito de "combater estultos preconceitos de raça", era isso que os redatores e gerentes de O Rebate dizia. Ou seja, é uma imprensa comprometida com a denúncia do racismo vivido na cidade e em luta, criando mecanismos para se ver representada - defende Franciele Oliveira, uma das pesquisadoras do Gepa.

Os periódicos - O Rebate (1919), O Succo (1921), O Vaqueano (anos 1930) A Voz do Treze (1965), O Tigre (sem data específica) congregavam intelectuais negros do início do século, sujeitos que aprenderam a ler e a escrever tornando-se comunicadores e registradores de muitos fatos esquecidos e comunidades subestimadas. *Colaborou Pedro Piegas

PAI DE SEU JUSTO PAGOU CARO PELA CARTA DE ALFORRIA
No levantamento do Gepa, curiosidades e histórias riquíssimas sobre o passado negro da cidade têm sido resgatadas. Uma delas é a da família de Justiniano Rodrigues Cruz, conhecido como "seu Justo", trabalhador dos Correios, morador do Bairro Rosário e avô de Jorge Cruz, professor da Arquivologia UFSM. Ele faleceu em 1981, sendo um dos mais importantes articulistas da Imprensa Negra, filho de pessoas escravizadas. O contato foi viabilizado pelo cartunista, também professor da da UFSM e vizinho de seu Justo, Máucio Rodrigues. 

O trabalho de campo do Gepa já conta com entrevistas e cópias de acervos pessoais, além de documentos, casamentos, batismos e cartas de alforria. Uma delas é do pai de seu Justo, Eustáquio Rodrigues da Cruz, casado com Ignácia Maria Dias, que começou a pagar a alforria em 1861 e terminou em 1866. O valor era de 2 contos e 600 mil réis, uma fortuna à época. Ele pagou ao grande proprietário de terras de Santa Maria e região David José Medeiros.

Você possui exemplares desses ou de outros jornais negros de Santa Maria?
Para contar outras histórias, além da do seu Justo, a divulgação da campanha, que circula nas redes sociais e em material impresso tem como intuito localizar os jornais negros que eram realizados pela comunidade negra e para esta comunidade. Além de identificar seus sujeitos criadores, descendentes e guardiões da Imprensa Negra local, construindo uma rede de apoio. O projeto prevê entrevistas com descendentes da imprensa negra e alguns doadores/guardiões das fontes originais. 

  • Contatos - (55) 99692-7427, com Taiane e (55) 98151-4583 com Franciele. ou [email protected]; facebook.com/gepaufsm

Pontos de coleta ou informações  

  • Arquivo Histórico de Santa Maria, na Rua Appel, nº 900 - Bairro Fátima. Fone - (55) 3220-8300
  • Secretaria dos cursos de História ou Arquivologia da UFSM - CCSH da UFSM, prédio 74, no campus de Camobi. Fone - (55) 3220-9224, 3220-9226, 3220-9549 e 3220-9256

NEI D'OGUM, BEATRIZ LONER E AS INSPIRAÇÕES DENTRO E FORA DA ACADEMIA
Criado em 24 de março de 2016, sob a coordenação do professor Luis Augusto Farinatti, o Gepa é formado por alunos de graduação e pós-graduação em História da UFSM. Atualmente, possui 25 integrantes, entre eles, estudantes, técnico-administrativos em educação e professores, sendo a maioria mulheres e ingressos na universidade pelas ações afirmativas, cotas sociais ou raciais. 

O grupo também tem inspiração de intelectuais dentro e fora da academia, como a professora Beatriz Loner, cujo falecimento foi no ano passado, e o ativista religioso e social Nei D'Ogum, (na foto) que morreu em agosto de 2017. Beatriz ficou consagrada por suas pesquisas em escravidão e pós-abolição estudando as primeiras quatro gerações da família Silva Santos no Brasil. Já no legado de Vilnes Gonçalves Flores Jr, o Nei D'Ogum, homem negro, membro da comunidade LGBTQI+ e morador de periferia, estão a criação do concurso Beleza do Ébano, da Muamba e do documentário Pobre, Preto e Puto. O filme saiu premiado como Melhor Produção no Festival de Cinema de Gramado em 2016. Neste ano, o Nei Day, em homenagem ao militante, completa a terceira edição.

FERIDAS ABERTAS: DO PRECONCEITO A TAISON À INVISIBILIDADE DE ORECO
Expulso pelo árbitro durante uma partida entre Shakhtar Donetsk e Dínamo de Kiev, pelo Campeonato Ucraniano no dia 3 de novembro, o atacante Taison, do Shakhtar e ex-Inter, deixou o campo em lágrimas. Mas saiu de cabeça erguida. Após ser alvo de coros racistas da torcida do Dinamo, chutou uma bola em direção aos torcedores adversários, mostrando o dedo médio. O companheiro de equipe e também brasileiro Dentinho demonstrou revolta e não concluiu o jogo, que terminou em 1 a 0 para o time adversário. 

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O vexame manchou mais uma vez o futebol mundial e expôs uma ferida ainda aberta no universo esportivo: a discriminação contra negros.

- Infelizmente, educação, não parece ser o "nosso forte". Penso que medidas punitivas aos envolvidos, e, em último caso, aos clubes, se não tomarem medidas para prevenir tais atos, sejam um passo importante. Mas não é punição qualquer, tem de ser algo forte, que sirva de exemplo - avalia Anderson Daronco, árbitro Fifa de 38 anos, formado em Educação Física pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), que apita desde 1999.

Gaúcho, nascido em Pelotas, Taison é engajado em projetos sociais e, há anos, é um combatente do preconceito dentro e fora das redes sociais. Uma das ações do jogador ganhou a imprensa mundial quando, em 2015, ele distribuiu roupas, cobertores e alimentos a moradores de rua que conhecia desde a infância, na da cidade onde nasceu e cresceu.

ORECO, O NEGRO DE SANTA MARIA QUE GANHOU O MUNDO
Oreco no campo, mas Valdemar Rodrigues Martins no registro, foi o primeiro e único santa-mariense a disputar uma Copa do Mundo. Assistiu do banco de reservas à final de 1958, primeiro título mundial do Brasil. Um jovem craque chamado Pelé, negro como Oreco, foi o principal destaque. Valdemar, contudo, era Santa Maria na Suécia. 

style="width: 50%; float: right;" data-filename="retriever">O Coração do Rio Grande foi seu palco um pouco antes. Na cidade, atuou no extinto Esporte Clube Ideal e se profissionalizou no Inter-SM em 1949. No Alvirrubro da Baixada, foi eleito o melhor jogador de todas as 28 partidas que disputou pela crônica esportiva do Jornal A Razão.

O talento levou Oreco a Porto Alegre. Seu destino foi o Internacional. Em sete anos no clube, foram cinco títulos gaúchos. Foi durante a passagem pelo Colorado que Oreco integrou a seleção brasileira campeã do Pan-Americano, em 1956, no México.

Estreou pelo Corinthians em 1957. Com mais holofotes no futebol paulista, Oreco permaneceu no radar para a Copa do Mundo de 1958. Foi o único gaúcho no elenco campeão mundial. Foi um representante negro de Santa Maria que ganhou o mundo.

Nara Ilha Rodrigues, 46 anos, também é integrante do Gepa e se dedica a estudar a figura de Valdemar Rodrigues Martins. Ela lamenta que o jogador que tem um livro (do escritor Candido Otto da Luz), uma medalha e um ginásio homônimo (no Bairro Tancredo Neves) seja pouco conhecido na própria cidade.

- É preciso trabalhar essa memória. Ele foi um santa-mariense vencedor. Sofreu preconceito para começar a jogar no time do Ideal, sendo o primeiro menino negro a ser aceito na equipe. Depois, abriu caminho para muitos outros - conta Nara. *Colaborou Leonardo Catto

EXPRESSÃO E MILITÂNCIA POR MEIO DA ARTE
Pela primeira vez, a Associação de Artistas e Produtores Negros Ara Dudu marca presença na Multifeira de Santa de Maria (Feisma), um dos maiores eventos de serviço da região. Com artesanato, axé, afro-bonecas, patuás, as lindas sereias pretas, o grupo fortalece a afroeconomia e a conscientização negra em cada detalhe, conforme menciona a presidente da Ara Dudu, Carmen Lucia Coelho Chaves, a Baiana. 

- Temos uma herança ferroviária e nunca vi uma placa que homenageasse algum negro que ajudou no desenvolvimento da cidade, por exemplo. Ninguém tira o lugar de ninguém. Estamos aqui para geração de renda, mas para compartilhar nossa cultura, nossa religião, nossa arte. Santa Maria tem uma dívida muito grande com a comunidade negra. Se Ariel, uma sereia do fundo do mar, sempre foi ruiva, para nós ela remete à Iemanjá, uma orixá negra - analisa Baiana.

Isadora Bispo, vice-presidente da Ara Dudu, vai além criticando o fato de o Estado liderar ranking de injúria racial. Segundo ela, o Rio Grande do Sul conta sua história a partir de alemães e italianos:

- Só estaremos sossegados quando taxas de morte e violência diminuírem e paridade racial em cargos de poderes. Alguns não usam esse discurso, mas precisamos compreender uma conciência de forma ampla, que toque a todos, não somente os negros. Quando falamos do termo consciência negra, criado pelo gaúcho Oliveira Silveira, não falamos só das pessoas negras que se identificam com sua raça, mas para que a sociedade como um todo tenha consciência da importância da nengritude na construção desse país que chamamos de Brasil. Não fossem essas pessoas que derramaram muito sangue, talvez não tivéssemos tudo o que temos hoje de empreendimentos e progresso. Precisamos de espaço, de empregos com salários iguais, de mulheres negras com direitos iguais.

CONQUISTAS E RETROCESSOS

  • Foi somente em 2003 que o governo federal deu início a projetos de políticas públicas de ações afirmativas ao combate à desigualdade da perspectiva racial. A partir de então, surgiram legislações como a Lei 10.639/2003, que inclui no currículo da Rede Básica de Ensino a História e Cultura Afro-Brasileira;
  • A Lei 12.711/2012, que prevê a reserva de vagas por cotas nas universidades públicas (que vale para alunos com baixa renda, indígenas e outros casos, incluindo estudantes negros); e a Lei 12.990, que reserva aos negros 20% das vagas ofertadas em concursos públicos federais
  • Santa Maria já presenciou, em 2012, acontecimentos como uma marcha contra o sistema de cotas na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
  • Trabalhadores brancos possuem renda 74% superior, em média, em relação a pretos e pardos, diferença que se manteve praticamente estável ao longo dos últimos anos.As informações são do estudo "Desigualdades Sociais por Cor ou Raça", divulgado na última quarta-feira Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

NEGROS SÃO MAIORIA NAS UNIVERSIDADE PÚBLICAS PELA 1ª VEZ
A proporção de pessoas pretas ou pardas (que compõem a população negra) cursando o Ensino Superior em instituições públicas brasileiras chegou a 50,3% em 2018. Apesar desta parcela da população representar 55,8% dos brasileiros, é a primeira vez que os pretos e pardos ultrapassam a metade das matrículas em universidades e faculdades públicas. O IBGE atribui a mudança na composição do aluno ao sistema de cotas, mas os estudantes criticam a pouca representatividade e o preconceito dentro das próprias instituições.  

- O debate é nas escolas. A gente sabe que o racismo acontece lá dentro. As crianças precisam desse debate que é silenciado para que essa estrutura seja mudada e isso não chegue às universidades. A base é educação - avalia a Taiane Anhanha Lima, graduanda do curso de História UFSM, membro do Grupo de Estudos sobre o Pós-Abolição (Gepa).

No último dia 6, uma iniciativa do Observatório de Direitos Humanos da Universidade Federal de Santa Maria reuniu os alunos negros da instituição para fazer uma foto coletiva. A ideia era que esses estudantes pudessem se conhecer, criar redes de apoio, dividir dificuldades e, também, vitórias. Cerca de 50 acadêmicos participaram da ação. *Com informações da Agência Brasil

PROGRAMAÇÃO DO MÊS DA CONSCIÊNCIA NEGRA EM SANTA MARIA

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  • 18 de novembro, 17h - Roda de conversa sobre intolerância religiosa. Local: Coordenadoria de Ações Educacionais (CAED) da UFSM
  • 19 a 21 de novembro - Ara Dudu e Fundo Elas participam do II Diálogo Elas na Moda e sem Violência no Rio de Janeiro (RJ)
  • 20 de novembro, 14h - JAI negra - exposição de trabalhos dos estudantes negros. Local: Praça Saldanha Marinho
  • 20 de novembro, 16h - Marcha contra o genocídio do povo preto. Local: Praça Saldanha Marinho
  • 20 de novembro, 20h30min - Banda Sinfônica da UFSM se apresenta com Deborah Rosa, Arianne TeLima, Ediana Larruscain e a Escola de Samba Vila Brasil, que percorrem os famosos musicais, a black music, a música popular brasileira e os sambas-enredos que marcaram época. Local: Centro de Convenções da UFSM
  • 22 de novembro, 17h30min - Cine Debate sobre filme "Moonlight". Local: Prédio 67 da UFSM
  • 23 de novembro - Roda de conversa: protagonismo de mulheres negras no meio acadêmico e no mercado de trabalho. Local: Colégio Técnico Industrial de Santa Maria
  • 23 de novembro, 11h - 4º Encontro de Mulheres Negras Dandara. Local: Casa do Estudante Universitário (CEU) I
  • 24 de novembro, 15h - 3º Nei Day com apresentações culturais. Local: Praça dos Bombeiros
  • 25 a 30 de novembro - Denegrir - Exposição Coletiva de Artistas Negras (os). Local: Universidade Federal de Santa Maria
  • 26 de novembro, 15h - Lançamento do livro Abdias do Nascimento. Local: Prédio 67 da UFSM
  • 29 de novembro, 17h30min - Cine Debate sobre o filme "Infiltrado na Klan". Local: Prédio 67 da UFSM

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