reportagem especial

Nos 90 anos do voto feminino, a luta é por representatividade e mais cargos eletivos

Janaína Wille e Pâmela Rubin Matge

data-filename="retriever" style="width: 100%;">Foto: Pedro Piegas (Diário)

Ser ouvida mais do que meramente falar. Escolher. Ocupar espaço e legislar por direitos sobre o próprio corpo, sobre vida em sociedade e para uma sociedade mais respeitosa e igualitária é o que milhares de mulheres buscam. A luta pela representatividade feminina passa por associações e coletivos de meninas, mulheres e transsexuais até cargos eletivos. Passa pela urna eletrônica no ato de votar e poder ser votada. A propósito, no ano em que completam-se nove décadas do voto feminino no Brasil - instituído em 24 de fevereiro de 1932 -, ainda tem muito o que se avançar, mas também há o que celebrar. 

No país que teve uma única presidente como mulher: Dilma Rousseff ( 2011-2016), bem como o Estado teve uma só governadora, Yeda Crusius (2007-2011) ,atualmente, novas representações marca história. No mês passado, a desembargadora Iris Helena Medeiros Nogueira tornou-se a primeira mulher a assumir a presidência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ/RS), cargo, até então, ocupado por homens. No Coração do Rio Grande, a Universidade Federal de Santa Maria (USFM) conta pela, primeira vez, com uma mulher vice-reitora: Martha Bohrer Adaime. 

E nesta trajetória marcada por embates e luta, ainda se defende mais mulheres na política, o financiamento adequado nas campanhas femininas e o repúdio a comentários sexistas. A popularizada minirreforma eleitoral de 2021 caminha, pois, neste sentido. Entre as principais mudanças estão as que estabelecem que os votos dados a candidatas mulheres e a pessoas negras serão contados em dobro para efeito da distribuição dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC)-também chamado de Fundo Eleitoral - nas eleições de 2022 a 2030. Outra novidade é que será primeira eleição em que a violência política contra as mulheres será tipificada como crime.

ENTREVISTA: Não há incentivo financeiro para os partidos terem mais mulheres. Algumas agremiações apresentam candidaturas femininas apenas para cumprir a cotas legais'

O incentivo à participação de mulheres em posições de liderança, especialmente nas eleições de 2022 é, inclusive, o tema da campanha nacional lançada pela organização não-governamental #ElasnoPoder. A mobilização Indique uma Mulher busca encorajar mais candidatas. 

- A campanha surgiu por vermos nas pesquisas que fizemos é que um dos principais impedimentos para a escolha do caminho da política é porque elas não veem em um lugar de liderança, pois a vida inteira ouviram que elas não deveriam estar ali. Ontem (dia 10 de março), por exemplo, tivemos um show de democracia. Meninas choraram e comemoraram e não acreditaram que estavam entrando no plenário e subindo na mesa da Câmara dos Deputados. Elas se viram ali. Outras meninas acompanharam a imagem em rede nacional, vão olhar para a política com outros olhos: como um potencial caminho para elas também, não só para homens - explica a diretora de articulação política da ONG, Isabela Rahal.

O ato que marcou o dia 10 de março, mencionado por Isabela diz respeito ao fato de o Congresso Nacional ter derrubado vetos a dispositivos do Projeto de Lei que deu origem à lei do Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual. Com a derrubada do veto, serão reincorporados na Lei 14.214 os trechos que determinam a distribuição gratuita de absorvente higiênicos para estudantes de baixa renda, mulheres internas no sistema prisional ou em situação de rua.

- Foi de uma parlamentar mulher que nasceu o primeiro projeto de lei federal sobre dignidade menstrual (a deputada Marília Arraes do PT-PE). Foi de um grupo de meninas que nasceu a mobilização em vários Estados e municípios. E foi de outra parlamentar mulher e da bancada feminina a mobilização para aprovar os projetos e para derrubar o veto. Dificilmente um homem pararia para pensar que mulheres têm necessidade de absorventes todo mês. Eles não vivem essa realidade, não sentem essas dores. Representatividade também é isso: termos representantes que sentem as nossas dores. Eles não conseguirão legislar por nós.

 DESDE 1858, 92% DOS MANDATOS FORAM OCUPADOS POR HOMENS EM SANTA MARIA

style="width: 100%;" data-filename="retriever">Foto: Pedro Piegas (Diário)

A composição atual da Câmara de Vereadores de Santa Maria tem cinco mulheres - quatro eleitas diretamente e uma suplente. O cenário foi ainda pior. Desde 1858, ano da primeira legislatura, apenas 8% dos mandatos foram de mulheres, conforme registros oficiais da própria Câmara. Há uma diferença gritante no comparativo: do total de 396 mandatos, sem considerar suplentes, 33 foram de mulheres e 363 de homens.

As cinco parlamentares que ocupam cadeiras do Legislativo atualmente apresentam ideologias e visões políticas diferentes. Anita Costa Beber, em seu quarto mandato, e Roberta Leitão, estreante na Câmara, foram eleitas pelo Progressistas. Marina Callegaro, também no primeiro mandato, é do Partido dos Trabalhadores (PT). Luci Duartes, a Tia da Moto, é do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e está na segunda participação seguida no legislativo. Já Lorena de Lourdes Souza dos Santos, a Pastora Lorena, entrou como suplente do vereador Juliano Soares, do PSDB. Mas, em comum, o desejo de fazer a diferença e inspirar outras mulheres a ocupar espaços de poder. 


Em 164 anos de Casa do Povo

  • Mandatos de mulheres - 33 (8%)
  • Mandatos de homens - 363 (92%)
  •  Somente em 1952, a 1° mulher assumiu vaga na Câmara
  • Desde 1952, 20 mulheres foram eleitas. O número de homens, neste mesmo período, é de 165
  • Atualmente, são cinco mulheres e 16 homens vereadores


Na presidência da Câmara, a presença delas também é desproporcional

style="width: 100%;" data-filename="retriever">Foto: Pedro Piegas (Diário)

Quem entra na Câmara de Vereadores de Santa Maria logo depara com a galeria com fotos de todos os presidentes do Legislativo. A parede, ao lado esquerdo do saguão, guarda as memórias da Casa do Povo desde 1858, ano da primeira legislatura. Nas quatro fileiras e meia de retratos, há pouquíssimas mulheres. São apenas quatro, enquanto homens são 56, contando o atual presidente, Valdir Oliveira (PT), que ainda não tem foto no espaço.

Demorou um século e meio para que uma mulher assumisse a presidência do Legislativo. A primeira foi Anita Costa Beber (Progressistas) em 2006. A vereadora, que atualmente está no quarto mandato, chegou também a assumir a prefeitura por 16 dias na época, durante uma viagem do prefeito.

- Eu tenho muito orgulho de ser mulher e da minha trajetória. As mulheres, neste meio da política, têm de ter vontade de vencer. Eu fui à luta - afirma a vereadora, hoje, com 75 anos.

Empregada doméstica, costureira, empresária, esposa, mãe, avó? Anita teve que se desdobrar em funções, como tantas outras mulheres. Perdeu o pai aos 4 anos. Estudou em colégio religioso no Distrito de Arroio Grande, onde vive até hoje. Quando começou a trabalhar como doméstica, aos 12 anos, foi para ajudar no sustento da casa. Depois, aos 16, começou a costurar e criou um ateliê, onde trabalhou com estilistas gaúchos de várias cidades. A entrada na política só aconteceu bem mais tarde, a partir da amizade com o ex-prefeito José Haidar Farret (ex-Progressistas), sua referência na política e de quem se emociona ao falar:

- Fui subprefeita de Arroio Grande e Itaara, quando ainda era distrito de Santa Maria. Foi o Farret que me convidou. Eu sempre gostei de desafios, por isso aceitei. Depois, ele me incentivou a me candidatar a vereadora. Foi meu líder, meu padrinho na política, devo muito a ele.

Entre os colegas de legislatura, conta que nunca teve problema de relacionamento ou se sentiu diminuída por ser mulher. Mas reconhece que falta incentivo ao público feminino na política.

- Quando eu era subprefeita, ia todo dia às 6h para Itaara. Antes de ir, deixava o café da manhã pronto para a família e até o almoço feito. Não era fácil, mas quando a gente quer muito, consegue - enfatiza


As representantes locais

style="width: 100%;" data-filename="retriever">Foto: Pedro Piegas (Diário)


  • Lorena de Lourdes Souza dos Santos (suplente, PSDB) "Embora ainda tenhamos muito pouca representatividade, graças a Deus estamos vivendo um novo tempo. Isso é muito importante. Até porque a visão da mulher é um pouco mais ampla que a visão masculina, naturalmente. Então, é muito importante a presença da mulher na política"
  •  Roberta Leitão (Progressistas) "Ser mulher na política é muito gratificante. Receber a confiança da população de Santa Maria para estar na Câmara é uma bênção e também um fardo, porque a responsabilidade é gigantesca. Nós precisamos desempenhar isso com muita coragem, força e determinação. Também muito tato e cuidado, características que as mulheres têm"
  • Marina Callegaro (PT) "É um desafio ser mulher na política. Tanto é que ainda temos um número inexpressivo de mulheres em espaços de poder. Mas é de fundamental importância estarmos aqui debatendo pautas que envolvam as mulheres, que envolvam as nossa conquistas e direitos. Temos que buscar que esses direitos cada vez mais sejam reconhecidos"
  • Luci Beatriz Zelada Duartes, Tia da Moto, (PDT) "Ser mulher na política representa a abertura de mais espaços. A mulher precisa se inserir mais no contexto das decisões da nossa sociedade. A mulher precisa estar a par e participar de todas as decisões e não apenas ser uma mera espectadora. Para mim, significa abrir espaço para outras mulheres em busca de respeito"


NOVENTA ANOS DEPOIS DA CONQUISTA DO VOTO FEMININO

style="width: 100%;" data-filename="retriever">Foto: Pedro Piegas (Diário)

O direito para que as mulheres brasileiras pudessem votar é marcado em 24 de fevereiro de 1932, por meio do Decreto 21.076, do então presidente Getúlio Vargas, que instituiu o Código Eleitoral. Vargas chefiava o governo provisório desde o final de 1930, quando havia liderado um movimento civil-militar que depôs o presidente Washington Luís. Uma das bandeiras desse movimento (Revolução de 30) era a reforma eleitoral. O decreto também criou a Justiça Eleitoral e instituiu o voto secreto. Porém, o voto feminino envolveu muita luta desde os tempos império e envolveu homens e mulheres, conforme explica Monica Karawejczyk, historiadora e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

A maior repercussão veio a partir da primeira constituinte republicana, quando houve emendas de estender o voto para as mulheres, mas que acabaram não passando. A partir do aparecimento de mulheres formando associações femininas é que o assunto gerou pressão à sociedade e aos políticos.

- Em 1910, com a figura da Leolinda Dautro, que fundou o Partido Republicano Feminino; na década de 1920, a Bertha Lutz que chega com a Federação Brasileira para o Progresso Feminino. Em 1930, chegam a Elvira Komel e Natércia da Cunha Silveira a frente de outras associações e movimentos que se fizeram ouvir no espaço público. Até então, fora o Rio Grande do Norte, que em outubro 1927 instituiu o alistamento eleitoral feminino, não havia brecha para as mulheres na legislação - relata a historiadora.

Vale lembrar que essa também era uma demanda mundial. Até a Primeira Guerra, só quatro países tinham suas cidadãs votantes: Nova Zelândia, que ainda 1893, seguida da Austrália, Finlândia e Noruega. Depois, entre a Primeira e a Segunda Guerra, as mulheres passam a participar do mundo político. A ausência de mulheres, segundo a pesquisadora, foi muito ligada à mentalidade patriarcal e misógina do período e a ideia da mulher do lar, à vida doméstica e a "questões emocionais".

O código eleitoral, partiu, então, de uma questão específica quando Getúlio Vargas tomou o poder, uma das propostas era fazer uma "moralização na política".

- Foi perceptível neste período, e no livro Mulher deve votar, no qual fizemos uma pesquisa na Biblioteca Nacional, que até setembro de 1931 não se sabia o que estava sendo tratado. O projeto era restritivo e sigiloso, com propostas de voto apenas para "solteira com independência econômica" ou que as casadas só poderiam votar com autorização do marido. Isso gerou mobilizações de mulheres, que decorreram na alteração final. Por isso, desde dezembro de 1930, fizeram novas avaliações e subcomissão eleitoral até a deliberação o Código Eleitoral de 1932, que igualou o voto masculino e feminino, sendo esse facultativo - explica Monica.

A historiadora ainda contextualiza a diferença da participação de mulheres em cargos eletivos que dura até hoje:

- Em 1933, na eleição para constituinte, se falava que as mulheres trariam moralidade e ordem para o pleito, mas também que elas não iriam participar das eleições Hoje, se fala que mulheres não se interessam em política, e que o espaço é muito masculino. Na verdade, há participação, sim. Ocorre que a atuação das mulheres é dificultada pela forma que a instituição política que é engendrada.


A 1ª vereadora de Santa Maria

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Santa maria nunca teve uma prefeita eleita pelo povo, e apenas em 1952 a cidade teve a primeira mulher na Câmara de Vereadores. Isso foi três décadas depois da aprovação do voto feminino e da possibilidade de mulheres se candidatarem a cargos políticos. Helena Ferrari Teixeira, uma então jovem de 30 anos, foi eleita pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), mesmo partido do então presidente Getúlio Vargas, de quem era admiradora e seguia os ideais trabalhistas.

A parlamentar permaneceu no Legislativo por 12 anos, exercendo três mandatos consecutivos, entre os anos de 1952 a 1963. Abandonou a política em 1964, ano do golpe militar, decepcionada com os rumos do país.

Professora e poeta, conforme registros da época, encontrou dificuldades e adversários políticos ferrenhos durante os mandatos. A relações públicas Justina Franchi Gallina pesquisou a história da parlamentar pioneira, analisou as atas da Câmara e arquivos de jornal para traçar o perfil de Helena.

- Ela esbarrou em muitos obstáculos, nos próprios colegas de Câmara que não a respeitavam, interrompiam suas falas e tentavam desqualificar sua capacidade. No jornal da época, tratavam ela como barraqueira, que gritava, desestabilizada emocionalmente. Mas, ao analisar as atas e entrevistar pessoas que trabalharam com ela no Legislativo, eu vi que não era bem assim. Era uma representação que hoje sabemos que era machista. Ela teve muitas propostas voltadas à educação, ao bem- estar da população e à assistência social. Um de seus maiores legados foi a criação da hoje Escola Estadual de Educação Básica Manoel Ribas, popular "Maneco" - explica a pesquisadora.

Helena foi precursora entre as mulheres na política de Santa Maria. Após a saída dela da Câmara, houve um hiato de 10 anos - os primeiros da ditadura militar - sem outra representante feminina. Em 1973, Maria Eloá Philbert Pavani assumiu uma cadeira pelo então partido Arena. 

Quem foi Helena Ferrari Teixeira 

  • Nasceu em 19 de dezembro de 1921, em Santa Maria, e morreu em 15 de março de 2004, aos 82 anos
  • Filha de Ana Luiza Ferrari Teixeira, uruguaia, ficou órfã do pai, Mario Souza Teixeira, aos 14 anos
  • Estudou no Colégio Santa Terezinha, da Viação Férrea, e no Colégio Sant'anna
  • Foi professora nos colégios Santa Catarina e Sant'anna
  • Integrante do Grêmio Literário Castro Alves, publicou poemas e artigos em jornais locais
  • Foi fundadora do PTB em Santa Maria, no final da década de 40
  • Eleita vereadora pelo PTB em 1952, 1956 e 196
  • Primeiro projeto: criação de mais um colégio estadual na cidade, que resultou na construção do Colégio Manoel Ribas
  • Defensora dos mais pobres e da classe operária
  • Apresentou diversos projetos, entre eles o que autorizava a prefeitura a cancelar a multa de contribuintes, a instalação de abrigo de ônibus e a doação de um terreno para o Lar das Vovozinhas
  • Nunca se casou, nem teve filhos
  • Encerrou a carreira política após o golpe militar de 1964

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