reportagem especial

Caminhares dissonantes: Rio Branco, a histórica avenida de contrastes

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Fotos: Anselmo Cunha

Encravada no centro de Santa Maria, a via mais emblemática da cidade estampa saudosismo ao mesmo tempo que reflete alterações profundas na sua fisionomia acompanhada pelo acelerar dos tempos. Foi em 7 de outubro de 1908, que a então Avenida do Progresso passou a denominar-se Rio Branco, uma homenagem ao diplomata homônimo. O antigo nome faz jus ao berço ferroviário e à largada do desenvolvimento econômico do município.

Há uma década, o logradouro passou por um processo de revitalização que não cumpriu, na íntegra, as propostas de melhorias estruturais e, atualmente, não contempla projetos pontuais por parte do poder público. Mesmo assim, os bancos dispostos às sombras das árvores do canteiro central seguem sendo ponto de encontro de casais apaixonados ou de conversas casuais de quem procura um dos inúmeros estabelecimentos comerciais dispostos na via.

O arquiteto e produtor cultural Luiz Gonzaga Binato de Almeida ousa comparar a diversidade da avenida aos bulevares parisienses:

- Generosa largura, densa arborização, amplas calçadas, suave inclinação, arquitetura de respeito. A redução do transporte ferroviário local alterou usos e usuários dessa via, hoje espelho das desigualdades econômicas e sociais, mas encanta-me a diversidade nesse democrático espaço. Nele convivem pacificamente passageiros do transporte coletivo, fiéis em busca de refrigério nos templos, filas à frente de estabelecimentos bancários, viajantes defronte aos hotéis, variados frequentadores de plurais comércios e serviços, dia e noite.

Marcada pela imponência arquitetônica, o trecho também inspira insegurança por quem anda por lá, sobretudo, depois do cair do sol. Outras polêmicas também emergem a cada esquina. Entre elas, o novo Plano Diretor de Santa Maria, aprovado em 2019, e que agradou o ramo da construção civil e desapontou segmentos da área cultural da cidade, bem como a lei que rege o tombamento de imóveis.


Fotos: Anselmo Cunha

Mas os contrastes não se esgotam na estrutura física. A avenida tem uma herança de lutas sociais, protestos, passeatas e carreatas. Em outros tempos, foi palanque de políticos e intelectuais. Alguns até ganharam monumentos. Hoje, segue sendo espaço de reivindicações de estudantes, professores e trabalhadores em geral.

A Rio Branco é ainda o principal corredor do transporte público e endereço de oração, tendo templos de diferentes religiões, cuja atmosfera sacra depara com profano, já que, por ali, estão instalados conhecidos prostíbulos com décadas de funcionamento.

Ao relembrar as transformações que trouxeram impactos sociais e urbanos, Binato completa sua observação com um olhar otimista para a avenida:

- A Rio Branco é, em Santa Maria, um inegável patrimônio sociocultural, onde a vida pulsa sem amarras e sem preconceitos. Ali, a cidade se agiganta.

COMPRA, REZA E VENDA

Sem constrangimento algum de interromper quem caminhava pela avenida ou os carros que paravam diante da sinaleira, Paulo Martins, 44 anos, tentava vender paçoquinhas improvisando argumentos no fim da tarde do último dia 16 de fevereiro.

- É só R$ 0,50, não custa para senhora que tem salário maior que o meu - diz a uma mulher, a qual até segura pelo braço.

Fotos: Anselmo Cunha

Bandeira do governo Cezar Schirmer (PMDB), a retirada dos camelôs da Avenida Rio Branco a partir de 18 de junho de 2010 foi uma marca da primeira administração do prefeito, culminando na abertura do Shopping Independência, em 25 de junho do mesmo ano. A ideia era que a área desocupada, junto de um plano de arborização, fosse prioritariamente destinada ao lazer e ao vaivém cotidiano da comunidade, sendo um lugar turístico, cujo entorno fosse marcado pela riqueza arquitetônica e pelo desenvolvimento econômico dos estabelecimentos. O que sê vê, hoje, escapa aos anseios daquele governante. Há, sim, agências bancárias, hotéis e comércios de toda ordem. Mas barraquinhas de churrasquinho, vendedores de panos de pratos a de buquê de flores, e ambulantes em geral, ainda ocupam calçadas e o canteiro central da avenida, que é o endereço onde se compra e vende de tudo.

Fotos: Anselmo Cunha

Religiosidade

Tem até quem "venda" fé e "compre" esperança em um dos três templos religiosos erguidos na avenida.

Na esquina da Rua Vale Machado, o pastor Luiz Carlos Rodrigues, 36 anos, exalta sua devoção. Ex-detento aborda a quem passa para compartilhar seu testemunho.

- Minha família tinha vergonha de mim. Lá no presídio, a religião me salvou e hoje estou aqui para levar a palavra de Deus. Graças a ele, encontrei meu amor - diz enquanto mostra as fotos da companheira no celular e as lives das pregações que faz na Praça Saldanha Marinho e transmite no próprio Facebook.

Fotos: Anselmo Cunha

No outro lado da rua, um homem chora ajoelhado durante um culto em uma Igreja Pentecostal. Três quadras acima, as vizinhas Leane Vargas, 59 anos, e Iria Lazzari, 68, orgulhosamente dizimistas, conversavam na saída da tradicional missa das 18h, da Catedral Metropolitana (quase em frente à Igreja Anglicana do Mediador) de Santa Maria. O pároco e outros fiéis não deixam de lamentar os últimos incidentes envolvendo o imóvel, que foi alvo de vandalismo no dia 20 de fevereiro.

- Muito triste terem apedrejado a Catedral. Dizem que de noite a coisa é solta aqui na Rio Branco. São pessoas que precisam de orientação, de amparo - disse Leane.

O padre Enio Rigo completa:

- Isso acontece porque a Rio Branco não é um espaço co-habitado. De dia, é uma. Mas, chega à tardinha, todo mundo se esconde. Falta um cuidado, uma iluminação melhor.

Progresso e ruína

No mesma quadra, em que inúmeros trabalhadores vendem seus produtos na rua, está instalada uma imponente multinacional do ramo varejista controlada por um grupo francês. O Carrefour, em funcionamento desde julho de 2012, abriu com incentivos de R$ 500 mil, aprovados pelo Comitê Santa Maria Empreende e pela Câmara de Vereadores. O prédio onde funcionava a Escola de Artes e Ofícios Hugo Taylor, ficou pronto ainda em 1922, e pertencia à extinta Cooperativa de Ferroviários. A estrutura conserva detalhes ecléticos de sua fachada, onde predominam elementos neoclássicos e art nouveau. O imóvel é um entre as dezenas de edificações que guardam um tão rico quão frágil patrimônio arquitetônico e cultural. Somente no estilo Art Déco, movimento artístico que surgiu na Europa e chegou em Santa Maria na década de 1940, são 16 exemplares.

Morador da avenida há 30 anos, o agropecuarista Antonio Pereira, 69, critica a incoerência das sucessivas administrações municipais:

- Como pode em metros, ter esse monte de prédio lindo, histórico e logo depois umas construções abandonadas. É muito triste essa falta de cuidado. As calçadas são precárias. À noite, não enxergamos guardas, nada. Entra e sai prefeito e continua igual.

UMA DÉCADA DE REVITALIZAÇÃO

A avenida-berço da cidade, que segue sendo o principal cartão-postal, traz ao longo de suas oito quadras um ambiente paradoxal. Transcorridos 10 anos da última revitalização, a instabilidade social e econômica potencializada pela pandemia do coronavírus deixou explícito um cenário há muito tempo desenhado: o grande descompasso entre a cidade real e a cidade ideal. São lacunas que extrapolam a aparência urbana e colocam em cheque a solução de problemas ora envernizados pelo discurso de desenvolvimento e da preservação da memória.

Fotos: Anselmo Cunha

A lei que regra o próprio tombamento de imóveis, segundo muitos proprietários, ainda instiga questionamentos e pede por coerência. De modo semelhante, as vulnerabilidades que emergem da Rio Branco também são preocupações de que quem vive, trabalha ou passa por ali.

- Não podemos mexer na fachada e respeitamos, amamos esses edifícios, investimos no que for preciso. Mas o esforço é uma via de mão única: tem calçadas arrebentadas por raízes de árvores que nem são nativas, postes danificados, luzes queimadas. Quanto mais se desce na avenida, pior fica. De noite, parece outra cidade: "crackeiros", pedintes, prostituição. Nunca vi uma ação da prefeitura. Assistência social, Conselho Tutelar, esses órgãos... Tem que se preocupar com os prédios, com a aparência da cidade, mas muito mais com as pessoas, pois não é justo vender essa falso cartão-postal - disse um morador que não quis ter o nome divulgado.

Somente na largada da primeira etapa da revitalização, em fevereiro de 2011, foram aportados R$ 1, 6 milhão. À época, o serviço começou a duras críticas por parte da população. Uma das polêmicas foi o plantio de pínus e outras espécies ao longo do canteiro central. Outros 10 aspectos estruturais, da pavimentação à iluminação, também contemplaram a revitalização (veja abaixo).

Projetos

A prefeitura de Santa Maria, por meio da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Inovação e Turismo, do Instituto de Planejamento de Santa Maria (Iplan) e da Secretaria de Gestão e Modernização Administrativa, informou que há um plano de ação em andamento, que tem por objetivo recuperar o Centro Histórico de Santa Maria, desde o Calçadão Salvador Isaia até a Gare, o que inclui a Avenida Rio Branco. Contudo, o Executivo não adianta projetos pontuais para o trecho. A exceção é o Plano de Recuperação de Pavimentação na avenida que já foi concluído. O serviço custou R$ 944,7 mil.

Atualmente, tramitam na Câmara de Vereadores três projetos de Lei, entre eles, a Lei do Patrimônio Histórico e Cultural, que cria o Fundo e o Conselho de Patrimônio) que visam a preservação do patrimônio histórico e cultural.

Abandono

Fotos: Anselmo Cunha

Enquanto as leis de tombamentos são adaptadas, uma antiga polêmica da mesma via também pode ter um desfecho: a recuperação do inacabado condomínio Galeria Rio Branco. A prefeitura pretende lançar ainda no primeiro semestre de 2021 uma licitação para que a obra seja retomada.

Construído na década de 1960, e popularmente apelidado de "elefante branco" era para ser um condomínio de luxo e teve o serviço abandonado em 1970. De lá para cá, várias medidas foram tomadas, desde a condenação judicial para que a estrutura fosse demolida até a arrecadação, a incorporação e a transferência do prédio ao patrimônio do município. Dia 16 de dezembro de 2019, a Lei 6.429 autorizou a prefeitura a permutar o imóvel por área construída no mesmo local e no valor estimado de cerca de R$ 2,1 milhões. Assim, quem vencer a licitação deverá entregar ao município uma área construída para abrigar estruturas físicas da administração municipal.

Há 10 anos, a promessa de uma nova via*

  • Pavimentação - O piso com pedra portuguesa das oito quadras do canteiro deverá ser retirado e, depois, recolocado. A pavimentação ficará idêntica à original. Os pisos cerâmicos e cimentados serão removidos e não serão reaproveitados
  • Meio-fio - Todo o meio-fio existente (delimitando a pavimentação interna e os canteiros) será substituído por um novo com peças novas, pré-moldadas em concreto, com 1m de comprimento e 30cm de altura
  • Acessibilidade - Serão colocadas rampas para o rebaixamento das calçadas, permitindo o acesso e o uso por todas as pessoas, inclusive aquelas com mobilidade reduzida
  • Rebaixamento de calçadas - As calçadas serão rebaixadas junto às travessias de pedestres
  • Bancos - Os existentes serão retirados e substituídos por bancos com estrutura e encosto de concreto e assento de madeira
  • Lixeiras - Serão colocadas lixeiras de aço galvanizado, com estrutura reforçada, em pontos estratégicos
  • Vegetação - As árvores mortas ou apodrecidas serão cortadas e removidas. Os troncos já cortados também serão retirados. A vegetação baixa existente será cortada e removida
  • Canteiros - Haverá plantio de forrações diversas, facilitando também a manutenção e a drenagem. A paisagem será requalificada. As árvores de grande porte serão mantidas, e a poda das copas será elevada
  • Luminárias - Serão distribuídas luminárias no canteiro central para ajudar a aumentar a segurança. As estruturas serão em aço galvanizado, com 4m de altura, fixadas em bases de concreto. A fiação será subterrânea, evitando a poluição visual. Os postes de concreto do canteiro central serão retirados. As luminárias existentes nos demais postes ao longo da avenida serão mantidos, mas as lâmpadas serão substituídas por outras mais fortes (de 250w para 400w)
  • Monumentos - Os monumentos e obeliscos existentes deverão ser recuperados, limpos e pintados. Eles vão receber iluminação com projetores de alumínio para uso enterrado e lâmpadas de sódio

*Em fevereiro de 2011

ROTINA, ENCONTROS, CRIMES E SOLIDÃO

Fotos: Anselmo Cunha

Um latrocínio teve grande repercussão no ano passado quando uma idosa de 81 anos foi encontrada morta dentro de um apartamento na Avenida Rio Branco. Somente em 2020, foram 10 roubos a pedestre, 14 estelionatos e um estupro na mesma via, segundo a Brigada Militar. A insegurança é também um relato frequente de moradores e comerciantes que denunciam a ausência de policiamento e investimento de políticas sociais no corredor histórico da cidade.

- Já vi gente ter o celular roubado enquanto esperava o ônibus para voltar para casa. Chega perto das 18h, fechamos tudo e vamos embora. É complicado. São pessoas simples que trabalham o dia todo e ainda tem de passar por isso porque o poder público e a segurança pública são ausentes - disse o dono de uma barbearia que não quis ter o nome divulgado.

Porém, crimes de toda ordem e tempo ainda permeiam a memória dessa que é a principal artéria viária da vida cotidiana. Na década de 1920, um escândalo amoroso terminou em tragédia e chocou a sociedade santa-mariense: a morte do renomado comerciante Pedro da Silva Beltrão e do poeta e juiz distrital Francisco Ricardo. Ambos trocaram tiros porque o poeta estaria assediando Rosa Calderan Beltrão, esposa do comerciante. O crime figurou nas principais páginas da imprensa local e do Estado.

Vulnerabilidade

Hoje, outras realidades chamam a atenção, sobretudo nas últimas três quadras da avenida. Pontos de prostituição e usuários de drogas. No cair da noite de 8 de fevereiro, Josevani Trindade Silva, 41 anos, encontrou em um sofá debaixo da marquise de um prédio da Rio Branco, um local para passar a noite:

- Sou pedreiro no duplo sentido, sabe? Já perdi casamento, emprego, fui preso e não consigo largar (o crack). Já tentei me tratar no Caps (Centro de Atenção Psicossocial) e ir para essas fazendas de recuperação, mas ninguém ajuda o cara. É uma desorganização só. Eu sou viciado, mas não burro. 

Fotos: Anselmo Cunha

O secretário de Desenvolvimento Social, João Chaves, informou que tem conhecimento de algumas situações da via, alegando que equipes do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) fazem abordagens e encaminhamentos junto população que encontra-se em vulnerabilidade, porém, o trabalho vem sido restrito por conta da pandemia do novo coronavírus.

Rio Branco, miséria e luxo

No outro lado da rua em que Silva fumava uma pedra de crack em um sofá abandonado durante a noite, um tradicional antiquário em um prédio tombado como patrimônio histórico funciona durante o dia. O estabelecimento disponibiliza de peças de colecionadores e relíquias assinadas, como uma espada francesa do século 18 e uma cristaleira suíça. Ambas custam R$ 7 mil.

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