reportagem especial

VÍDEOS: simplesmente livres: no Dia Internacional da Mulher conheça Aline, Anelise, Dora e Natieli

Jaiana Garcia e Victoria Debortoli

Montagem: Rodrigo Nenê / Fotos: Anselmo Cunha, Pedro Piegas e Renan Mattos (Diário)

Reconhecer-se uma mulher livre e independente extrapola padrões ou quaisquer estereótipos e se revela uma postura diante do modo de viver.

A liberdade de escolher, seja o estado civil, a profissão, os gostos pessoais ou a opção pela maternidade, são exclusivos a cada uma. Muitas, ganharam as ruas por meio de lutas coletivas início do século XX. Outras, com diferentes atuações e trajetórias individuais, se reinventam e inspiram outras mulheres cotidianamente. Na véspera do Dia Internacional da Mulher, Aline, Anelise, Natieli e Dora compartilham experiências e atestam a pluralidade deste cenário.

A cientista social e antropóloga Renata Piecha, formada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e que estuda movimentos feministas, explica que sempre existiram mulheres que revolucionaram o modo de ser. Porém, nem sempre foram reconhecidas.

_ Atualmente, temos mais oportunidades de emancipação por meio das universidades, além de outras políticas públicas, mas ainda existe muito essa estigmatização. O papel da mulher na sociedade ainda é muito atrelado ao processo reprodutivo, e quando elas optam por não o seguirem acabam por quebrar paradigmas _ salienta.

Historiadora, escritora e professora da UFSM, Nikelen Witter explica os que maiores momentos da luta feminista antecederam guerras (a Primeira Guerra Mundial, especialmente). Na década de 1960, houve um salto na busca por essas liberdades. Os primeiros 20 anos do século 21 também foram marcados por uma iniciativa mais generalizada e global.

_ Estamos indo além, no sentido de que queremos uma mudança social como um todo, e não apenas para algumas demandas e alguns grupos restritos e específicos de mulheres. A gente quer para todas _ salienta.

Já a questão da independência, segundo Nikelen, nos setores médios da sociedade, esteve mais marcada pelo debate do controle social em cima das mulheres, sobretudo as de baixa renda, que nunca deixaram de trabalhar e ocupar espaços públicos.

_ Hoje, justamente por termos um movimento como o feminista, com mulheres que lutam há 200 anos, as liberdades são mais aceitas. Essas mulheres "fora da curva" não são mais vistas como "anomalias sociais", mas passam a poder lidar com suas vidas da forma como querem. Podem dizer que não querem filhos e casamento, e não ser uma aberração.

Renata ainda reforça a importância da emancipação da mulher "de forma coletiva, e não só individual", a partir de uma análise defendida pela escritora feminista negra Joice Berth:

_ É discutir o que entendemos como poder e sobre as relações desiguais da sociedade. Reconstruir nossos comportamentos. A internet, apesar de concentrar muitas fake news, é uma ferramenta para isso. Hoje, existem muitas mulheres discutindo a maternidade, por exemplo, e estimulando outras mulheres a pensarem e desromantizarem o assunto.

DE PERNAS E MENTE ABERTAS

Foto: Anselmo Cunha (Diário)

É em uma barra de pole dance que Aline Jabur, 30 anos, trabalha a autoestima e aceitação de dezenas de mulheres em Santa Maria. Em 2015, em Itaqui, sua cidade natal, fez a primeira aula da modalidade e pensou "é isso que quero fazer da vida". A partir daí, largou o trabalho formal como relações públicas, do qual estava insatisfeita, e investiu em cursos de pole. Foi com uma barra vertical na sala de casa que começou a dar aulas para amigas e conhecidas. O negócio cresceu. E em 2020, alugou uma sala comercial, reformou o espaço, instalou três barras e, desde então, está com os horários lotados e uma lista de espera para novas alunas. A Big Queen, nome da empresa, revolucionou a vida de Aline e de outras mulheres, que buscam no pole dance um olhar mais poderoso sobre si mesmas.

- É libertador porque, aos poucos, as mulheres vão se soltando e percebendo que são capazes de fazer coisas que jamais poderiam imaginar. Junto com esse processo de aprendizagem da modalidade, vem também a autoconfiança. Começamos a nos aceitar como somos, a olhar para o nosso corpo de maneira diferente, de nos sentir mais belas. Não falo tanto de beleza física, mas da percepção que temos de nós mesmas, de um modo geral. É um processo muito gostoso de ver - explica.

O reflexo da melhora na autoestima é ampliado para a vida pessoal de cada aluna com a melhora das relações pessoais e mais confiança no trabalho, por exemplo.

PRECONCEITO
A história do pole dance está intimamente ligada à da dança erótica e, por isso, as praticantes ainda sofrem muito preconceito. Não é uma modalidade vista com "bons olhos", segundo a instrutora:

- A gente recebe muita mensagem de homens, principalmente nas redes sociais. A atividade ainda é muito ligada à sexualidade, mas meu objetivo é mostrar que não é só isso. No começo, me preocupava, hoje, eu bloqueio e ignoro. Nós somos livres e ninguém tem o direito de opinar na nossa vida.

O caminho até a segurança em si própria foi longo. Nascida em uma cidade do interior, Aline conta que não se encaixava no que era esperado socialmente. Quando mais nova, chegou a achar que mulheres deveriam se comportar de tal maneira para serem aceitas, reproduzindo machismos dos quais estava acostumada. Porém, com o tempo, percebeu que não era assim.

- Eu não era delicada e meiga, não conseguia me moldar ao que esperavam de mim. Foi no pole dance que decidi, definitivamente, não seguir mais esses padrões. Agora que aprendi a abrir um espacato, nunca mais faço foto de perna fechada - diz, aos risos.

DONA DA PRÓPRIA ROTA

Foto: Renan Mattos (Diário)

A maquiadora Anelise Fenalti, 32 anos, fugiu da rota tradicional de mulher que precisa ser delicada e servil. Solteira (nem por isso sozinha), sem planos para filhos (embora os deseje), viaja sozinha pelo mundo, gosta da própria companhia e investe pesado na realização pessoal e profissional. Em processos constantes de reformulação interna e externa, Anelise só faz o que a deixa confortável - do crossfit aos momentos em que abre um vinho e desfruta da própria presença.

- Estou muito focada em mim, não tenho energia para investir em uma família agora. Tive relacionamentos ruins, me submeti a muitas coisas erradas. E, hoje, prezo pela minha paz e saúde mental. Ter um relacionamento é apenas um âmbito da minha vida, não é o alicerce, então estou muito bem resolvida nesse sentido. Se rolar, se for para acrescentar, ótimo - explica.

Foi percorrendo diversos países sozinha que a maquiadora percebeu que, literalmente, poderia ganhar o mundo. A primeira viagem foi após o fim de um relacionamento longo que havia acabado. Ela diz que precisava se sentir potente de novo.

- O fim da relação deixa a gente, muitas vezes, com a autoestima abalada. Viajei sozinha para me enfrentar, me reencontrar.

Em um hostel, na Argentina, Anelise queria se divertir e fazer novas amizades. Foi lá que se abriu para uma nova vida e percebeu o que a fazia feliz.

- Eu me dei conta que me basto, que não preciso ter alguém comigo, foi um start para me libertar.

Desde então, já viajou bastante sozinha, inclusive fez um intercâmbio na Inglaterra. Estar só, segundo ela, acaba fazendo parte do próprio temperamento.

- Às vezes, estou com minhas amigas ou até de rolo com alguém e sinto a necessidade de ter o meu tempo. Isso me traz uma certa paz - conta.

Há 10 anos, o trabalho como maquiadora a levou ao encontro da valorização da beleza natural das mulheres. "Perfeitamente imperfeita", como a frase da camiseta que usava quando recebeu nossa reportagem, é como ela quer que outras mulheres se sintam. Em um contexto de redes sociais, photoshop, filtros e pele perfeita, Anelise estimula a autoaceitação:

- Eu sempre tive problema de autoestima, não gostava da minha pele, do meu cabelo. Quando comecei a me libertar disso, pensei que poderia libertar outras mulheres que chegavam ao salão com ideias de seguir um padrão estético. As demandas são muito mais internas do que externas, vão além de uma camada de base. Elas passam pela falta de valorização da mulher, que quer encontrar na maquiagem uma forma de serem vistas. Quero que as mulheres se sintam bem sendo elas. Isso é liberdade.

LIBERDADE PARA DENTRO E FORA DA CABEÇA

Foto: Pedro Piegas (Diário)

A noção de liberdade se articula, em muitos casos, em torno da condição social, de gênero, de raça, etnia e é inegável que há diferenças. As mulheres negras, historicamente esquecidas, batalham mais para conquistar independência. Para Natieli Silva de Souza, 30 anos, cabeleireira e trancista, passar pelo processo de aceitação do próprio cabelo a levou à profissão que a sustenta e dá poder:

- Liberdade, para mim, é fazer o que eu me sinto bem, sem pensar na crítica. A opinião das pessoas, eu guardo. Não sou obrigada. Uso a roupa que eu quiser, aceito meu corpo como é. Vivo a maneira que eu escolhi viver. Eu não aceito estar em lugares onde não me sinto bem. A gente precisa abrir espaço para todas as pessoas, respeitando suas individualidades.

São processos, por vezes, doloridos. O dela começou quando resolveu tirar totalmente a química do cabelo e começou a aceitar e cuidar das madeixas crespas e volumosas. Foi assim que surgiu a ideia de cuidar dos cabelos de outras mulheres negras, que, por vezes, se submetiam a procedimentos de alisamento dos fios contra a própria vontade. Há um ano, abriu um salão, o único de Santa Maria que não usa produto químico no cuidado dos cabelos afro e ainda é especialista em tranças:

- Seguir um caminho que parecia impossível, fugindo do padrão da mulher dona de casa, com filhos, casada, de cabelo liso, não foi fácil. Minha vida mudou com o trabalho. Às vezes, não acredito no que conquistei. É muito bom entender, principalmente das mulheres negras que são 98% das minhas clientes, que hoje elas têm uma referência, um lugar onde elas se sintam bem e possam ser quem elas são: com cabelo natural, com extensão, cabelo colorido ou neutro.

Foi como se, com a química do cabelo que desapareceu, nascesse uma nova mulher, sabedora das suas potências:

- Não me deixo levar por ninguém.

CORAGEM DE SUSTENTAR AS PRÓPRIAS ESCOLHAS

Foto: Renan Mattos (Diário)

A diarista Dora Wouters, 45 anos, desde muito nova, prezou por fazer suas próprias escolhas. Nascida no interior de Mata, aos 11 anos, teve que parar de estudar por conta da dificuldade de transporte até uma escola. Aos 14, decidiu que terminar os estudos era seu maior sonho, e, sozinha, se mudou para Santa Maria. Para conseguir se manter, passou a trabalhar como doméstica durante o dia, e estudava à noite. Depois de terminar o Ensino Médio, começou um cursinho pré-vestibular para poder ingressar na tão sonhada faculdade, mas, aos 21 anos, ficou grávida.

- O casamento naquela época não era uma opção por dois motivos: primeiro, porque a gente não tinha um relacionamento que desse para se transformar em uma história a dois; segundo, eu também não me imaginava casando naquele momento. Fui viver a vida do jeito que podia - conta Dora.

Ela criou a filha, Gabriela, que hoje tem 23 anos, sozinha. Com exceção dos três meses de licença maternidade, nunca parou de trabalhar.

 - Foi sempre eu e minha filha. Eu disse para ela estudar, porque é a coisa mais importante que existe no mundo para ter uma vida menos pesada. Não acho que seja indigno um trabalho com força física, mas é mais difícil - comenta.

Dora teve um único relacionamento sério, momento em que decidiu ter o segundo filho, o Daniel, hoje com 10 anos. Cerca de três anos depois de morar junto com o companheiro, acabou se separando.

- Tive minha independência muito cedo, e não consigo me prender muito. Para mim, é difícil ter alguém. Eu, com meus dois filhos, consigo acomodar tudo à minha maneira, mas se tem uma terceira pessoa, já sai do meu controle. A vida me moldou assim, eu acho. Eu sempre digo para minha filha: seja independente, nunca dependa de ninguém para nada, nem emocionalmente e, principalmente, financeiramente - diz.

Com essa independência é que ela educa os filhos e, mesmo não sendo fácil, os incentiva a nunca deixarem de ir atrás dos sonhos. Eles aprendem não só por meio das conversas, mas também pelo exemplo. É que a Dora, mais de 20 anos depois de terminar os estudos, não deixou de seguir o coração. Em 2018, depois de fazer pela primeira vez o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ingressou no curso de Matemática na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Pouco antes da pandemia, trancou a faculdade por conta de algumas dívidas e dificuldades, mas não esconde a vontade de concluir a graduação.

- Ser independente não é fácil. Eu fui mãe, fui pai. E, em meio à pandemia, ainda sou professora. Mas isso me deu uma força, que hoje em dia encaro qualquer situação. O que me dá mais satisfação é que minha filha está com 23 anos, é uma mulher independente, estuda, já trabalha na profissão dela, então quer dizer que deu certo, há coisas que eu abri mão e deixei, mas a realidade dos meus filhos está sendo diferente da minha - completa.

Conquistas de direitos

  • Década de 1930 - Voto feminino. Publicação do Código Eleitoral em 1932, na Era Getúlio Vargas, assegura o direito de voto das mulheres e a possibilidade de serem eleitas em cargos no Executivo e no Legislativo
  • Década de 1940 - Licença-maternidade. Ainda na Era Vargas, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), por meio do decreto-lei 5.452 de 1943, regulamenta o trabalho feminino e determina licença de seis semanas para mães trabalhadoras
  • Década de 1960 - Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962). A partir da legislação, a mulher não necessita da autorização do marido para o trabalho e institui o conceito de bens reservados e o patrimônio adquirido com o produto do trabalho da esposa. Em 1962, a pílula anticoncepcional chegou ao Brasil
  • Década de 1970 - Lei do Divórcio (Lei 6.515, de 26 de dezembro de 1977) - Abre a possibilidade jurídica de separação. Antes, só era possível separar em casos de traição, tentativa de morte ou de abandono do lar
  • Década de 1980 - Constituição Federal de 1988 - Carta Magna reconhece que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Garante ampliação da licença à gestante de 84 para 120 dias, sem prejuízo do emprego e do salário. Também concede garantia de emprego por cinco meses após o nascimento da criança
  • Anos 2000 - Lei Maria da Penha - Em agosto de 2006 é sancionada a norma, que institui os juizados especiais criminais de atendimento aos casos de violência doméstica ou familiar contra a mulher. São criadas ferramentas como a medida protetiva contra o agressor, entre outros instrumentos de proteção e apoio à vítima
  • Feminicídio - No dia 9 de março de 2015, foi sancionada a Lei nº. 13.104 que, em linhas gerais, prevê o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio

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