reportagem especial

No Mês Farroupilha, quem são e o que vislumbram as prendas de hoje

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À frente de batalhas épicas, o homem gaúcho e valente aparecia recepcionado pela prenda, conforme nos contam a maioria dos livros e não raro, filmes e novelas. Aliás, são capítulo que, em sua maioria, são escritas por homens. Anita Garibaldi, nascida em solo catarinense, mas ícone da Revolução Farroupilha não foi a única que peleou pelo Rio Grande. Mas foi uma das poucas que mudou de nome e foi apadrinhada pelo sobrenome de um general (Giuseppe) virando personagem da história.

Registros históricos do próprio Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), informam que em 1949, a entidade precisou do apoio feminino na recepção à Marina Cunha, Miss Distrito Federal. Coube às irmãs, Marília e Ludemilla Zarrans representaram a mulher gaúcha. Essas foram consideradas as Primeiras Prendas do Estado. Em 1950, outras mulheres participaram do Desfile de 20 de Setembro, montadas a cavalo. mais tarde, a presença se deu nas invernadas, pois os pares de dança precisavam, pois de prendas e peões.

Veja mais no vídeo:

Os contextos foram mudando e embora ainda caminhemos devagar, protagonismo da mulher gaúcha dentro do tradicionalismo, indiscutivelmente, cresce. E isso acontece, principalmente, pelos embates e pelo esforço das próprias mulheres. Seja na música, na poesia, na literatura, no campo, nas invernadas, à frente dos CTGs e na sociedade, nem sempre com a indumentária tradicional.

- Nos primórdios do tradicionalismo, a mulher tinha um papel secundário. Felizmente com o passar do tempo, ganhou destaque ocupando cargos como os de vice-presidente administrativo, presidência de Congressos, coordenadoras, patroas. Em Santa Maria temos nove patroas de CTG, juízas campeiras, avaliadoras, diretoras de departamentos. Todos ganhamos com isso - avalia Sérgio Fasbinder, coordenador da 13ª Região Tradicionalista (13ªRT).

Ainda em 2017,a cantora Shana Muller causou polêmica ao escrever " Não sou china, nem égua e nem quero que o velho goste". O texto que se referia a uma música foi publicado no site do programa Galpão Crioulo, da RBS TV. O desabafo criticava a naturalização do machismo, da interiorização e do preconceito às mulheres no cancioneiro gaúcho. Shana também foi idealizadora, em julho deste ano, do Peitaço, evento que visava debater sobre o papel da mulher na arte gaúcha, Cerca de 40 mulheres, algumas com seus filhos, durante fim de semana no interior de Júlio de Castilhos. O encontro teve direito a acampamento e fogo de chão. Entre as convidadas, estava a escritora Leticia Wierzchowski, autora do livro A Casa das Sete Mulheres.

Mulher no tradicionalismo, a prenda teve evoluções de sua representação ao longo desses 70 anos. Hoje a mulher atua e é mais do que o "bibelô", sai da vitrine pra construir o tradicionalismo que lhe pertence. Entendo que as conquistas femininas tem ocorrido em toda sociedade, o tradicionalismo é parte desta, mas em função de um contexto histórico patriarcal, da valorização de heróis, entre outros fatores, o machismo se sustenta e precisa ser constantemente questionado. O que me faz seguir é acreditar na potencialidade da cultura para a sociedade, nas oportunidades de transformação pessoal (conforme ocorreu comigo, inclusive). Acreditar que a identidade cultural e o sentimento de pertencimento são meios de desenvolver e fortalecer valores morais e éticos - acrescenta Gabriela Rigão, 24 anos, 1ª Prenda do Rio Grande do Sul.

Na esteira da representatividade feminina no tradicionalismo, o tema anual do MTG em 2019 é "Mulher gaúcha: 70 anos da inclusão no Tradicionalismo Gaúcho organizado". No próximo ano, também está previsto um feito inédito. Duas mulheres concorrerão à presidência. Será a primeira vez que o MTG terá uma presidente mulher.

Neste fim de semana, o Diário adianta os festejos de 20 de setembro e traz três figuras femininas que apresentam em pluralidade e puro sentimento de à tradição do Rio Grande Sul.

GABRIELA REPRESENTA data-filename="retriever" style="width: 100%;">
Fotos: Renan Mattos (Diário)

Desconstrua padrões, agregue conhecimento, delicadeza e por que não ousadia para tentar descrever aquela que pode ser considerada autoridade máxima das mulheres do tradicionalismo gaúcho: Gabriela Rigão, 24 anos, 1ª Prenda do Rio Grande do Sul. Porém, autoridade não é a palavra coerente para a jovem que prefere ser lembrada por sua representatividade.

Estudante de Psicologia da UFSM e vinculada ao DTG Noel Guarany, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Gabriela é força sutil.

Embora seja de berço tradicionalista, até a adolescência foi a menina tímida, que absorvia a cultura gaúcha nos bastidores do CTG Bento Gonçalves e do CPF Piá do Sul. Até então, não se enxergava como prenda e acabou, transformando-se em uma - no mais fiel sentido da expressão - por influência da irmã. Para se familiarizar, entrar em invernadas e conquistar títulos, a trajetória incluiu até dança do ventre, terapia e o apoio de muita gente.

- Costumo dizer que virei prenda "de brinde". Minha irmã já era prenda adulta e fui convidada a ser a 1ª Prenda Juvenil em 2009. Assim, descobri uma paixão e que conseguia me comunicar e me mobilizar transformando aquilo que eu não concordava. Sempre encarei com responsabilidade, pois prenda de faixa faz jus em projetos, propaga conhecimento e reflexão. Mas também defendo que existe a prenda do vestido, a da bombacha, a do abrigo do CTG e a que está no seu local trabalho, com roupa de serviço. Prenda é a mulher gaúcha que sente-se parte desse coletivo tradicionalista - resume.

CARÃO, SIM!
De 2009 em diante vieram mais concursos e aprendizados. Há cinco meses como 1ª Prenda do Estado, Gabriela prova que é possível acabar com estereótipos sem ferir a identidade cultural e o sentimento de pertencimento que fortalecem os valores locais: 

- Defendo ideias que vão além do que eu escutava. Uma delas, a de que a prenda tinha de ser a vitrine. Isso me incomodava. Não queria estar bela e parada, mas em movimento para entender as problemáticas da sociedade que também são dos CTGs. O mesmo vale para o carão. Hoje, a menina pode não querer dançar porque ela respeita seu corpo e sua vontade. Isso não afeta valores, só agrega respeito. Eu tenho a sorte de estar em um ambiente estudantil e jovem em que isso não acontece. Mas existem entidades em que há conservadorismo, em que a prenda precisa dançar com quem a requisitar.

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Gabriela reconhece avanços no que diz respeito à igualdade feminina dentro do tradicionalismo, mas ressalta que ainda há um caminho a percorrer:

- Quando uma patroa ou uma presidente, por exemplo, já não for vista com surpresa, poderemos falar em igualdade. E eu não posso falar que eu represento as mulheres, se elas não se sentem representadas por mim. Por isso, viajo para vários municípios e entro em contato com outras meninas para construir um futuro de mais sororidade e para que a gente possa se ajudar e se reconhecer uma na outra.

GABRIELLA REESCREVE A HISTÓRIA
Ela é gaúcha, é tradicionalista, é prenda, é mulher transexual. Falar de Gabriella Meindrad Santos de Souza, 32 anos, já não é surpresa depois que ela se tornou amplamente (re)conhecida e ultrapassou barreiras: as do Estado e as próprias.

Ela virou notícia e virou história para o tradicionalismo do Estado quando foi a primeira mulher transexual a ser homenageada como prenda. O evento ocorreu em julho deste ano, no CTG Cancela da Tradição, no município de Mata.

Nos últimos dois meses, proporcionou reflexões e polêmicas jamais vistas em 70 anos de Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG). Mas o que ela conquistou e luta para continuar é o reconhecimento a todos que respeitam e difundem a cultura sul-rio-grandense. Isso porque Gabriella foi homenageada, sobretudo, por seu legado:

- A identidade gaúcha está além da identidade física. Esperei 25 anos por isso. Chegar em 2019 contando minha história é uma quebra paradigmas, um orgulho. A partir do momento que eu fui reconhecida a primeira prenda trans pela minha atuação paralelamente, eu trouxe à baila temas que não são falados. Agora, sim, temos espaço de voz e humanidade _ escrita em nosso Brasão junto da igualdade e liberdade. Os LGBTs sempre fizeram parte do movimento e isso nunca o tornou mais fraco, e não será hoje, com uma transexual. Vai sé e tornar mais forte se tiver uma real inclusão - afirma.

FINALMENTE, OS VESTIDOS data-filename="retriever" style="width: 100%;">

Toda família de Gabriella já era imersa na cultura gaúcha quando ela nasceu. Um do irmãos, por exemplo, era instrutor de dança, e a mãe, a costureira das invernadas. Na última quarta-feira, quando encontrou com a reportagem do Diário, a única "decepção de Gabriella foi não aparecer na foto com o vestido novo. Isso porque, em pleno Mês Farroupilha sua "costureira particular" está atarefada e a roupa não ficou pronta a tempo da entrevista:

- Em 1997 foi minha mãe que costurou minha primeira pilcha (à época bombacha, colete). Ela que sempre me vestiu. Retomar essa vivência e poder usar um vestido de prenda feito por ela é algo simbólico e muito afetivo. Por anos, eu via ela trabalhando e fazendo vestidos para outras meninas, sempre querendo ter um para mim. Hoje eu posso ter quantos eu quiser e todos feitos por ela, inclusive, esse que estou usando e o do dia que recebi a homenagem. Assim, de vestido e batom, represento tantas outras Gabrielas e que não tiveram a oportunidade. Luto por várias pessoas que gostariam de viver o tradicionalismo, mas que deixaram de estar ali por medo do preconceito.

BRUNA RESISTE

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Os pais estavam a caminho de um baile de CTG quando a mãe sentiu a bolsa estourar e teve de correr para o hospital para Bruna nascer. A guria chegou no dia 2 de setembro, no Hospital Casa de Saúde de Santa Maria. Foi o tempo de fazer o parto e voltar para a propriedade da família em uma área rural, a 25 km da cidade. É ali o lugar de Bruna Rocha Faria, hoje, com 23 anos. Ela até tentou fazer moradia em outros pagos, mas voltou por saudade e convicção. É a casa, o cavalo, a cachorrada, a lida campeira, as raízes familiares. É tudo o que faz Bruna reconectar-se à própria essência a cada manhã que acorda, toma o mate e sai para pastorear o gado e as ovelhas.

- Eu não sigo ou escolhi o tradicionalismo (gaúcho). Eu realmente nasci nele, desde a barriga da mãe. É parte de mim, da minha vivência. São os valores éticos, aqueles que aprendi com meu esteio, meu avô Amaro Farias, que também fundou o CTG Tropeiro Velho, minha entidade mãe. Eu cursei três anos de medicina veterinária em Bagé e depois em Cruz Alta, mas sempre achava uma desculpa para vim para fora. É aqui que eu faço o que gosto e me sinto realizada - explica a jovem.

A trajetória de Bruna mescla passagens por invernadas artísticas nos CTGs Tropeiro Velho e Estância do Minuano, além do título de prenda mirim e juvenil. Mas, foi aos 14 anos, que por necessidade - da rotina de trabalho - e por paixão passou de expectadora a competidora de rodeios nas provas de tiro de laço. A filha única, que desafiou a vontade do pai em interromper os estudos, largou tudo para trabalhar no campo.

- Meu pai disse: se parar de estudar, vai trabalhar comigo, de igual para igual. E eu quis. Somos eu e ele que administramos tudo. E assim me reconheço meu espaço de mulher, mesmo que ainda tenha muito para evoluir, pois até para fazer negócio sinto preconceito. Os caras dizem: não dá para falar com teu pai para negociar E eu: não, não dá. Sou eu que estou aqui negociando contigo e tenho mesmo voz ativa quanto ele.

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Hoje, a produtora rural, cursa Gestão em Agronegócio, é mãe de Laís, de 3 anos. A menina já acompanha dentro do tradicionalismo. Há cinco anos Bruna também encampa o Pérolas do Laço, um evento de provas de tiro de laço idealizado por ela e outra amiga, no qual há somente participantes femininas. Na última edição, em abril, o torneio reuniu 80 gurias.

- Foi o maior duelo da região, a cada edição, a gente bate recorde a, dá bons prêmios e ainda ouve: não vou lá ver mulher laçar. Muitos homens não acreditam da nossa capacidade e o pior é ouvimos mulheres que duvidam das próprias mulheres. Quando eu era prenda de faixa e ia laçar em rodeios, eu ouvia: teu lugar não é aqui, vai colocar teu vestido. Quando eu estava de vestido, escutava: lá vem o gurizinho dos rodeios querer ser prenda. Eu resisti, fui prenda de faixa e prenda do lombo do cavalo. Hoje, com muito orgulho, vejo meninas atuando na parte campeira, artística e cultural.


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