Em dezembro de 1991, nasceu uma das maiores ocupações
da América Latina e símbolo da luta pela moradia. Em 25 anos, os moradores da Nova Santa Marta se multiplicaram, lutaram para conquistar os imóveis que construíram, ouviram promessas e mais promessas e lidaram com a desesperança.
Neste Natal, o maior presente, para eles, seria ter em mãos o termo de posse de seus terrenos, mas o processo de regularização fundiária, começado há nove anos, ainda não terminou. Esta reportagem especial conta a história de luta que marca profundamente a vida e a trajetória de 25 mil pessoas que, lá, construíram suas caminhadas.
Já passava da meia-noite. Uma caminhada silenciosa saiu da Igreja São João Evangelista, na Vila Caramelo, em Santa Maria, e avançou pelas ruas da Região Oeste. Muitos seguravam velas e rezavam. Nas costas, mochilas, cargas de incertezas e um sonho: um pedaço de chão para morar.
No sábado, 7 de dezembro de 1991, cercas da Fazenda Santa Marta, desapropriada pelo Estado desde 1978, foram derrubadas para que 36 famílias de Santa Maria alicerçassem, ali, a esperança de uma vida melhor. Em 24 horas, já eram 357 cadastradas à ponta da caneta pelos líderes do Movimento Nacional da Luta pela Moradia. Em três dias, a Brigada Militar, que acompanhava de longe a peregrinação e o assentamento, fechou o cerco: ninguém saía ou entrava no local. O silêncio foi substituído por uma frase entoada naquele momento e nos anos de militância que estavam por vir: "Com luta, com garra, a casa sai na marra".
Onze dias depois, o Estado pediu reintegração de posse da área. Na véspera do Natal, o pedido foi negado pela Justiça. Estava sacramentada. Demarcada ao chão, com estacas e lonas, e gravada na história, nascia uma das maiores ocupações urbanas da América Latina: a Nova Santa Marta. Vinte e cinco anos depois, os moradores continuam a sonhar com o mais desejado presente de Natal, o termo de posse de suas casas.
A luta não se restringe a um mero documento
Wagner Unfer Pompeo, tem 25 anos, a mesma idade do bairro onde cresceu. Embora não integrasse o grupo que ocupou a Fazenda Santa Marta, em 7 de dezembro de 1991, chegou meses depois, no colo dos pais, Éder e Ivonete. Na casa 89 da quadra 6, onde sempre morou, as fotografias atestam a passagem do tempo. O jovem recorda do descampado e do chão batido que levavam à sanga que atravessava para ir à escola.
Ele fez parte da primeira turma da Escola Marista Santa Marta. Quatro anos depois, estava na inauguração da Escola Santa Marta. O Ensino Médio, teve de cursar no Centro porque, à época, a modalidade não era oferecida no bairro.
Apesar de a Santa Marta ser maior que muitas cidades gaúchas (são 25 mil habitantes), a morosidade no processo de regularização fundiária implicou no retrocesso.
- Faltam oportunidades aqui. E se formos esperar pela regularização, sinceramente, acho que ainda vai demorar - diz o jovem, que trabalha como gerente de cinemas.
Quando se mudou com a família para a Nova Santa Marta, o pai de Wagner, Éder Pompeo, 54 anos, que hoje trabalha como auxiliar administrativo da Escola Marista, não saiu de regiões periféricas, como muitos moradores. Saiu da área central de Santa Maria. A mudança foi motivada pela alta inflação, pela constante necessidade de mudar de casa, mal restando dinheiro para comprar o básico dentro de casa. A Santa Marta não trouxe à família só uma vida melhor. Éder aprendeu a dimensão de valores, direitos e deveres como cidadão:
- Nossa luta foi para que as pessoas não tivessem preconceito com os moradores daqui. Éramos "os sem-teto", era difícil para conseguir trabalho. Viemos lutar por habitação. No diálogo, tínhamos que ir para ofensiva. Logo nós, que viemos do Centro, tivemos de aprender a lidar com as pessoas de lá.
Em anos, Éder tornou-se líder comunitário. Esteve frente a frente com políticos, participou de audiências, tribunas livres e debates. Muito fez por sua comunidade. Em épocas em que a criminalidade amordaçava e rotulava moradores, junto de outros líderes comunitários, ele chegou a distribuir folhetos. Subia nos ônibus e circulava dentro dos veículos porque acreditava que, sendo conhecido, poderia coibir formas de violência.
A carência de políticas de segurança segue sendo um dos gargalos da Nova Santa Marta. Há uma semana, mais um homicídio foi registrado na região - só neste ano, são nove casos. Em março de 2015, a Escola Municipal Adelmo Simas Genro teve aulas suspensas após um aluno de 14 anos ser esfaqueado, e o local, apedrejado. Há dois meses, muros foram erguidos com o intuito de proteger alunos e professores, mas segregaram o imóvel do espaço urbano. Quem passa pela rua nem sequer enxerga o nome da escola, escondido atrás da fachada de concreto.
Éder se recorda das inúmeras vezes em que foi discutida a implantação de uma Polícia Comunitária lá. Houve até interesse de instalar uma delegacia de Polícia Civi, mas os projetos esbarraram no empecilho da regularização fundiária. Sem a posse dos imóveis, não há como alugá-los. Tais mazelas atestam que a luta pela moradia vai bem além do documento de posse do imóvel.
- Nós, que trabalhamos, temos fundo de garantia para construir, mas, e quem não tem? Financiamento imobiliário não sai sem uma escritura. Não temos redes de mercado, lojas nem farmácias. A Nova Santa Marta é um polo de mão de obra trabalhadora. E muitos usaram nossas fragilidades para fazer política. Se a regularização fundiária não sair, eles estarão brincando com 25 mil pessoas - afirma Éder.
Para além da casa com quatro paredes
Em 1986, a realidade econômica do Brasil era o algoz de milhares de famílias. O país presenciou o congelamento de preços, após ser lançado o Plano Cruzado. Foi em meio à remarcação diária de preços diários, na qual o valor dos aluguéis se sobrepunha a necessidades básicas, como alimentação, que lideranças comunitárias começaram a se articular. Em 1990, nascia o Movimento Nacional de Luta Pela Moradia.
Em Santa Maria, após diversas reuniões, líderes partiram para uma ação mais efetiva. E o local escolhido foi a Fazenda Santa Marta. Formada por cerca de 1,2 mil hectares, ela havia sido desapropriada pelo Estado em 1978. Dois anos depois, 39 hectares foram usados para a criação da Cohab Santa Marta, vizinha da Nova Santa Marta. Em 1985, a Companhia Estadual de Habitação recebeu 343 hectares com a promessa de construir um novo conjunto habitacional. O prazo de cinco anos não foi cumprido, o acordo foi desfeito, e a área retornou ao Estado. Diante da inoperância dos agentes públicos, as famílias tomaram a terra.
Segundo a geógrafa, integrante do Observatório das Metrópoles e ativista no Coletivo A Cidade Que Queremos, Lucimar Fátima Siqueira, a Nova Santa Marta foi um caso de sucesso da luta pela reforma urbana.
- A ocupação foi totalmente integrada à cidade. A luta pela implementação de equipamentos urbanos, como escolas, mostra amadurecimento, pois não foi uma demanda apenas pela "casa com quatro paredes".
A paisagem que um dia foi de campos e sangas evoluiu para milhares de casas, ruas, escolas e igrejas. Atualmente, o bairro conta com três escolas: Marista, Santa Marta, Adelmo Simas Genro, além de duas de Educação Infantil (Emei), uma unidade de Estratégia de Saúde da Família (ESF), um Centro de Referência de Assistência Social (Cras), uma unidade do Aldeia SOS, a Associação de Recicladores Pôr do Sol e um Centro de Artes e Esportes Unificados, esse construído por convênio entre prefeitura e Ministério da Cultura, mas ainda não inaugurado.
Lucimar salienta o fato de a ocupação não ter se transformado em favela, motivo de orgulho dos representantes do movimento.
A educação na base do desenvolvimento
Polos de aprendizado e inclusão, as escolas têm papel determinante no desenvolvimento do bairro. Veja o que dizem seus representantes.
:: Escola Estadual Nova Santa Marta
"A escola é baseada na educação popular, valoriza a cultura local e o resgate do histórico da Nova Santa Marta. A principal conquista da comunidade foi a implantação do Ensino Médio, em 2012. A escola participou ativamente das lutas pela melhoria das questões sociais, como moradia, saneamento básico, regularização fundiária, cultura da paz e preservação do meio ambiente." (Direção da escola)
:: Escola Marista Santa Marta (1998) e Centro Social Marista (2010)
"A escola faz-se presente na história da ocupação, através do trabalho de irmãos, leigos e funcionários, na mobilização da comunidade, no fomento de novas lideranças, na escuta das famílias e na oferta de um espaço educacional integral que auxilia na formação das crianças e dos jovens da comunidade. A relação que se construiu entre escola e comunidade é uma via de mão dupla, em que ambos se desenvolvem na partilha de vidas e sonhos." (Irmão José Carlos Da Silva Bittencourt, gestor da escola)
:: Escola Municipal Adelmo Simas Genro
"Na árdua e longa luta pela moradia, no decorrer de 25 anos de história, a instituição sempre foi palco de discussão. Em todas as oportunidades, ofereceu condições para que as lideranças envolvidas com o tema fossem protagonistas e construíssem alternativas viáveis e concretas com o objetivo específico de que a regularização fundiária se torne realidade num futuro bem próximo." (Professor Pedro Adamar Oliveira dos Santos, diretor do colégio)
Urbanização, ontem e hoje
Ao todo, sete comunidades formam o bairro Nova Santa Marta:
7 de Dezembro
Desde 1991. Foi o primeiro núcleo de ocupação, organizado pelo Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM)
10 de Outubro
Em 1992, famílias da ocupação Fernandes Vieira são despejadas pela Justiça. Por meio do movimento, deslocaram-se para a Nova Santa Marta em 10 de outubro daquele ano
Núcleo Central
Formou-se a partir de uma ocupação espontânea, em 4 de março de 1993
Pôr do Sol
Também se formou a partir de ocupação espontânea ao longo de 1993
Alto da Boa Vista
Organizada em 1993 pelo Movimento de Luta pela Moradia, surge como resposta à falta de interesse do Estado nas áreas das vilas 7 de Dezembro e
10 de Outubro
18 de Abril
Ocupação espontânea feita em 18 de abril de 1998
Marista
Surge após a chegada da Escola Marista, em 1998
Enraizados na causa
Nos idos de 1988, o pedreiro Vanderlei dos Santos Pereira, 53 anos, começou sua saga rumo à moradia. Antes mesmo de oficializado o Movimento de Luta Pela Moradia, ele já participava de plenárias e articulava, com alguns setores da cidade, a respeito da especulação imobiliária e do deficit habitacional. Da época da decisão pela ocupação da Fazenda Santa Marta, a lembrança que ainda emociona o pedreiro é das famílias que viam nos líderes a esperança:
- Aquilo nos deu força. Ficamos três dias sem água, sem nos alimentarmos. Pessoas da Vila Caramelo jogavam pets de água para nós. E, mesmo com todas essas dificuldades, a gente se sentiu grande. Tinha quem nos via como invasores, mesmo que fosse uma terra devoluta, em débito com Estado e que tinha de ter uma função social. Por um ano, a acomodação se deu debaixo de lonas pretas. A extensão de água vinha da Vila Prado. A água era buscada com baldes e chaleiras.
Integrante da direção nacional do movimento, a diarista Nilda Marlize Ribeiro, 48 nos, mora no bairro há anos. As conquistas, segundo ela, não foram meras concessões, mas frutos do esforço dos que moram na comunidade. Desde a luta pela vinda da primeira escola até serviços, como linhas de ônibus, demarcação de ruas e iluminação.
- Fomos à luta. Fechamos BRs, fazendo barulho na porta de prefeitura, da Caixa Federal. Fomos ao Piratini e ao Palácio do Planalto. Sem tudo isso, nada teria acontecido. Seríamos mais uma comunidade que existe há 40, 50 anos, e por onde passa um único ônibus. Está na Constituição que todos têm direito à moradia. Porque quem garante isso, somos nós. Sempre dizemos: se morar é um privilégio, ocupar é um direito.
A organização dos ocupantes impediu que o local tivesse composição de favela. Desde o começo, foram respeitadas as áreas próximas a nascentes e que não comprometessem a arborização. Também foram pensados locais como espaços da lazer.
Pereira completa que, não fossem as lideranças, os colégios, as associações, a Nova Santa Marta teria "ficado para trás". Embora haja diversidade, grande número de moradores e diferenças internas, uma causa comum fomentou as reivindicações:
- Há nove anos, quando as verbas do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) foram anunciadas, nos mexemos para que a área fosse passada ao município. Assim, recebemos mais recursos. Aqui, temos bom diálogo com todos, apesar de nem todo mundo pensar igual. Tem que despartidarizar a luta social. Só através da unidade é que a gente pode construir as coisas - diz ele.
Nova realidade, mesmos anseios
poucos metros da Escola Adelmo Simas Genro, cerca de 50 famílias se instalaram em um local conhecido como ocupação da caixa d'água. A maioria vem de despejos de outros locais da cidade. A prefeitura afirma que já há uma reintegração de posse para área, e que os moradores serão removidos. Contudo, não sabe informar para onde serão destinadas as pessoas. Tampouco se o local ocupado pertence, de fato, à Nova Santa Marta.
Entretanto, integrantes do Movimento de Luta pela Moradia dizem representar os ocupantes como pertencentes do bairro e, inclusive, afirmam já ter feito articulações entre a nova ocupação e o poder público.
Se as realidades e o contexto político-social são diferentes, os receios se repetem: gente que não tem onde morar e teme ser expulso doa casebres colocados na área há cerca de um ano.
- Medo que ocorra o mesmo do Parque Pinheiro, que deram uma hora para as pessoas saíram de casa. Lá na Cipriano (ocupação recente do residencial Cipriano da Rocha), teve polícia colocando fogo nas casas, e a prefeitura passando a patrola por cima - afirma Mariane Antonia Veiga.
O catador Constatino Renato Leão, 54 anos, foi o primeiro a chegar na região da caixa d'água. Pai de 14 filhos, carregou os restos de madeira da antiga residência onde morava, no distrito de Santa Flora, para construir a nova morada, de dois cômodos, onde vive com oito dos filhos.
Leão saiu do distrito porque precisava fazer uma cirurgia cardíaca. Segundo ele, ficava mais perto e menos caro para ir da casa ao hospital. Na mesma rua, também moram outros parentes do catador, que foram se acomodando após ele se instalar.
Em meio à extrema simplicidade, o catador diz que gosta dali. Um pinheiro achado no lixo e colocado em frente à casa sugere a vida que ele gostaria como presente de Natal.
- Aqui, de ruim é pouca coisa. O que ficamos preocupados é com a história que vão nos tirar. Esse é o único lugar onde a gente tem uma esperança.
Regularização emperrada
Duas décadas e meia se desdobraram em uma trajetória marcada por problemas sociais, luta pela moradia e resistência na Nova Santa Marta.
Mas foi só em 2007, com a liberação de R$ 35 milhões pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal, que começou o processo de regularização fundiária de uma das maiores ocupações da América Latina.
Marcado por entraves burocráticos e dificuldade no cadastramento das famílias, o processo ainda não terminou. Somente em 22 setembro deste ano, a prefeitura assinou a ordem de serviço da última etapa: a regularização de cerca de 5,5 mil lotes do bairro. A empresa vencedora foi a Geoconsultores - Engenharia e Meio Ambiente, de Tubarão (SC).
- Depois de tanto tempo, é a valorização à cidadania e à presença que deve existir no poder público para os mais humildes - disse o prefeito José Haidar Farret, ao anunciar a última etapa.
O começo dos trabalhos
A regularização começou, na prática, em 2008, quando a empresa Enecom concluiu o mapeamento topográfico da área da Nova Santa Marta. Segundo o secretário de Habitação, Wagner Bitencourt, nos três anos seguintes, foram executadas obras de infraestrutura, como pavimentação de ruas, meio fio, rede de esgoto e pluvial.
Em 2011, a EngePlus foi contratada para dar continuidade ao processo. Segundo o secretário, o contrato com essa empresa acabou sendo rescindo em decorrência de uma decisão da Justiça de Bagé em decorrência de um processo que investiga contratações fraudulentas por parte da empresa.
O engenheiro Francisco Severo, presidente do Instituto de Planejamento (Iplan) de Santa Maria, acredita que, em 25 anos de ocupação, processos migratórios internos continuaram existindo na Santa Marta, o que dificulta o trabalho de regularização.
- Há constantes mudanças de famílias dentro da área, comercialização de lotes, grilagem. Uma das empresa licitadas (a EngePlus) teve dificuldades no cadastramento das famílias e acabou interrompendo o serviço, mesmo arcando com as consequências contratuais e prejuízos financeiros.
Contratada por mais de R$ 134 mil para finalizar a última etapa da regularização fundiária, a empresa Geoconsultores - Engenharia e Meio Ambiente já se instalou na Nova Santa Marta. Na semana passada, técnicos relatavam a desconfiança e a hostilidade de alguns moradores no fornecimento de informações. A previsão da atual administração é que o documento de posse saia até abril.
- O que é concreto é que já existe essa ação e nunca se chegou a esse patamar que está hoje. Peço que a população acredite no nosso trabalho. Independentemente da governança, a empresa está licitada e não há problema com a troca de governo - diz Bitencourt.
O prefeito eleito, Jorge Pozzobom ( PSDB), não é tão otimista:
- Vou reavaliar os contratos feitos e o que está em vigor para a regularização dos lotes. E vamos chamar as universidades. Duvido que até abril vai estar pronto. Desde 2009, contrata-se uma empresa aqui, rescinde-se um contrato lá. Assumo o compromisso que vamos regularizar a área e discutir um IPTU social.
Para a comunidade da Nova Santa Marta, esse cenário mais parece uma cena que se repete. Entre céticos e esperançosos, os 25 mil moradores atravessam o 25º Natal sem a posse oficial de suas casas.
Fontes: Comunidade Nova Santa Marta e "Nova Santa Marta: uma evolução histórico-espacial", de Maurício de Freitas Scherer
Carta de uma moradora*
Me chamo Suelen Aires Gonçalves. Nasci em Uruguaiana, em 1986. Sou filha do soldador Gaspar da Silva Gonçalves e da vendedora do comércio Maria de Lourdes Pedroso Aires. Até a década de 1990, vivíamos na cidade da fronteira com o mínimo de estrutura, morando de aluguel, mas com condições de manter uma vida digna. Isso foi antes do governo neoliberal, do processo de ataques à classe trabalhadora, da desvalorização da moeda brasileira e do desemprego.
Minha família estava em busca de tratamento médico para meu irmão Gustavo. Buscamos alternativa de acesso à saúde pública na cidade chamada Santa Maria. Compreendemos que seria necessário nosso deslocamento. Foi então que conhecemos a Nova Santa Marta, com quatro anos de formação. Minha família conheceu figuras do Movimento da Luta pela Moradia, que nos apresentaram a ocupação, nossa morada até hoje.
No dia 28 de fevereiro de 1995, pegamos o último trem, partindo de Uruguaiana a Santa Maria. Iniciou, nesse momento, nossa luta pela moradia, por direitos e por dignidade. Eu tinha 8 anos. Minha primeira memória é de um lugar organizado, com reuniões periódicas que minha mãe participava. Havia união da comunidade em pautas coletivas, mesmo entre diferentes realidades e regiões. O que nos unificou foi o acesso à cidade e à vida. Ocupamos um terreno na Vila 10 de Outubro, Rua 10, nº 195. Não tínhamos acesso à água nem à luz. Somente alguns vizinhos mais antigos tinham esses recursos. Mas, a organização da comunidade foi uma mola propulsora de conquistas. Tive uma infância e adolescência saudáveis, com acesso à educação, brincando com crianças de todas as vilas, mesmo em meio às adversidades, como falta de praças e subempregos.
Em 1996, a ocupação foi sitiada pela polícia, houve momentos de apreensão. Para qualquer deslocamento, éramos revistados e necessitávamos estar com documentos na mochila. Lutávamos pela aceitação da comunidade ao redor, mas éramos vistos como "marginais".
Houve um senso comum, por parte da imprensa local, que éramos sem-teto, sem direito de acessar a cidade, sem direito à humanidade. Creio que tais situações foram fundamentais na minha militância e no meu futuro profissional.
Gostaria de compreender o porquê dos estigmas, o porquê da miséria e da pobreza, o porquê da violência. Aqui estou, em busca de tais respostas. Como cientista social, faço minha pesquisa engajada para dialogar sobre os problemas sociais.
Com o passar dos anos, mudamos para a Vila 7 de Dezembro, Rua 5, nº 60, hoje, Rua Rio São Francisco. A ocupação foi se expandindo. Fez-se necessária a intervenção estatal. No governo Lula, começou a urbanização, com as obras do PAC. Deu-se início ao saneamento básico, ao asfaltamento, ao assentamento de famílias das áreas de risco e à tão sonhada regularização.
Eu estava saindo da adolescência e acreditava que só a organização mudaria a vida. Até hoje, tenho esse lema. Infelizmente, passaram-se nove anos, e não temos a conclusão do nosso sonho, por conta da falta de eficiência e vontade política. Necessitamos de escritura, de farmácia, de comércio regular. Além, é claro, do símbolo de cada propriedade no nome dos lutadores e lutadoras desta terra. Temos muito que caminhar!
*Suelen Aires Gonçalves, 29 anos, cientista social formada pela Universidade Federal de Santa Maria, doutoranda em Sociologia pela Universidade do Rio Grande do Sul e integrante da direção do Movimento Nacional de Luta pela Moradia
EXPEDIENTE
reportagem
PÂMELA RUBIN MATGE
edição
SILVANA SILVA
arte
RAFAEL GUERRA