plural

PLURAL: os textos de Atílio Alencar e Fabiano Dallmeyer

18.398


Uma Rosa do Sertão
Atílio Alencar
Produtor cultural


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Rosa deixou o grande sertão mineiro para viver um amor impossível no sul. "Não pensava em mais nada, só queria ficar perto dele. Daí, vim embora pra cá".

Depois o amor acabou, mas Rosa tinha se afeiçoado ao sul. Fez amizades, constituiu família, criou laços com a terra. Por gostar de ajudar as pessoas, resolveu lutar ao lado dos que precisam. "A gente tem que se ajudar, só assim a coisa anda".

Quando a conheci, ela estava reforçando a estrutura de um barracão de lona no acampamento sem-terra Gladiadores sem Fronteiras, em Livramento, fronteira com o Uruguai. Ofereci ajuda; ela sorriu e agradeceu, mas disse que dava conta. E seguiu conversando enquanto lidava com a taquara e a corda.

Na noite anterior, o vento infinito da campanha havia levantado muitos barracões do chão. As crianças, assustadas, não conseguiram dormir. Rosa era uma das pessoas com a tarefa de dar manutenção ao acampamento. Enquanto trabalhava na restauração da barraca, uma mulher um pouco mais jovem lhe dava assistência e cuidava de três crianças, todas filhas de outras famílias de acampados.

"Gosto da luta, gosto do movimento. Acho que, às vezes, é muita reunião pra discutir tudo, tem coisa que podia ser mais simples. Mas a gente entende, é muita gente, muita necessidade, muita coisa pra organizar". Rosa reflete enquanto trabalha, sorridente - um sorriso que nem sempre sugere alegria, mas compreensão dos percalços da vida.

O SERTÃO É DENTRO DA GENTE

Acabado o serviço, Rosa esfrega as mãos na blusa puída para devolver a terra vermelha ao chão. Ela me conta dos rapazes que mudam de vida ao entrar para o movimento, deixando de brigar e encher a cara com a aguardente da fronteira para empregar o vigor nas tarefas elementares do acampamento: erguer barracas, cavar fossas, puxar a luz e fazer a vigília. É com um ar maternal quase arquetípico que ela fala sobre homens feitos como se ainda fossem filhotes que suas asas de coruja devem abrigar. Quando a jovem amiga de Rosa diz que sonha em conhecer o sertão, Rosa sorri sem palavras, mas a imagino dizer - como um outro Rosa o disse em seu grande sertão: o sertão é dentro da gente.

O EXÔDO SEM FIM DOS DESERDADOS DA TERRA

No silêncio laborioso daquela mulher, uma reminiscência do êxodo sem fim, das agruras que molestam o corpo e a alma dos deserdados da terra. Memórias que nem sempre ganham a forma da palavra, mas que se deixam adivinhar nos espaços em branco da conversa. 

Depois nos despedimos, Rosa seguiu firme e serena ao vento como um céu estrelado, uma lua de colheita.

Lembranças 
Fabiano Dallmeyer
Fotógrafo


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Quando se está longe de casa, por muitos anos, o sentimento é de nostalgia e aflora com uma força e velocidade impressionantes. Não importa muito, é verdade, o que se torna gatilho para revirar nossa memória. É como se, num piscar de olhos, embarcássemos na máquina do tempo. Caminhar pelas ruas da nossa cidade em plena madrugada - sim, não faz muito tempo, isso era possível! - após ter chacoalhado o esqueleto e batido cabeça até ficar tonto, ou quem sabe ter dançado de rosto colado nas mais kitsch baladas (quem nunca esperou por horas, até que o DJ resolvesse "colaborar" e desse play na What's Up da 4 Non Blondes ou I Want to know what love is do Foreigner, apenas para servir de exemplo para os jovens). Rosto colado é coisa que os jovens de hoje não conhecem como preliminares de um ato de sedução. Sedução que começava com uma conversa de ouvido e, logo, transformava-se numa enciclopédia romântica em que valiam até mentiras ingênuas. O "sim" dela poderia significar um beijo longo de olhos fechados, pois os olhos já tinham se cruzado num momento da festa, mas poderia ser apenas formal para não dar um "cano" no rapaz. Bons tempos onde as preocupações eram tão duras quanto escolher bem a menina que se queria conhecer melhor, ou se aproximar. Sem drogas. Sem violências. Muito diferente.

PÓS FESTA

Com Ou sem companhia, tudo era uma incógnita. Havia pouca certeza do final da noite. Mas tinha uma que era regra. Nada de ir pra casa de barriga vazia. Ainda mais levemente - ou não - alcoolizados. A parada para um Xis ou um Cachorro era certa!

No meu caso, tudo era feito "de a pé". Cruzava o meu Camobi de ponta a outra, por uma festa ou um Xis. Quantas vezes víamos o sol nascer degustando aquela iguaria que dá para Santa Maria o título de "Cidade do Xis"! Azar do "Gordinho", que tinha que nos aturar. Bons tempos. Bons tempos.

A SURPRESA

Muitos anos depois, eu já estava fora de Santa Maria por anos. Numa conversa de rede social, um grupo discutia onde poderia encontrar uma comida com gosto de Brasil - falando do Algarve, sul de Portugal - e que fosse realmente boa. Após várias sugestões tradicionais, como os pastéis de vento, as feijoadas e afins, alguém comentou que, na capital da região, Faro, havia um Xis, que era realmente um Xis "gaúcho", muito bom e que valia a pena.  

Não resistimos. Fomos até lá apenas para provar e comprovar o que nos foi dito. Que grande surpresa! Depois de anos, um Xis. Mas Xis com gosto de Xis. Nada de gourmetizados e afins - nada contra, antes que pensem. Xis com aquele sabor padrão. Tive nas mãos (não pode haver outra forma de se comer um Xis) um verdadeiro lanche, com tamanho, textura, sabor e gordura de chapa que, desde a primeira mordida, me fez recordar os tempos em que recorria às ruas de Santa Maria.

Poderia ser melhor? Com certeza. Faltou a Cyrillinha, é claro. 

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