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Não há racionalidade na barbárie

Não pretendo aqui falar sobre dignidade da pessoa humana, nem fazer defesa enfática dos direitos humanos. Muito menos me proponho a falar sobre misericórdia, compaixão, piedade, perdão, amor ao próximo, ou outras virtudes que, em tese, deveriam estar encrustadas numa cultura judaico-cristã como se pretende a nossa. Aqueles a quem quero atingir são impermeáveis a este tipo de linguagem. Por isso, mudarei a abordagem e apelarei exclusivamente à racionalidade.

Uma barbárie aconteceu no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, no Estado do Amazonas, e redundou na morte de pelo menos 56 indivíduos. Chamarei aqueles mortos de "indivíduos", já que o público que quero atingir não costuma considerá-los "pessoas", muito menos "cidadãos". Então, 56 indivíduos morreram numa carnificina ocorrida dentro de um estabelecimento estatal.

Isso é bom, não é? Significa que hoje temos menos 56 criminosos no mundo e que, se continuar neste ritmo, os bandidos vão se extinguir mutuamente, correto? Não. Não é assim que a coisa funciona. Essa monstruosidade não significa enfraquecimento de qualquer dos lados envolvidos. Ao contrário, ela é sinal de que a luta entre criminosos, que há muito ocorre nos subterrâneos da sociedade, ganhou proporções tão grandes e formas tão brutais que o Estado já não é mais capaz de contê-la, nem mesmo dentro de seus próprios prédios.

Pois quando o Estado perde a capacidade de conter a violência nas suas próprias dependências, a luta pelo poder se transforma em luta pela sobrevivência. Para sobrepujar os rivais, alcançar o poder e, assim, garantir a própria vida, os grupos envolvidos buscam mais armas e mais pessoal. Para isso, assaltam mais lojas, roubam mais pessoas, furtam mais carros, traficam mais drogas, aplicam mais golpes, coagem mais famílias pobres e, obviamente, agem com mais ousadia e crueldade, principalmente, a polícia e rivais.

Tem-se aí uma bola de neve que cresce exponencialmente, enquanto muitos inadvertidamente esfregam as mãos e comemoram as demonstrações de recrudescimento violento. É ingênua, para não dizer estúpida, a crença de que a violência entre criminosos fará diminuir a própria violência entre criminosos.

Ademais, acredite-se ou não, quaisquer indivíduos, mesmo aqueles encarcerados por envolvimento com o crime, possuem família e amigos. Têm mãe, pai, irmãos, primos, amigos de infância ou outros antigos conviventes que, mesmo não tendo relação com o crime, sofrerão algum tipo de impacto negativo em função de morte tão dramática justamente dentro de um prédio estatal. Revolta, desespero, raiva, descrença ou repulsa são apenas algumas das sensações que se disseminam após a ocorrência de uma monstruosidade dessas proporções. Não é aflorando tais sentimentos que se atingirá o pretendido apaziguamento da sociedade.

Não há, portanto, qualquer argumento ético, moral, religioso ou racional que nos impeça de lamentar o ocorrido no Presídio no Amazonas. Nenhum. Não há racionalidade na barbárie. Tenhamos isso bem claro.

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