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'Não esquece de dizer pra ele que tem que ter braço e perna'

data-filename="retriever" style="width: 100%;">Um dos maiores hábitos (ou será vícios?) do ser humano é o ato de reclamar. Reclamamos de quase tudo. Do calor, do frio, da seca, da chuva, do trânsito, da comida, do barulho e até mesmo da sorte. Somos mestres nessa arte.

Esta é uma história real acontecida em uma tarde quente de dezembro em um ano da década de 1980 no cemitério municipal de Santa Maria, a mim contada por uma pessoa muito especial que já retornou à pátria espiritual. Vou transcrevê-la usando a primeira pessoa como se fosse ela quem estivesse a contar.

Ventava norte! Como sempre faço, fui ao cemitério levar flores para o meu pai já falecido ainda quando eu era menina. Nos corredores da "última morada" nenhum barulho que não fosse o farfalhar das folhas verdes das árvores e das folhas secas ao sabor do vento quente sem saber e sem se importar para onde ir. De resto, tudo calmo, tudo mudo, tudo morno, tudo morto, ou seria melhor, todos mortos? Foi um pensamento que me assaltou e que o ignorei de pronto impulsionado pela visão, ao longe, de uma menina que caminhava vindo em minha direção segurando um balde. Fomos nos aproximando e a sua silhueta, a cada passo, foi se delineando cada vez mais. Há poucos metros de mim ela parou, esperou eu me aproximar um pouco mais e perguntou:

"Quer água, tia?" . Tal foi o apelo por ajuda trazido naquelas palavras que não tive tempo nem de pensar se realmente eu precisaria ou não, quando meus lábios impulsionados pelo meu coração disseram: "Sim!". "Então eu levo pra senhora". E saiu caminhando, em silêncio ao meu lado. Seus cabelos judiados em um tom castanho escuro e desalinhados até a altura dos ombros esvoaçavam ao sabor do vento. "Como é o teu nome?", perguntei! E ela, de pronto, olhando para cima fitando os meus olhos, respondeu: "Aline!". "E tu estás no colégio?", perguntei tentando dar início a uma conversa. "Sim, "tô" no terceiro ano na escola perto de casa". "E quantos anos tu tens?" "Tenho nove". "E tu gostas da escola?" "Gosto, mas às vezes eu não vou todos os dias, porque a minha mãe trabalha e eu fico cuidando dos meus irmãos.". "Quantos irmãos tu tens?" ."Tenho seis!" ."E o teu pai trabalha, também?" ."Não, eu não tenho pai. A minha mãe disse que ele morreu faz tempo. Eu só tenho tio." ."Tio?", perguntei meio sem entender. "Sim! Eles vão lá em casa, levam coisas para a minha mãe e às vezes ela sai com eles e aí eu não vou na escola pra ficar com meus irmãos."

Meu Deus! Como que uma cortina que se abre, tudo se clareou e ficou límpido como um céu de brigadeiro. "E onde tu moras?" ."Eu moro ali na esquina de baixo ao lado do Bar do Teco".

Por um momento, fiquei perplexa sem saber o que mais perguntar enquanto chegávamos ao túmulo onde meu pai havia sido enterrado. As flores mortas denunciavam que nem eu e nem ninguém havia estado ali recentemente. Parei e meio constrangida comigo mesma, iniciei uma oração silenciosa. Ela ao meu lado, também em pé, baixou a cabeça e permaneceu em silencio respeitoso. Se orou, não sei. Assim que eu encerrei a oração, ela se abaixou junto comigo e começamos a retirar as flores secas substituindo-as pelos crisântemos amarelos que trazia comigo. Quebrando o silencio, perguntei: "Tu já escrevestes a cartinha para o Papai Noel?" ."Não, tia, porque a minha mãe disse que não adiante escrever porque ele não traz presente pra pobre."

Aquelas palavras ditas por aquele ser destituído de bens materiais, mas cheia, muito mais do que eu, de pureza de alma, bateu em mim com a força de um soco demolidor que me levou a precisar, tal qual um pugilista abatido, de muitos segundos para conseguir me recompor emocionalmente. Foi nesse momento que eu percebi que o meu Natal não era o mesmo dela, se é que para ela algum dia havia existido Natal. "Mas, e se ele trouxesse tu gostarias de ganhar uma boneca?", perguntei. E foi nesse momento que ela novamente me fez sair da minha realidade para entrar na dela. "Com braço e perna?", perguntou com um sorriso nos lábios e um brilho no olhar. "Sim, claro! Com braço, perna e vestido", confirmei!. "Limpo?", disse-me nocauteado mais uma vez. "Sim, claro! Limpo e cor de rosa.". "Tu vai mesmo escrever pra ele, tia?". "Hoje mesmo, assim que chegar em casa".

Minha lição de vida daquele dia havia terminado. Recompus-me, muito mais no sentido emocional, paguei pela água o valor combinado, nos despedimos e saí caminhando em direção à saída enquanto ela ficou parada com o balde na mão me olhando. Antes de ultrapassar o portão principal, ainda deu tempo de escutar ela gritar:

"Não esquece de dizer pra ele que tem que ter braço e perna". 

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