cultura

Memória em brasas



21 de julho de 2019, domingo. Dentro de pouco mais de um mês, especificamente no dia 23 de agosto, o jornalista e escritor Felipe D'Oliveira, natural de Santa Maria, estaria de aniversário. Se estivesse vivo, completaria 129 anos. 

Tal ocasião merece ser celebrada, claro. Pois Felipe D'Oliveira deixou uma contribuição literária e cultural inegável para o município, o estado e o país. Ou seja, foi uma pessoa que colaborou para o legado histórico, de memória e de patrimônio que identifica Santa Maria. E, não por acaso, agosto foi eleito para representar o Mês da Cultura em Santa Maria. Que, este ano, marca a sua 51ª edição, menos da metade da idade de Felipe D'Oliveira. 

Contudo, em meio ao clima de véspera de agosto, muitas perguntas ficam no ar: o que faz a cultura de Santa Maria hoje? Quem participa dela? O quão significativa é para a cidade, considerada a Cidade Cultura do Rio Grande do Sul? Quem ela representa? Com quem e para quem ela fala? 

Se Felipe D'Oliveira estivesse aqui, neste domingo, como elaboraria perguntas e respostas sobre a cultura da cidade? Bem, como nós é que estamos aqui nestes dias, é essa tarefa que nos cabe. E muitas respostas podem dar conta dessas perguntas. Tal como muitas outras perguntas e problemas podem ser levantados. A propósito de políticas públicas e econômicas, identidade coletiva, comportamentos individuais, História e memória, claro. 

Entretanto, falando em memória, e diante de mais um ano de celebração do título de Cidade Cultura, um acontecimento pode ser representativo do momento da cidade: o incêndio de um dos vagões que ficava no pátio da gare da Viação Férrea de Santa Maria. O vagão de administração, datado da década de 1930, que havia sido restaurado há cerca de 7 anos. E que já estava se deteriorando e sendo pilhado nos últimos tempos. 

Uma das linhas de investigação do incêndio aponta para a possibilidade de ser um ato intencional e criminoso. Mas, afinal, o que leva alguém a depredar parte daquilo que é considerado o patrimônio de Santa Maria? Ou, ainda, o que leva uma comunidade a abandonar a sua história? 

A gare, espaço que evoca a anterior presença da ferrovia na região, que mapeou não somente a sua geografia, mas também a sua história, há muito que se consome. Pelo tempo, pela falta de investimentos, de cuidados e de manutenção, e também pelas políticas públicas - como a aprovação do Novo Plano Diretor em 2018. Plano este que expõe mais ainda o patrimônio de Santa Maria ao poder de barganha de empreiteiros, colocando a sua preservação e até mesmo os porquês de sua existência em risco. 

Falar sobre a importância do patrimônio de Santa Maria, tomando como exemplo o vagão da gare consumido pelas chamas, não se trata de conversa saudosista. Tampouco de papo irreal e delirante, de quem desconhece os desafios do município, com suas necessidades de assistência à saúde e educação, por exemplo. 

Muito pelo contrário. Valorizar e lutar pela preservação do patrimônio é enfatizar a existência de uma cidade, sua comunidade, sua história e seu direito a existir. E não expô-la a políticas e interesses ocasionais e de apenas algumas pessoas, em detrimento de toda uma longa história e de tantas vidas envolvidas. 

Em outros países, como os da Europa, inclusive admirados por brasileiros e brasileiras que visitam o velho continente, a preservação do patrimônio de suas cidades está acima de qualquer interesse individual que possa desmerecê-la. A iniciativa privada, por sinal, trabalha em parceria, e não contra a preservação da comunidade e sua memória. 

Já em Santa Maria, a memória e o patrimônio sobrevivem feito brasas que agonizam de um incêndio. A Santa Maria na qual viveram Felipe D'Oliveira e tantas outras pessoas, mais ou menos conhecidas.

Contudo, ainda não restaram apenas cinzas. Sendo assim, por que não acolher o calor do que ainda subsiste às chamas? Fazer disso um combustível para o fortalecimento! Da identidade, com suas multiplicidades, formada por pessoas daqui, tal como de gente que vive temporariamente na cidade. Do pertencimento. 

Preservar o patrimônio também cabe, sobretudo, às pessoas e suas vidas cotidianas. É conhecer o seu entorno, ouvir, empoderar-se e permitir-se ser parte de uma história, construí-la. É resistir, questionar, não tornar tolerável o que é intolerável. Afinal, a história também se faz em conflitos. É não se deixar embrutecer e perder as esperanças. É ter afeto e perceber-se enquanto um ser humano, que tem um lugar neste mundo. E, mesmo com tantos incêndios e rescaldos, sempre haverá o que ser salvo por aqui, mesmo que tanto se desacredite na Cidade Cultura dos dias de hoje.

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