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O beijo proibido

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- Pai? preciso conversar com você. Sabe meu amigo Jay? Acho que estou apaixonado por ele. Aliás, estamos apaixonados. Depois de 17 anos eu descobri que nossa relação era muito mais que amizade. Estamos namorando - diz Jonathan Kent ao pai Clark, o Super-Homem.

- Como assim? O que vão pensar de mim? Um ícone de poder, o ser mais poderoso da Terra com um filho gay! Onde foi que eu errei? Como você é capaz de fazer isso comigo?! - exclama o herói.

- Na prática eu não fiz nada a você. Eu herdei seus poderes, seu caráter e luto pela justiça como você faz há 80 anos. Ah, e eu não sou gay. O termo é bissexual, pois eu já tive relações com meninas também. A diferença é que agora me apaixonei por um homem - argumenta o jovem.

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A conversa segue em um clima tenso até que o jovem complementa:

- Você é um exemplo para muitos jovens, já enfrentou preconceito por ser extraterrestre, combateu a injustiça contra os pobres, os negros e venceu os piores vilões. Como pode ser tão injusto em relação à minha felicidade e às minhas escolhas pessoais?

O Super-Homem olha para Louis Lane que, com olhos marejados, segura a mão do filho em sinal de apoio.

- O mundo já está cheio de pessoas que sofrem com isso, Clark. Jamais esperei que você fosse reagir assim. Façamos disso um exemplo para a humanidade - comenta a jornalista.

Kal-El olha para a janela e vê o campo verde da fazenda em Smallville, lembra da infância. Lembra que precisou esconder seus poderes e sua origem no planeta Krypton. Lembra de não poder se defender do bullying que sofria. E pensa o quanto é difícil e sofrido esconder sua identidade por trás de um jornalista humano.

- Realmente, seria hipocrisia de minha parte. Jonathan, sinto muito pela minha reação. Às vezes preciso ser confrontado com a realidade para entender como as coisas são hoje em dia - reflete.

Neste momento, a porta se abre, Jay Nakamura entra na casa com lágrimas nos olhos. Toca o ombro do velho Clark Kent que, por sua vez, acena positivamente. O Super-Homem, então, se levanta e abraça o filho. Louis se junta a eles. Para quebrar o clima, Jay limpa o rosto das lágrimas, abraça o trio e diz "será que se eu pular aí no meio vocês conseguem me segurar?". Todos riem.

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Essa cena não está nos quadrinhos. Mas deve se passar em poucas casas. Em muitas outras, o cenário descamba para agressões, repressões e até assassinatos. Em 2021, teremos um dos maiores ícones mundiais de força e justiça acolhendo o filho bissexual nas histórias em quadrinhos - assunto que deu o que falar mundialmente. No Brasil também. A discussão foi protagonizada pelo jogador de vôlei Maurício Souza. Ao saber que o filho do Super-Homem é bissexual, publicou em seu perfil do Instagram a imagem do herói beijando o namorado e questionou onde vamos parar. A postagem teve repercussão negativa, a ponto de o atleta perder o emprego no clube em que jogava. Ele alega que não foi homofóbico, que apenas deu sua opinião.

Discurso de homofobia, racismo e outros preconceitos a diferenças é crime. O atleta já havia se posicionado contra o uso de pronomes neutros na televisão. Há ali uma questão homofóbica? Na minha opinião, ao ver as postagens de Maurício, um herói do esporte brasileiro, parece que sim. Até porque ele manteve a afirmação em vídeos e entrevistas. A gente tem direito de dar opinião e de se expressar. Mas precisamos lidar com as consequências disso. Se nossa opinião contém homofobia, ela é uma opinião criminosa. Ponto, e não o ponto decisivo de uma final do campeonato mundial de vôlei. Ponto final mesmo.

Discursos como esse de Maurício jogam contra atletas LGBTQI+ que precisam esconder a orientação sexual ou de gênero em função do preconceito. Difícil acreditar que sejam felizes não podendo ser quem são em plenitude.

O papel de Super-Homem e mesmo das histórias em quadrinhos é de usar alegorias e metáforas para refletir a sociedade contemporânea. Os roteiristas e editores já sabem disso. Jonathan Kent não é o primeiro super-herói homossexual. A Mulher-Maravilha é declaradamente bissexual desde 2016. Por que ninguém ficou brabo? O Lanterna Verde Alan Scott é gay assumido. Isso só na DC Comics. Na Marvel, então, os exemplos são tantos que eu levaria três páginas de jornal citando.

A diversidade sexual e étnica está no mundo. E o mundo é representado nas histórias em quadrinhos. Teremos um Super-Homem negro em breve no cinema. O público LGBTQI+ vai se ver representado cada vez mais em todas as mídias. E não vai mais ser preciso ter visão de raio-x para enxergar isso.


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