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PLURAL: os textos de Neila Baldi e Noemy Bastos Aramburú

Cadeiras vazias
Neila Baldi 
Professora universitária

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Na manhã da quarta-feira, feriado em Santa Maria - o dia de sua padroeira, Nossa Senhora da Imaculada Conceição - as cadeiras do plenário do júri, no Foro Central, em Porto Alegre, ficaram vazias. As cadeiras vazias talvez sejam o maior símbolo da tragédia pela qual o coração do Rio Grande sangra, desde aquele 27 de janeiro de 2013.

Vazias ficaram casas de pais e mães. Vazias ficaram cadeiras às mesas, na hora do café, do almoço, do jantar. Há quase nove anos, parentes das 242 vítimas vivem o vazio causado pela dor da perda de seus amores. Diante do que viam naquele júri, quarta-feira, se levantaram, em protesto. Deixaram as cadeiras vazias.

"Ouço insinuações que deveria estar aqui como réu. Mas eu não fiz nada", disse o ex-prefeito Cézar Schirmer, em seu depoimento como testemunha. Foi sua presença e sua fala que provocou o vazio no plenário. De fato, ele não fez, se tivesse feito alguma coisa, talvez, pais e mães não chorassem o vazio. Em seu depoimento, o ex-prefeito disse que a Kiss foi multada sete vezes pela prefeitura, em valores de R$ 16 mil à época. Mas continuou aberta. Cheia. Deixando vazios...

CADEIRA DE QUEM?

Os donos da boate assinaram, antes do incêndio, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para que realizassem obras em função das denúncias por barulho. O promotor de justiça, Ricardo Lozza, que conduziu o TAC na época, também sentou, nesta quarta-feira, numa cadeira no Foro Central, como testemunha.

Diante das cadeiras vazias no plenário do júri, fica a pergunta: que cadeira ocupada, por quem, permitiu que a boate estivesse aberta naquele 27 de janeiro de 2013?

As cadeiras vazias simbolizam também as não ocupadas por aqueles que nunca foram sequer indiciados. O inquérito da Polícia Civil apontava 28 indiciamentos, mas o Ministério Público denunciou apenas quatro. Ninguém do poder público será julgado. Mas a quem cabia a fiscalização? Quem mais deveria ocupar as cadeiras como réus?

CADEIRA DA JUSTIÇA

No dia da padroeira, durante o depoimento, o ex-prefeito carregava consigo Nossa Senhora da Medianeira. Muita gente em Santa Maria é devota dela. Do lado dos parentes, Nossa Senhora Aparecida era a santa presente no plenário. Schirmer criticou o inquérito da Polícia Civil, no qual era apontado por responsabilização. Mas o Ministério Público não o indiciou. Na época, familiares das vítimas questionaram a ação e foram denunciados por calúnia - rejeitada pela Justiça.

Nesta quarta-feira, no Foro Central, em Porto Alegre, não havia, entre as imagens santas presentes no plenário, o santo da Justiça: São Jerônimo. Quando o julgamento acabar, restarão as cadeiras vazias. No plenário e nas casas de pais e mães das vítimas.

A chaga da Kiss volta a sangrar

Noemy Bastos Aramburú
Advogada, administradora judicial, palestrante e doutora

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A tragédia da boate Kiss é um trauma na vida de todo o santa-mariense, e uma sorumbática memória para todo gaúcho e brasileiro. Naquele 27 de janeiro de 2013, todos nós morremos em parte nesse dia, choramos juntos, nos consolamos e estamos nos recuperando juntos. A cidade perdeu parte de sua alegria e isso é inconteste. 

O tempo foi fechando, mas a ferida ainda está muito aberta. Porém, o julgamento, apesar de ser um marco, e a formalização do rogo de Justiça que tanto esperamos, reabre essa ferida, nos traz memórias amargas e embargo na voz, apesar de toda a resiliência e superação que fez com que continuássemos nossas vidas. Mesmo com o vazio que a tragédia trouxe, não podemos esquecer, jamais, dos erros que levaram à ceifa de 242 jovens e essa memória pesada, triste, macambúzia, bem presente é uma marca para que não cometamos novamente os mesmo erros, e quando falo isso, englobo em um todo a sociedade. 

Ora, tudo o que mais desejamos nesse momento é que a resiliência que nos trouxe até aqui possa nos ensinar a lidar com a adversidade de reabrir essa ferida. Nesse julgamento, muitos assuntos por mais que doam, estão sendo esclarecidos. A cada testemunho, ficamos sabendo daquilo que nos era uma hipótese. A cada depoimento e prova mostrados, sentimos um pesar no coração, mas, também, sentimos o sabor da verdade. Passados tantos anos, voltaremos a mergulhar nas águas das memórias, e por mais que venhamos a padecer neste rio, não sofreremos tanto, pois estamos mais maduros, mais calejados neste mister, e como diria Heráclito de Éfeso, tudo flui, ninguém pode banhar-se num rio duas vezes, pois as águas do rio não serão a mesma, tão pouco o homem. 

Apesar de estarmos mais atentos e cientes dos acontecimentos, continuaremos a nos surpreender neste julgamento. Continuaremos a evoluir. A nossa resiliência é perene, assim como a experiência. Dor, angústia e pranto advindos da Kiss, nos fortaleceram, todavia, continuaremos a sentir essa perda como pais, irmãos, tios, tias e santa-marienses. Ora, além de andar e honrar o legado das vítimas da Kiss, necessitamos nos achegar, principalmente, a nós mesmos, refletir e meditar a respeito do que a Boate Kiss nos ensinou. 

Ao meu ver, a resiliência de seguir a vida e a adaptação através da adversidade da perda, a resiliência enquanto modo de superação de situações conflitantes trouxe consigo a possibilidade da experiência traumática ser elaborada simbolicamente, para que, futuramente, sirva como subsídio para evitar novas situações traumáticas. Se porventura viermos a enfrentar, saberemos o que fazer para, como por exemplo, combater a falta de empatia do Estado para com as famílias das vítimas e dar apoio irrestrito a esses e à comunidade, pois esses, sem dúvidas, jamais serão os mesmo novamente.

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