Origem do projeto
O ano era 2011 e o objetivo era contribuir com a efetiva execução das leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que estabelecem a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas brasileiras. Por meio de uma parceria entre o Práxis – Coletivo de Educação Popular, o Museu Treze de Maio e a 8ª Coordenadoria Regional de Educação, o então professor substituto da UFSM Cícero Santiago teve a ideia de produzir ferramentas paradidáticas regionalizadas sobre a temática. Em 2012, era lançado, então, o documentário Juventudes Negras Periféricas, vinculado ao Programa de Licenciaturas da universidade. Agora, uma década depois, um novo documentário foi produzido: Quando a Universidade é a Nossa Casa. O objetivo é contribuir com as reflexões sobre as Ações Afirmativas, no contexto de 10 anos da Lei de Cotas.
As tratativas para o novo projeto tiveram início em 2019, durante a celebração dos 20 anos do Práxis. Ocorreram exibições do material produzido em 2012, com a participação de algumas das personagens. Assim, surgiu a ideia de produzir uma nova edição do projeto, celebrando os 10 anos do lançamento do primeiro documentário. Com direção conjunta de Cícero Santiago, Esther Faria, Maria Rita Py Dutra e Elias Cósta, a nova produção narra as trajetórias de Emelin e Wil, ambos negros, periféricos, estudantes moradores da CEU e protagonistas de ações antirracistas. As gravações ocorreram em agosto de 2021.
PARCEIROS
Cícero Santiago conta que o primeiro desafio da produção de Quando a Universidade é a Nossa Casa foi a busca por parceiros que contribuíssem com a qualificação das fragilidades técnicas observadas na primeira versão. A TV OVO prontamente aceitou o convite para participar, mobilizando a equipe para a realização de oficinas de roteiro e direção, e para as etapas de captação de material em campo, edição e finalização. O segundo passo foi a busca por financiamento, ainda durante a pandemia, via editais de cultura.
A equipe foi formada basicamente por voluntários e, em diversos momentos, alguns membros contribuíram com recursos pessoais. Houve auxílio gratuito de diversas entidades públicas e privadas. Além disso, a TV OVO viabilizou atividades com valores bem abaixo dos preços de mercado.
– Durante as oficinas de roteirização, acordamos em trazer para a tela o caso da ocupação antirracista que ocorreu na Reitoria da UFSM, em 2017. A proposta era dar voz a alguns dos sujeitos que acompanham os eventos, contextualizando experiências pessoais com o processo histórico da Lei de Cotas – diz Santiago.
Assim, vários temas transitam pelo roteiro. Além da reação da comunidade, há casos de racismo, também, uma parte importante da história da UFSM e do movimento estudantil. A trilha sonora do documentário conta com contribuições de compositoras e intérpretes reconhecidas nacionalmente. Também apresenta duas obras do MC Wil, um dos personagens do filme. O documentário conta, ainda, com peças do artista plástico Alexon Messias, protagonista do primeiro trabalho, e com registros fotográficos de Dartagnan Luiz Agostini, que registrou a ocupação da reitoria da UFSM em 2017.
Os personagens
ARTE E OPORTUNIDADE
Foto: Eduardo Ramos (Diário)
Natural de Santa Cruz do Sul, Emelin Coimbra é artista, estudante de Licenciatura Plena em Artes Visuais e Plásticas, cotista, e acredita que o sistema de cotas é muito importante, principalmente para equiparar a possibilidade de acesso de pessoas não-brancas a lugares de ascensão.
Para a professora em formação, a necessidade de explicar sobre as cotas e todo o benefício que elas trouxeram em um país que já proibiu pessoas negras de estudar, comprar terrenos, de se manifestar culturalmente, é algo absurdo. Sobre a participação no documentário, ela conta que foi convidada pela diretora Esther Faria e confessa que, em um primeiro momento, ficou bastante receosa. Ela pensava não ser a pessoa certa para dividir a experiência com Wil, e não se considerava uma referência:
– Eram muitos os motivos para eu dizer não: muito ansiosa, muito clara, muito estranha, muito medo de câmera. E depois de conversas com a equipe do documentário e reflexões, percebi que todos esses motivos vinham do mesmo planeta da síndrome do impostor. Então relaxei e percebi que o documentário não seria sobre pessoas extraordinárias e perfeitas, seria sobre duas pessoas comuns, de lugares comuns, mostrando o que têm em comum: sonhos e lutas – conta Emelin.
A artista reforça que o objetivo do projeto é mostrar que educação e moradia são direitos e que quando alguém ousar dizer que “não”, ela é uma prova de que “sim”.
– Espero que o documentário consiga fomentar o desejo das juventudes negras periféricas ao estudo, que a galera não tenha medo de seus sonhos e nem de falar sobre eles. Vai pro corre! Estude, trabalhe, lute e viva!
DE SÃO PAULO A SANTA MARIA
Foto: Eduardo Ramos (Diário)
No apartamento de Wil, na CEU, a bandeira do Corinthians divide espaço com a cuia de chimarrão. Ele é natural da zona sul de São Paulo e, além de ativista no movimento negro, artista marginal, rapper e produtor musical, Wil é cotista graduando em Engenharia Acústica na UFSM. O artista também estuda Técnico em Segurança do Trabalho no Colégio Técnico Industrial de Santa Maria (CTISM) e trabalha com sonoplastia na Rádio Universidade. Wil também é integrante do Laboratório Interdisciplinar Interativo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais na UFSM. Além de personagem real, Wil também participa da trilha sonora da produção.
Para o estudante, o sistema de cotas possibilitou o acesso dele ao Ensino Técnico e Superior em uma universidade pública e de qualidade. Até então, ele não conhecia ninguém de sua realidade que tinha trilhado o mesmo caminho.
– O documentário é uma peça crucial para a reflexão de como está o processo de cotas 10 anos depois da implementação. Como os estudantes negros que entraram na universidade estão passando esse processo e quantos deles concluem a graduação? – questiona.
Para Wil, o fato de ele e Emelin estarem em uma universidade pública tem muito o peso da assistência estudantil. Segundo o estudante, a UFSM poderia estar no mesmo lugar, mas se não tivesse a CEU, ele não estaria realizando o sonho de estar cursando o Ensino Superior.
– O documentário ajuda a analisar, através dos números e da ciência, e trazer um olhar crítico, em relação a esses 10 anos do sistema de cotas e criar uma perspectiva sobre o futuro. Afinal, é um processo que a gente ainda está discutindo. Tem a questão das cotas para a pós-graduação, por exemplo. E esses alunos que se formaram, qual a possibilidade que eles têm de permanecer na universidade e se tornarem referências para próximos alunos que vão ingressar?
Ainda sobre cotas, Wil continua:
– Cotas é um sistema que acabou sendo adotado por consequência da história desse nosso Brasil. Claro que um dia, quando for igualada a questão do conhecimento, e os negros tiverem no mesmo lugar social que a maioria dos brancos, com certeza, não precisaremos mais dessas políticas. Mas é um processo que precisa ser discutido, avaliado e estudado, como é feito nesse documentário.
OS DIRETORES
Educadores populares e transformadores da realidade social através da educação, mas com pouco experiência na área do audiovisual, se uniram para dar vida ao documentário Quando a Universidade é a Nossa Casa. Maria Rita Py Dutra, Esther Faria, Cícero Santiago e Elias Cósta são os responsáveis por levar às telas a história de 10 anos de lutas, por meio das vivências de Emelin e Wil.
Para 2023, deve iniciar a produção de um novo documentário, que problematizará a inserção de egressos das cotas nos mundos do trabalho. Este toma como referência a Tese de Doutorado da Professora Maria Rita Py Dutra. Conforme os diretores, também iniciará o desenvolvimento de aplicativos educacionais relacionados à pedagogia antirracista. Todos os produtos desenvolvidos são de distribuição gratuita entre as escolas públicas.
“Preciso iniciar contando que o Projeto Documentário Juventudes Negras Periféricas é cria do Movimento Práxis – Coletivo de Educação Popular e teve sua 1ª Edição em 2013, quando foi lançado o documentário com nome análogo, narrando o processo de ingresso de cotistas negras na UFSM. Apesar de ter sido uma produção quase artesanal, o documentário foi um sucesso, exibido em eventos, e foi premiado, em virtude do impacto do tema narrado. Neste ano, ao comemorar os 10 anos de aprovação da política de cotas, decidimos pela produção de um segundo documentário, que desse visibilidade aos cotistas, narrando seus anseios, desafios, conquistas e ingresso no mundo do trabalho, além de servir como material educativo a ser utilizado nos debates sobre a política de cotas e como motivação ao pessoal que cursa o Ensino Médio. Cada estudante se identifica com os protagonistas, bebe na fonte da utopia, acreditando que poderá alçar novos voos e sonhar com a possibilidade de, logo mais, ingressar numa faculdade e sair vitorioso, com um canudo na mão. Daí destaco, mais uma vez, a importância desta iniciativa. Oxalá, outras universidades também registrem trajetórias de cotistas”.
MARIA RITA PY DUTRA, escritora, mestra em Ciências Sociais e Doutora em Educação
“Foi um enorme desafio investir na produção de um material audiovisual, considerando que todo o núcleo proponente do projeto é formado por educadores com pouca, ou nenhuma, experiência nessa área. Foi a união, o comprometimento e a vontade de fazer algo grande que tornou possível a execução do documentário. Além, é claro, do apoio de colegas mais familiarizados com esse tipo de produção, como foi o caso da TV OVO. Esse material é de extrema importância, principalmente, se considerarmos que se completaram 10 anos da Lei de Cotas. Em Quando a Universidade é a nossa casa, procuramos documentar a vivência de dois jovens negros na Casa do Estudante Universitário, como se a própria CEU fosse também uma personagem do documentário. Entendo que não basta garantir o acesso de negros e indígenas nas universidades, mas também investir na sua permanência. O documentário ilustra como o racismo e a intolerância podem afetar a vivência da comunidade negra, enfatizando a importância de ocuparmos esses espaços”.
ESTHER FARIA, Bacharela em Letras, mestre em Estudos Literários e educadora popular do Práxis
“A ideia deste material é que seja utilizado por escolas. A Lei de Cotas de 2012 foi revolucionário. Nunca na história desse país as universidades tiveram tantos estudantes de escola pública, assim como pretos e pardos. Esse material tem o propósito de ser paradidático, ou seja, debater sobre questões raciais, mas incentivando aos estudantes a ingressarem nas universidades, caso queiram. Nossa ideia é mostrar para o aluno da rede pública, que tem o interesse de entrar numa universidade, que isso é um sonho possível. Essa conquista é fruto da mobilização dos movimentos sociais e negros, é uma política pública que deve ser utilizada. Assim, nosso material é informativo, queremos divulgar para os estudantes da região, que mesmo pobres, a UFSM, tem assistência estudantil como o Restaurante Universitário, Casa do Estudante, ajuda com passagens, enfim. Mesmo para o filho de classe trabalhadora, é possível acessar o Ensino Superior, público e de qualidade, como nossa Universidade Federal de Santa Maria”.
ELIAS CÓSTA, professor, licenciado em História, especialista em Gestão Educacional e mestrando em História
“A produção de materiais didáticos regionalizados é uma pauta histórica dos movimentos de Educação Popular, com o objetivo de articular o conhecimento científico com a resolução de problemas locais. A este respeito, o Práxis, desde o ano de 2000, elabora e distribuí gratuitamente os seus próprios materiais. Estes tinham, até 2011, como público-alvo, exclusivamente os seus educandos vinculados ao pré-vestibular popular. Em 2011, quando o projeto refletiu com o Museu Treze de Maio e a 8ª Coordenadoria Regional de Educação a produção de materiais sobre as leis 10.639/2003 e 11.645/2008, dois desafios se colocaram: inexistência de recursos para produção, impressão e distribuição. Neste contexto, em um primeiro momento, a produção de material paradidático na forma de audiovisual buscou, a um só tempo, trazer a dimensão curricular regional e, ao mesmo tempo, possibilitar uma distribuição eficaz, ágil e barata”.
CÍCERO SANTIAGO, historiador, mestre em Educação, professor do IFSC e educador popular