reportagem especial

Pandemia: um ano e dois meses de uma conta que não fecha para a economia

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data-filename="retriever" style="width: 100%;">Foto: Pedro Piegas (Diário) 

Sábado, 21 de março de 2020. Às 20h30min, o prefeito Jorge Pozzobom (PSDB), por meio de um vídeo no Facebook, anunciava o primeiro caso confirmado de Covid-19 em Santa Maria. Um homem, de 32 anos, que contraiu o vírus em Joinville, Santa Catarina.


- Eu vou repetir mais uma vez. Não é brincadeira. Essa pandemia mundial do coronavírus é uma coisa séria e muito grave - enfatizou Pozzobom, à época, em meio às incertezas que cercavam a doença, até então desconhecida na raça humana.

No mesmo dia, o mandatário do Executivo municipal já havia determinado, por meio de decreto, o fechamento do comércio considerado não essencial - a medida iria vigorar até o dia 20 de abril daquele ano, na primeira de uma série de restrições que, na opinião da prefeitura, mostraram-se necessárias para tentar conter o avanço da doença em Santa Maria. Durante esse período, a realidade no Calçadão Salvador Isaia, coração da cidade, era de vazio e de um silêncio bucólico, por vezes interrompidos pela sanitização frequente do espaço.

Com dúvidas e uma falta de centralização para a tomada das decisões, o governo do Estado tomou à frente e, após a reabertura do comércio em 18 de abril, apresentou modelo de DIstanciamento Controlado no final daquele mês, que iria regrar o funcionamento das atividades essenciais e o dia a dia da população dali em diante. O decreto passou a valer em 11 de maio de 2020. Um dia antes, o Rio Grande do Sul já havia alcançado a marca de 100 mortes por Coid-19. Santa Maria registrou o primeiro óbito três dias depois.

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A partir daí, as sextas-feiras eram aguardadas com temor pelos empresários. Com base em 11 indicadores da pandemia em cada região, o governo do Estado estabelecia uma bandeira que ia de amarela, para risco mais baixo da doença, a preta, com risco alto e restrições mais severas. A classificação determinaria como iriam funcionar as atividades durante sete dias.

- Fracasso. Se nós compararmos com Santa Catarina, onde houve menos restrições, com as atividades podendo funcionar de maneira mais livre, eles tiveram menos mortes do que o Rio Grande do Sul. É um Estado que conseguiu preservar empregos e tem menos mortes do que o RS, que cobrou um preço muito caro em número de empregos e vidas - relata o presidente da Câmara de Comércio, Indústria e Serviços de Santa Maria (Cacism), Luiz Fernando Pacheco, sobre o modelo de distanciamento controlado.

Os dados enfatizados pelo empresário se traduzem em números. Atualmente, Santa Catarina tem cerca de 209 óbitos a cada 100 mil habitantes, enquanto o Rio Grande do Sul contabiliza cerca de 245.

Marcos Lobato, médico epidemiologista da prefeitura, coordenador do Centro de Referência Municipal de Covid-19 e professor do departamento de saúde coletiva da Universidade Federal de Santa Maria, relata que a cidade foi uma das pioneiras no fechamento do comércio. Isso, ao longo do tempo, pode ter levado à exaustão da população e empresários quanto às medidas restritivas.

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- Começamos aqui um pouco cedo, nos adiantamos em relação a outros lugares. Então, a gente cansou antes. Porto Alegre, por exemplo, fez o fechamento depois de um óbito. Aqui, a gente fez antes.Mas os modelos de distanciamento são técnicos e adequados. A gente tem que saber quando começa, quando termina e tem a questão da sobrevida das pessoas. Esse foi o grande problema do antigo modelo de bandeiras - afirma Lobato.

Abre e fecha: a falta de planejamento

style="width: 100%;" data-filename="retriever">Foto: Renan Mattos (Diário) 

No calendário, um ano e dois meses de pandemia. Para os lojistas, 47 dias de fechamento total das portas e mais de 100 com restrições de horário de funcionamento. Na tentativa de diminuir os casos de contaminação pela Covid-19, o comércio - pilar da economia santa-mariense - foi um dos setores mais afetados pela presença do coronavírus. Entretanto, o fechamento dos serviços considerados não essenciais não ficou restrito ao Rio Grande do Sul. Países europeus impuseram rigorosos lockdowns, algo praticamente impossível de fazer no Brasil.

Realidade de um sistema econômico frágil, em que a maior parte do pequeno empresariado não tem capital de giro, tampouco estoque de dinheiro para alguma necessidade extra. É vender durante o mês para pagar os funcionários e as contas.

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O resultado foi trágico. Segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados do Ministério da Economia, foram fechados 759 postos de trabalho no setor do comércio no acumulado de 2020. O pior mês foi abril, com um saldo negativo de 618 pessoas que foram para a casa sem a sua renda mensal. Os prejuízos, no entanto, vão muito mais além. Milhares de trabalhadores tiveram seus contratos suspensos ou salários reduzidos com a Medida Provisória do governo federal que possibilitou a prática para dar um fôlego para as empresas não demitirem ainda mais. O Ministério da Economia não divulga dados locais sobre o tema.

À frente da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) de Santa Maria, a empresária Marli Rigo, com um perfil conciliador, não escapou das pressões. Se, por um lado, a prefeitura afirmava que os fechamentos eram necessários para conter a disseminação do vírus, por outro, a necessidade de manter a subsistência própria e dos funcionários, acrescida das incertezas de quanto tempo iria durar cada decreto, deixava os empresários sem um norte.

- Eu nunca imaginei que em algum momento a gente ia passar por essa fase. Eu conheci, emocionalmente, todos os limites do estresse, do sufoco, de estar em meio a um fogo cruzado, onde muitas vezes você não está sendo compreendida. Mas, ao mesmo tempo, estava tentando com todo mundo, com bom senso, conduzir as coisas para que a gente pudesse encontrar o melhor caminho - desabafa Marli, que deixa o cargo de presidente da CDL em junho.

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Aviso, alerta e ação. É assim que o novo sistema de distanciamento do governo do Estado pretende agir. A ideia é dar mais autonomia para que os municípios decidam sobre as restrições e como elas devem ocorrer baseadas em indicadores do avanço da pandemia.

O presidente do Sindicato dos Lojistas (Sindilojas), Ademir José da Costa, faz críticas ao sistema antigo e espera mais diálogo:

- Ficou claro que o modelo era meramente orientativo e ele perdeu prestígio. As pessoas passaram a não acreditar mais nele no momento em que as ações eram políticas por trás do sistema de bandeiras. Agora, não será diferente, mas a gente entende que é necessário termos orientações, mas elas não podem mudar a toda hora. A sociedade precisa trabalhar com orientações. Precisamos de previsibilidade.

Sem confraternizações e sem dinheiro

style="width: 100%;" data-filename="retriever">Foto: Renan Mattos (Diário) 

Abalo emocional. É assim que profissionais tanto da gastronomia quanto de eventos resumem o período de pandemia. Com negócios diretamente relacionados a confraternizações, os setores sofrem com as perdas. Segundo dados da Associação de Hotéis, Bares, Restaurantes e Agências de Turismo de Santa Maria (Ahturr), o prejuízo até abril deste ano foi de R$ 13 milhões entre os empreendimentos da cidade em função das medidas restritivas.

No final de fevereiro, com o crescimento exponencial de casos da Covid-19, o governador Eduardo Leite (PSDB) determinou a interrupção das atividades consideras não essenciais em todo o Estado entre 18h e 5h, o que impossibilitou a atividade no período noturno da maioria dos restaurantes.

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- Além do baixo faturamento, o empreendedor não conseguiu arcar com as suas contas. Muitos desacreditaram dos negócios. A parada mexeu muito na emoção das pessoas - relata o presidente da Ahturr, Emerson Nereu.

Segundo pesquisa da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes do Brasil (Abrasel), seção do Rio Grande do Sul, 79,5% do setor demitiu funcionários durante a pandemia. Pelos dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados do Ministério da Economia, somente neste ano, 101 postos de trabalho deixaram de existir nos restaurantes de Santa Maria.

O dado, no entanto, não reflete a realidade nua e crua, já que muitos contratados são autônomos, como garçons, principalmente à noite e nos finais de semana. Sem vínculo formal, esses profissionais não entram nas estatísticas oficiais e acabam desassistidos.

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- Foi um ano extremamente difícil porque o setor não estava preparado financeiramente para comportar as contas. Baixou muito o faturamento e, nesta última parada, se sentiu muito porque você vinha de uma breve normalidade do final do ano passado. Então, muitos acabaram optando por fechar as portas - relata Nereu.

Os eventos

Em tempos de pandemia, ir a um evento parece coisa de um passado distante. Desde março do ano passado, o setor também amarga prejuízos em Santa Maria. Mesmo com a liberação por parte do governo do Estado de festas de até 150 pessoas, a depender do PPCI do estabelecimento, as confraternizações são tímidas tanto pelas restrições quanto pelo receio das pessoas em contrair a doença.

- O mais triste para as pessoas foi ver esse afastamento do convívio por meio das comemorações, que é o nosso foco. A gente começou a perceber que isso durou muito tempo e virou um cenário de desolação - relata Jaqueline Mello, organizadora de eventos, ao lamentar que muitos colegas tenham deixado a profissão durante o período.

Mesmo sem uma associação que representasse a categoria, os profissionais fizeram barulho.Ainda no ano passado, em visita do governador Eduardo Leite a Santa Maria, foi entregue, pelas mãos do prefeito Jorge Pozzobom, um conjunto de propostas para uma retomada segura, com pouco efeito prático.

"Não se tem ideia de fechar nada", afirma prefeito 

 última quarta-feira, a região de Santa Maria recebeu o Alerta do governo do Estado dentro do novo modelo de distanciamento de 3 As (Aviso, Alerta e Ação). A região tinha até sexta-feira para apresentar um plano de ação para conter o avanço da doença. Até o fechamento desta reportagem, as decisões não haviam sido divulgadas oficialmente.

Nesta entrevista, o prefeito Jorge Pozzobom faz uma avaliação do modelo de Distanciamento Controlado, traça pontos positivos e negativos, diz que não pretende fechar mais o comércio e que acredita que, até o final do ano, toda a população esteja vacinada. Confira.

Diário - Como foi a primeira decisão de fechar o comércio?

Jorge Pozzobom - Antes de chegar no dia 21 (de março de 2020), nós dialogamos com todos os setores. Foi feito um movimento de muito diálogo no início. Isso, para mim, era a coisa mais importante nesse primeiro momento. Era um momento novo e ninguém sabia direito o que fazer. Todo mundo estava com medo. Nós tínhamos que nos organizarmos para arrumar os leitos porque não havia leito de UTI nenhum para coronavírus. Não sabíamos se tínhamos que comprar respirador ou não. A verdade é que estava todo mundo com medo.

Diário - Qual a sua avaliação sobre o modelo de Distanciamento Controlado do governo do Estado?

Pozzobom - O modelo de distanciamento controlado foi replicado em vários Estados e, inclusive, fora do Brasil. Eu entendo que muitas coisas deram certas nesse modelo. Outras, eu não concordava. Por exemplo, a suspensão das quadras de futebol. Para mim, era uma coisa elementar, que eu não concordava. Mas o modelo, como um todo, tinha um escopo que era tentar diminuir a circulação das pessoas que, naquele momento, era a maior preocupação que nós tínhamos. Sabíamos que quanto mais gente circulando, maior a chance de ser contaminado. Lá no início foi suscitado que iríamos vacinar primeiros os jovens e depois os idosos, mas isso se inverteu. Então, era um momento. Se me perguntares se acredito no modelo, eu digo que acreditava. Eu confiava no modelo porque não era só uma pessoa, era um comitê técnico com médicos e especialistas. Todos eles formatando. Eu conheci o comitê. Eu convivi com eles. Se eu disser que eu não acreditava no modelo não vou estar sendo leal. Posso dizer que eu não concordava com algumas coisas do modelo.

Diário - Ao longo do tempo, o modelo de Distanciamento Controlado foi perdendo crédito, principalmente ao colocar todo o Estado em bandeira vermelha para permitir o retorno das aulas presenciais. Onde o modelo se perdeu?

Pozzobom - Primeiro, que o Brasil estava na contramão de todo o mundo. O mundo inteiro estava tratando para retornar as aulas. A gente sabe do gravíssimo problema econômico e da saúde que a gente permanece com ele, mas é imensurável o problema que a gente vai ter na educação. Então, naquele momento, quando o comitê cria o novo modelo, é o mesmo comitê que pega os modelos e aperfeiçoa. Santa Maria foi pioneira. Santa Maria criou o recurso do modelo. Eles computavam leito de UTI e não importava o município de origem. Santa Maria foi protagonista. O modelo teve muitos acertos, foram corrigidas muitas coisas ao longo do tempo. Acredito que a questão do recurso foi uma grande conquista porque era uma maneira de ver no que a gente não concordava e dar sugestão. E chegamos a um momento, agora, que, a bem da verdade, todo mundo cansou. O fique em casa ninguém aguenta mais. Foi o ano inteiro. Então, eu tenho falado que só temos duas vacinas: continuar nos cuidando e a vacina. Quanto mais nos vacinarmos, mais rápido e mais tranquilo a gente vai poder estar. Se for possível em algum momento que a inciativa privada ajude os governos federais e municipais na vacinação o mais rápido possível, isso vai ter um grande reflexo na economia, como nos Estado Unidos, em que vários Estados já liberaram o uso de máscara.

Diário - O senhor já disse que não vai fechar o comércio depois do alerta dado pelo governo do Estado nesta semana. Se as medidas não vão passar pelo fechamento do comércio, o que será feito?

Pozzobom - Nós estamos fornecendo agora os dados. Eu não participei da formatação final do projeto que vai ser mandado para Porto Alegre nesta sexta-feira. Então, o que a gente está fazendo: estamos informando os 20 leitos novos. Isso é importante no A do alerta. Estamos informando e atualizando os dados da vacina porque não estamos com os dados atualizados no Estado. Não se tem ideia de fechar nada. O que se estava se discutindo era, quem sabe, reduzir um pouco o horário de bares e restaurantes durante o período da noite, mas não posso afirmar isso porque eu não tenho isso de forma categórica ainda, mas esse A de alerta que deu a gente já sabia. Está morrendo gente toda hora. Os leitos estão ocupados. Então, talvez esse alerta, agora, dá um alerta em quem achou que já tinha passado tudo.

Diário - A ajuda financeira e os incentivos da prefeitura foram suficientes para a economia?

Pozzobom - Qualquer ação foi suficiente em um momento tão difícil. Nós conseguimos continuar comprando alimento da agricultura familiar para distribibuir para as escolas. Graças a Deus, conseguimos, também, ajudar os pequenos produtores. Conseguimos continuar pagando o salário dos servidores em dia, os fornecedores. Tudo que a prefeitura fez, sem sombra de dúvidas, ajudou a diminuir o impacto, mas não tem como resolver tudo.

Diário - Até o final do ano, o senhor acha que estaremos em uma melhor situação?

Pozzobom - Tem que estar mais tranquila. Eu tenho convicção de que a gente chega no final do ano com todo mundo vacinado e vamos iniciar um ano novo com uma grande lição que a pandemia nos deixou. A pandemia nos fez aprender muita coisa e nos fez entender a grandeza de umas e a pequeneza de outras. Mas, para mim, a maior lição é a solidariedade.


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