reportagem especial

À iminência da fome, 21 mil pessoas vivem com renda de até R$ 89 por mês em Santa Maria

18.302

Foto: Renan Mattos

Com exceção de quem entra em casebres, a maioria em regiões periféricas, e vê armários e geladeiras quase vazios, a fome não costuma ter cara. Tampouco tem indicadores específicos. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a definição pode ser atribuída pela deficiência de micronutrientes (vitaminas e minerais) junto da sensação fisiológica pelo qual o corpo percebe que necessita de alimento para manter as atividades inerentes à vida.

Informações da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social atestam, porém, que os pedidos por cesta básica aumentaram na pandemia e que Santa Maria tem, hoje, 21.102 pessoas com renda de até R$ 89, o que é considerado situação de extrema pobreza pelo governo federal. Os dados constam no Cadastro Único (CadÚnico) vinculado ao Ministério da Cidadania. No total, 54.460 pessoas estão cadastradas e aptas a receber benefícios de programas sociais.

Do conhecimento de líderes comunitários, pessoas e entidades que encampam iniciativas voluntárias, a fome tem nome e endereço e é intensificada pela instabilidade política, a ineficácia e má administração dos recursos naturais e ao difícil acesso aos meios de produção pelos trabalhadores rurais.

Nos últimos dias, a reportagem do Diário percorreu diferentes regiões e encontrou homens e mulheres que contam os dias para não faltar alimentos aos filhos e têm dificuldade em fazer todas as refeições.

São pessoas em que o cotidiano marcado pela falta de comida, incorpora-se a outras vulnerabilidades - essas, bem perceptíveis. É que em geral, elas vivem em áreas irregulares, sem esgoto sanitário nem ligações de água e energia elétrica. A maioria não tem emprego formal e muitos deixaram o antigo local onde viviam e se "acomodaram" em espaços cedidos por algum parente ou amigo. Terrenos onde antes havia uma moradia, multiplicaram-se e formaram novos e precários núcleos populacionais.

Por vezes, a fome velada também se materializa em barrigas vazias que perambulam as ruas do Centro, em cartazes de quem pede por alimentos nas sinaleiras ou nas enormes filas à espera de sopões comunitários em vários bairros da cidade.

A VULNERABILIDADE EM NÚMEROS*

  • 58.460 pessoas estão registradas no Cadastro Único (CadÚnico) em Santa Maria. Considera-se 24.264 famílias, já que a média é de três pessoas por núcleo familiar. Há registros de só uma pessoa e outros com duas pessoas ou mais
  • 8.891 famílias que recebem o Bolsa Família, e o valor varia de R$ 89 a R$ 356
  • Entre os cadastrados, existem 21 famílias de quilombolas e 49 de indígenas
  • Também constam 27 famílias de apenados do sistema carcerário
  • 168 pessoas em situação de rua
  • 531 famílias alegaram serem coletadores de material reciclável
  • O valor repassado pelo Programa Bolsa Família em junho foi de R$ 125.094,5
  • E, desde o começo de 2021, o Bolsa Família totalizou R$ 750.567 aos cadastrados

*Informações da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social


"INÍCIO DE MÊS TEM MAIS COMIDA NA PANELA"

Foto: Renan Mattos (Diário)

A vida compartilhada entre os aposentados Guemercindo da Silva, 66 anos, e Eva Rodrigues, 84, não é obra do acaso, mas pura necessidade. A família de ambos está "um pouco em cada parte". Ela teve cinco filhos e passa de 10 o número de netos. Ele, três filhos e, embora com menos idade, diz que perdeu a conta de quantos netos tem, assim como as dores que sente espalhadas pelo corpo. Em comum, os dois procuravam um lugar para morar e se conheceram porque a filha de Guemercindo casou com um dos filhos de Eva.

Viúvos, eles se dizem amigos e dividem a moradia, as contas e a comida. O casebre de madeira de paredes inconclusas, onde lençóis fazem cortinas para dividir os cômodos, fica em uma área irregular, no outro lado dos trilhos do trem, no Bairro KM3, região nordeste da cidade. Há dois anos, eles trocaram "de mano" um fusca amarelo que custava R$ 3mil pelo "terreno já com a casa em cima", rodeado por uma cerca de arame farpado.

Como é recorrente a muitos anfitriões, Eva recebeu a reportagem do Diário pedindo que não reparasse a simplicidade do lar, enquanto Guemercindo manteve-se cabisbaixo, economizando palavras e com olhos marejados a cada relato que sobre a própria realidade.


Foto: Renan Mattos (Diário)

Passavam das 16h quando a comida, que foi o almoço da última quarta-feira, ainda estava morna nas panelas: feijão, canjica e batata-doce. A aposentada exibia com certo orgulho os alimentos, quase que alheia à própria condição.

- Início de mês tem mais comida na panela - comemorou Eva.

Aposentado há apenas três meses é o salário de Guemercindo que tem "segurado" o dia a dia. Ele, de pouca conversa, lamentou a situação, mas sem perder o que ainda lhe resta de otimismo:

- Quando eu consegui minha aposentadoria, trancou a dela. Mas a gente vai indo, vai se cuidando...um dia, quem sabe, as coisas melhoram.


ENTREVISTA

Foto: Renan Mattos (Diário)

Diário - O que tem sido mais difícil em 2021?

Eva - Comprar alimento. Está tudo caro. Uma sacola de "50 pila" no mercado não dura. Agora, temos uma horta e verdura...mas umas não vingam muito e não crescem.

Diário - O que o senhora compra no mercado?

Eva - Massa, erva, ovo e mortadela. Leite, quando está mais barato. Carne, às vezes, ficamos duas ou três semanas sem comer, pois é muito caro e não sobra. E tem que pagar a parcela do guarda-louça e do fogão.

Diário - E o que está fazendo mais falta no dia a dia?

Gumercindo - Da parte de comida, carne para misturar com o resto das coisas. Depois, o que falta mesmo é dinheirinho que perdemos. Entraram aqui na casa, viraram tudo e levaram os papéis (documentos) dela. Aí trancou a aposentadoria. Ela precisa ir a Sobradinho ver os registros (no cartório) e não temos dinheiro para passagem. Mas a gente, às vezes, precisa comprar algum remédio e as coisas não duram até o final do mês.

Diário - E como vocês fazem as refeições quando chegam os finais de mês?

Gumercindo - Tem um rapaz que passa aqui na frente e vende legumes e umas frutas fiado. Aí, a gente paga depois. Quando acaba café e pão, a gente toma mate de manhã e enche barriga até meio-dia. Assim vai indo... carne só quando compramos a de galinha. Estamos sem gás, porque está muito caro. Para não gastar, a comida fizemos no fogão só quando está chovendo. Daí, quando tem sol, faço um foguinho e cozinhamos aqui no lado de fora da casa.


"NÃO PASSAMOS FOME GRAÇAS ÀS DOAÇÕES"

Foto: Pedro Piegas (Diário)

Uma carcaça de frango no congelador garantiria o ensopado para a janta na noite da última terça-feira, que a dona de casa Elizandra Gomes, 42 anos, compartilharia com filha Giane Gomes, 14, e o esposo Elizandro Vargas, 48, desempregado desde janeiro. Até o ano passado, Elizandra contribuía com a renda familiar. Ela trabalhava como diarista, mas acabou dispensada de várias casas "porque tinham medo que ela passasse coronavírus, já que andava de ônibus para lá e para cá da cidade". Depois de ser dispensado de um posto de combustíveis, onde tinha função de lavador de carros, o marido também foi demitido após ficar dias afastado por conta da Covid-19. Atualmente, ele "pega o serviço que aparece", o que inclui corte de grama e limpezas .

Dias antes dele testar positivo, ela contraiu a doença. Diabética e asmática, tomou a primeira dose da vacina, mas não a tempo de passar ilesa pela Covid, que a deixou uma semana internada no hospital. A irmã de Elizandra não teve a mesma sorte e foi mais uma vítima da pandemia, em abril deste ano. Ela morreu e deixou seis filhos, e o sobrinho que criou desde pequeno. Ele era filho de Elizandra e Elizandro.

Após "perderem a residência em uma divisão de bens família" há quatro anos, o casal saiu de Nova Palma e veio tentar a vida em Santa Maria. Eles vivem em uma casa de madeira de dois cômodos na área conhecida como Ocupação da Caixa D'água, no Bairro Nova Santa Marta. Sem renda fixa, a família conta com os "bicos" de Elizandro, com o auxílio emergencial de R$ 150 e a doação de alimentos do Centro social Madre Francisca Lechner, que fica no mesmo bairro. Eventualmente, a filha ajuda a cuidar de crianças e consegue "uns troquinhos". Eles tinha cadastro no Bolsa Família, mas não recebem mais o benefício, e não souberam contar o porquê.

- Não passamos fome graças às doações. Mas diminuiu tudo com essa pandemia. O almoço de amanhã sempre é uma preocupação. A geladeira está quase sempre vazia. O auxílio (emergencial) nos salvou em muitas refeições. Quando vieram aquelas parcelas maiores (R$ 600) usamos para comprar os brasilites da casa. Hoje, a primeira coisa que meu marido faz quando recebe é pagar a internet para que a guria consiga ter as aulas pelo celular. São uns R$ 70. Estudo é a prioridade e, por isso, deixamos de comer alguma coisa melhor, comprar uma carne ou até um achocolatado para misturar no leite. Tem que escolher, né? - conta Elizandra, enquanto caminha com dificuldade, repleta de feridas nas pernas causadas pela diabetes.


ENDEREÇOS RECORRENTES

Foto: Renan Mattos (Diário)

As menores faixas de renda per capta em Santa Maria, conforme apontam os dados do IBGE, são nos bairros Diácono João Luiz Pozzzobon, onde fica o Loteamento Leonel Brizola e a Vila Maringá, na região Centro-Leste, e na Nova Santa Marta, Região Oeste. Conforme a prefeitura, também são locais de vulnerabilidade social, diferentes regiões como Vila Brenner, no Bairro Divina Providência, na Região Norte,, Bairro KM-3, no Nordeste, e o loteamento Cipriano da Rocha, na Região Oeste. Ainda há os que moram em áreas que foram ocupadas de forma desordenada ao longo dos anos, como no Bairro Lorenzi, na Região Sul.

- A cidade foi crescendo com muitas ocupações, onde o pessoal chega e vai ficando. São regiões precárias, de muita vulnerabilidade, onde falta tudo, inclusive, comida. O que tentamos fazer é emancipar essas pessoas, a maioria com baixa escolaridade, para que ingressem no mercado do trabalho. Não temos um diagnóstico fechado de quantos passam fome, o que sabemos são os que recebem cestas, básicas e mantendo contato com os projetos sociaos- analisa o secretário de Desenvolvimento Social, João Chaves.

CENSO ADIADO

Informações mais detalhadas sobre as populações dos municípios são do censo demográfico. Em razão da pandemia, o Censo de 2020 foi adiado e, provavelmente, vai ocorrer apenas em 2022. Segundo o governo Bolsonaro foi por falta de orçamento - esse sancionado com vetos que resultaram em cortes expressivos de recursos para políticas e programas. Os números referentes a Santa Maria, de acordo com a agência local do IBGE são ainda do Censo de 2010, quando população da cidade era de 261.031 habitantes.

Os dados obtidos por meio do Censo são instrumentos fundamentais para se traçar perfil socioeconômico e demográfico da população, contribuem para pesquisa científica, gestões de estados e municípios, além de serem base para o planejamento de políticas públicas.


O IMPACTO DOS PROGRAMAS SOCIAIS E DO VOLUNTARIADO

Foto: Renan Mattos (Diário)

Não fossem os inúmeros projetos de voluntariado, famílias inteiras estariam reduzidas à miséria em Santa Maria. Somente na sede provisória da Associação de Moradores do loteamento Estação dos Ventos, no Bairro KM 3, às segundas, quartas e sextas-feiras, cerca de 300 famílias chegam de potes vazios e voltam com uma refeição garantida. Há um mês, a entidade recebeu o reforço dos alimentos que vêm do projeto Esperança/Coesperança.

- Diante da pandemia, a necessidade foi crescendo. Em alguns casos, soubemos que as cestas básicas eram usadas como moeda de troca, e a comida não chegava no prato das crianças, por exemplo. Então, oferecemos as refeições - conta o artesão Tito Rodrigues, 52 anos, um dos voluntários da Estação dos Ventos.

Além das iniciativas da sociedade civil, os programas sociais seguem sendo subterfúgio para aplacar a fome e a pobreza. O mais disseminado ainda é o Bolsa Família, cujo valor é variável e depende de cada núcleo familiar. O critério básico para receber é a renda - até R$ 89 mensais por pessoa, para famílias que não têm filhos, e de até R$ 178 per capita por mês e se há filhos. Para criança, é de R$ 41 e para adolescente, de R$ 48.

Outros programas existem e podem ser acessados via Cadastro Único (veja ao lado), mas não têm conseguido atender a todas as pessoas como em anos anteriores.

- Sentimos as doações mais fortes no início da pandemia. Depois foi só diminuindo. Isso refletiu até nas doações de alimentos que a secretaria recebia da sociedade em geral. O poder público, infelizmente, não consegue cobrir toda a demanda, mesmo com verba do governo federal destinada à pandemia. A faixa de público aumentou e os recursos são limitados. Muita gente que era autônoma ou ficou desempregada precisa comer e passou a solicitar o benefício com a crise. O pedido por cesta básica, por exemplo, aumentou em cinco vezes. Isso sem falar as pessoas que nem chegam até nós ou estão com o cadastro desatualizado e acabam perdendo o benefício - conta a coordenadora do Cadastro Único em Santa Maria, Claudemara Tolotti. 


Foto: Renan Mattos (Diário)

COMO TER ACESSO AOS PROGRAMAS SOCIAIS

Todos programas são acessados por meio do Cadastro Único. Cada um possui a sua particularidade, mas, no momento que a pessoa realiza o CadÚnico é possível determinar quais outros programas ela poderá acessar. Todos são baseados na faixa de renda e número de moradores. Para se inscrever no CadÚnico, é necessário se apresentar na Secretaria de Desenvolvimento Social (Rua General Neto, 504) com a documentação original de todas as pessoas do núcleo familiar que residem na mesma casa. É recomendável que o cadastro seja atualizado, pela menos uma vez por ano

Para os maiores de 18 anos ou mais os documentos necessários são:

  • Carteira de Identidade
  • CPF
  • Carteira de Trabalho
  • Título de eleitor
  • Comprovante de residência (água, luz, telefone.)

Para os menores de 18 anos os documentos necessários são:

  • Certidão de Nascimento
  • CPF e RG (se tiver)
  • Frequência escolar se a família recebe Bolsa Família (para dependentes dos 4 aos 17 anos é obrigatório
  • Mais informações pelo telefone da Secretaria de Desenvolvimento Social - (55) 3222-7931


Auxílio Emergencial em Santa Maria*

Total em 2020: R$ 238,68 milhões

  • 1ª etapa (valores de R$ 600 e R$ 1,2 mil) em cinco parcelas - Número de beneficiados - 70.894
  • 2ª etapa (valores de R$ 300 e R$ 600) em quatro parcelas - Número de beneficiados - 56.108

Total em 2021: R$ 18,30 milhões

  • Etapa 2021 - (valores de R$ 150, R$ 250 e R$ 375) - uma parcela - Número de beneficiados - 41.478

*Fonte: dados obtidos pela Rede Brasileira de Renda Básica junto ao Ministério da Cidadania


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