reportagem especial

Apesar de lei em vigor, situação de carroceiros e cavalos da cidade segue indefinida

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Foto: Pedro Piegas (Diário)

No trânsito perigoso, expostos ao sol forte ou ao frio e à chuva, em alguns casos, sob pressão e chibatadas animais que puxam veículos de tração são submetidos a longas jornadas diárias. Eles tombam, agonizam e morrem em via pública. Na informalidade, sem qualquer regulamentação trabalhista, homens e mulheres, a maioria sem equipamentos de proteção, entram em contêineres na busca de materiais que possam ser revendidos. Não raro, alguns alimentos dispensados nos coletores servem de comida. Muitos são crianças e acompanham seus familiares em um "ofício" que costuma passar de pai para filho.

No caminho cruzado entre o cavalo e o carroceiro, que beira ao inviabilizado caos urbano e social, uma legislação entrou em vigor no dia 21 de junho de 2021, a Lei 6.438 de 23 de dezembro de 2019, que criou o Programa de Controle da Mobilidade e Bem-Estar do Animal de Tração. Em tese, ela proíbe a circulação  de carroças na área central.

A ampla e complexa questão das carroças em Santa Maria tem anos, mas passou a ser discutida a partir de uma provocação do Diário, em março de 2017, com uma série de reportagens.

Hoje, um cenário explícito estampa que a mera proibição de circulação desses veículos sem providências alternativas às pessoas e aos animais  não resolve a antiga problemática. Ocorre que quatro anos depois do polêmico caminho pavimentado até a sanção da lei, pouco mudou.

Da previsão de instalar microchips em 500 equinos, apenas 164 receberam o dispositivo. Não foram divulgadas, inclusive, informações sobre o perfil e o cadastro das famílias carroceiras no município.

A prefeitura credita à pandemia a dificuldade do cumprimento das fases, que deveria ter se iniciado no começo de 2020. Porém, ações gradativas eram propostas entre Legislativo e Executivo desde 2017. Na última semana, o secretário de Mobilidade Urbana, Orion Ponsi, ponderou que a fiscalização não será imediata e que cumprir a lei na integralidade ficou prejudicada também devido ao contexto pandêmico.

Enquanto isso, todas as abordagens levadas à exaustão, entre elas, a questão social, a saúde pública, o trabalho infantil, o trabalho irregular, os problemas de mobilidade urbana e os maus-tratos aos animais, seguem indefinidos. Afinal, a que serviu a lei?

Foto: Pedro Piegas (Diário)

SUSTENTO AMEAÇADO E UMA ALTERNATIVA DE SOBREVIVÊNCIA APÓS A LEI
Pelo menos três carroças paradas em frente a casas, na Vila Brenner refletem uma situação que emergiu após a lei e foi potencializada pela pandemia: abandonar a atividade, mas não a coleta de materiais. A posição de dois ex-carroceiros que conversaram com a reportagem, mas não quiseram ser identificados é de que não há organização tampouco segurança de sustento. Veja o relato de um deles.

"Mandaram uns assessores de vereador conversar com a gente, mas nada ficou explicado. Isso já tem uns dois anos. A gente entende o problema do trânsito e é contra quem não cuida do bicho (cavalo). Mas falaram em criar uma associação mais adiante, dar cesta básica, e nunca mais voltaram. Também não é bem assim. Tem gente aqui que é carroceiro porque o pai e o avô também eram. Temos filhos para dar comida. Essa pandemia prejudicou mais, pois cada carga de material está valendo menos. Olha o que aconteceu com uma vizinha: recolheram o cavalo dela, mas ela continuou indo para o Centro todo dia, trabalhando na reciclagem, só que com carrinho. Muda muito? Fiz algo parecido antes que tomem meu (cavalo), que tá ali bem gordo. Só ando aqui na volta para pegar alguma sucata e, no Centro, estaciono um caminhãozinho que consegui comprar e carrego com material reciclável. É disso que sobrevivo"

Foto: Pedro Piegas (Diário)

"O QUE SERÁ DA GENTE É ISSO QUE PERGUNTO E NÃO TENHO RESPOSTA", DIZ CARROCEIRA
Marcia Silva, 33 anos, ainda era uma menina quando o que ganhava de dia para ajudar a família a comer de noite era extraído do lixo. Em meio a caçambadas de restos de toda a cidade, despejadas no imenso e conhecido terreno no distrito de Santo Antão - o Lixão da Caturrita -, a jovem selecionava materiais que poderiam ser reciclados e, depois, vendidos. Desde 1982, sem preparo prévio do solo, o local recebia lixo urbano sob a responsabilidade da prefeitura. Por ordem judicial, em 1998, a PRT, uma empresa licitada pelo executivo municipal, passou a recolher o material. Entre 2005 e 2007, diversas ações judiciais determinaram a retirada dos catadores da área. Sem alternativa de trabalho e renda, eles retornavam. Até que, em 14 de março de 2008, o lixo urbano deixou de ser depositado no Lixão da Caturrita.

Desde então, a promessa de implantação de uma coleta seletiva na cidade se perdeu no calendário. Campanhas estamparam o insucesso na sua execução. A última, a "Recicle no Laranja", lançada em novembro de 2019, fracassou. Nos 50 contêineres na cor laranja espalhados no centro da cidade, lixo orgânico e reciclável se misturavam. A maioria do material se contaminava e perdia valor de mercado, deixando quase impossível a separação para os catadores.

No decorrer dos anos, Marcia seguiu em busca da sobrevivência. Trabalhou como faxineira, mas engravidou do primeiro filho, e a vida se deu em outros rumos e imprevistos. Anos mais tarde, foi sobre uma carroça que ela encontrou o sustento, novamente, com a coleta de resíduos sólidos. Desta vez, porém, o endereço de trabalho não é mais o Lixão, mas As ruas da cidade, contêiner por contêiner.

SEM PERSPECTIVA
Diante de um coletor de lixo na Avenida Medianeira, na última terça-feira, Marcia terminava de carregar a carroça ao lado da mãE, Élida da Silva, 63 anos, que passou a acompanhar a atividade da filha durante a pandemia, pois "o dinheiro ficou ainda mais curto depois da chegada do vírus", segundo relato da idosa. Ambas moram na Vila Bela União, na Região Norte. Mãe de dois filhos, Marcia recebe R$ 171 do programa do governo de federal, o Bolsa Família. A renda familiar também conta com o que companheiro dela consegue fazendo corte de grama, e "com os bicos" que aparecem.

Há quatro anos, época em que "começou a barulheira de uma lei que queria proibir as carroças", Marcia procurou a Guarda Municipal, porém, nunca soube da lei que proibiria a circulação:

- Deram a ordem de que o animal não poderia estar magro e teria que obedecer limite de carga e horário, isso sempre fiz. Se maltratarem, concordo de recolherem, mas nunca falaram que eu não poderia trabalhar.

Segundo a carroceira, Tubiano, seu cavalo, não recebeu microchip. Ela não quer infringir a lei, mas teme o futuro incerto:

- Fiquei sabendo por outros carroceiros que estavam chipando, mas ninguém me procurou. Tenho filhos, água, luz, comida para pagar e vivo da carroça, são uns R$ 700 por mês. Tem que fazer pelo certo. Lei é lei, mas se eu parar, o que será da gente? Pergunto e não tenho resposta.

Foto: Pedro Piegas (Diário)

AÇÕES PARALISADAS E INDEFINIÇÕES NA CONTA DA PANDEMIA
A intensificação das discussões que envolvem a problemática das carroças tem o ano de 2017 como "ponto de partida". Projetos e cadastramento de pessoas e animais eram prioridades desde os primeiros debates no Legislativo, em audiências públicas e grupos de trabalho estabelecido em fases e respectivos prazos. Porém, com a lei (sancionada em 2019) em vigência desde 21 de junho, o que se vê são ações paralisadas e indefinições, todas limitadas, segundo a prefeitura, à situação pandêmica.

Por meio da Secretaria de Mobilidade Urbana, a Secretaria de Comunicação relatou ciência de que o processo de cumprimento das fases deveria ter iniciado no começo de 2020, porém, foi prejudicado pela pandemia. Já "o trabalho de formação das pessoas envolvidas com o uso de animal e do veículo de tração, principalmente para o recolhimento de resíduos recicláveis, foi afetado porque precisa ocorrer de forma essencialmente presencial, assim como a chipagem de animais e outras ações que preveem o contato direto com o público".

Também é prevista a elaboração de um cronograma, que estará baseado em uma mudança positiva na atual situação sanitária, para fazer o cadastramento das pessoas e dos veículos de tração animal, reiniciar a chipagem animal e efetivar o zoneamento que servirá como condição para que a legislação seja consolidada no município, entre outras iniciativas programadas.

Ainda sobre o tema, por meio da Secretaria de Meio Ambiente, foi informado que foram chipados 164 cavalos. Quanto ao cadastro sócio-familiar, ele vai evoluir assim que os aspectos mencionados tiverem o encaminhamento necessário.

- Não temos dados completos dos carroceiros Isso foi lá no início (2017), aí, voltei para a Câmara de Vereadores e retomei a secretaria agora. Ficou em stand-by. Tínhamos cursos pelo Senac e também queremos oferecer transporte e uma cesta básica às pessoas vinculadas ao Cadastro único. Problema é sabermos quem é carroceiro, pois eles se declaram como catadores, então, esse controle exato é difícil. Na próxima semana vamos (a secretaria) sentar e voltar a pensar sobre isso - alegou o secretário de Desenvolvimento Social, João Chaves.

UFSM não formalizou convênio
Conforme a Secretaria de Comunicação, a prefeitura tentou firmar um convênio com a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) para que a instituição providenciasse o acolhimento e o tratamento dos animais e, em parceria com entidades protetoras, fizesse a destinação desses animais. Porém, em abril de 2021, a prefeitura foi informada de que a UFSM, por meio do Hospital Veterinário Universitário (HVU), não tem interesse em formalizar convênio.

A partir de abril, foi elaborado um termo de referência para a contratação de uma empresa especializada para fazer a captura, o recolhimento, o acolhimento, o tratamento e a destinação dos animais e dos veículos que serão recolhidos em função de vigência da lei. A prefeitura está em busca, agora, de uma empresa que apresente orçamento para o serviço, a fim de que a licitação possa ser elaborada em conformidade com a lei.

A reportagem do Diário procurou a direção do HVU, que mencionou ser um "tópico interessante", mas optou por falar com mais profundidade sobre o assunto em outro momento.

FASE 1

Chipagem e cadastro de animais

  •  Quantos já foram cadastrados e chipados? - 164
  • Qual a meta/ número pretendido? - Não informado Quem está fazendo esse serviço? Em que bairros? - Não informado

* Em agosto de 2019, foi definida a empresa fornecedora de microchips aos cavalos: Evolução Pet Comércio de Produtos para Banho/Tosa e Veterinária Ltda, de São Paulo. Segundo prefeitura, a previsão era de 500 identificadores eletrônicos no valor de R$ 2,4 mil, além de dois aplicadores reutilizáveis e dois leitores de microchips. O investimento foi de R$ 3,34 mil

* Previsão era encerrar até outubro de 2020, podendo ser prorrogado até instalar os 1,5 mil chips

* Desde abril deste ano, prefeitura elaborou um termo de referência para contratar empresa responsável para fazer a captura, o recolhimento, o acolhimento, o tratamento e a destinação dos animais e dos veículos que serão recolhidos

Gestão de resíduos

Quais as alternativas? Não informado. A prefeitura limitou-se a dizer que o trabalho "foi afetado porque precisa ocorrer de forma essencialmente presencial"

FASE 2

Cadastro de carroceiros

  • "Está prevista a elaboração de um cronograma, que estará baseado em uma mudança positiva na atual situação sanitária". Já "o cadastro sócio-familiar vai evoluir assim que esses aspectos tiverem o encaminhamento necessário 
  •  Quantas famílias já foram cadastradas? - Não informado
  • Qual a meta/ número pretendido? - Não informado
  • Quem está fazendo esse serviço? Em que bairros? - Não informado

*Em 2019, por meio do Cadastro Único, a Secretaria de Desenvolvimento Social contabiliza cerca de 400 famílias que se autodeclaram recicladoras e que usam tração animal e humana

FASE 3

Inserção de crianças e adolescentes nas unidades educacionais

  • Quantas? Por quem? Em que bairros? - As aulas presenciais estão paralisadas por conta da pandemia, mas prefeitura não informou sobre o assunto 
  •  Inserção das famílias nos programas de saúde municipal - Não informado
  • Quantas? Por quem? Em que bairros? - Não informado
  • Cursos capacitação/qualificação e apoio a inserção no mercado de trabalho - Prefeitura não informou sobre o assunto

FASE 4

Proibição imediata da condução de carroças por menores e de animais em maus-tratos e da circulação dos veículos

  • Haverá fiscalização e multas? Não informado pela prefeitura

Entenda

  • A partir de março de 2017 - Começam as discussões no legislativo e executivo municipal acerca da problemática das carroças
  • Dezembro de 2019 - Promulgada a lei
  • Junho de 2020 - 180 dias em que lei passou a ter efeito
  • Junho de 2021 - Lei em vigor, com restrição das carroças na área central (fim do prazo máximo de 1 ano de adequação à lei) 


OS QUATROS ANOS QUE ANTECEDERAM A ELABORAÇÃO DA LEI

Março

  • Dados inéditos do Instituto Assistencial de Bem-Estar Animal (Iabea) revelaram que Santa Maria tinha 3 mil carroças e cerca de 2 mil cavalos maltratados 
  • Após reportagem do Diário, prefeitura, até então sem dados e sem controle sobre os carroceiros, informou que junto de outras instituições faria o cadastro de famílias que têm a carroça como fonte de renda e o dos animais que puxam os veículos
  • Prefeitura menciona a possibilidade de criar uma cooperativa para carroceiros discutindo-se também a questão ambiental e de mobilidade urbana
  • Prefeito anuncia grupo de trabalho para tratar das carroças

Abril

  • É criada, no Legislativo, uma comissão para tratar dos veículos de tração animal
  • Uma petição online organizada pelo projeto Cavalos Aposentados de Santa Maria recolheu 3,6 mil assinaturas de pessoas que apoiavam o fim das carroças
  • Prefeitura inicia cadastro de carroceiros e recebe projetos de veículos alternativos

Maio

  • Ministério Público investiga trabalho infantil nas carroças. Abertura do procedimento teve como base as reportagens do Diário sobre o tema
  • Comissão organiza reuniões nos bairros com os carroceiros, mas eles não comparecem aos primeiros encontros
  • 34 carroceiros foram cadastrados

Junho

  • Representantes do executivo e do legislativo municipal vão à Empresa Pública de Transportes e Circulação (EPTC) de Porto Alegre para trocar informações sobre a lei que proibiu as carroças na Capital.

Julho

  • Durante uma audiência pública, uma nova comissão é formada no Legislativo para tratar dos resíduos sólidos, que envolve a problemática das carroças

Agosto

  • Audiência pública é promovida pela Frente Parlamentar em Defesa dos Animais na Câmara de Vereadores

2018

Maio

  • Um ano depois, número de carroceiros cadastrados no município segue o mesmo: 34. Políticas públicas voltadas aos carroceiros estão estagnadas

Julho

  • Triagem que começou a ser feita pela Central de Bem-Estar Animal, com o apoio do Centro de Reabilitação Equina da UFSM precisou parar de ser feita por falta de equipe

2019

Fevereiro

  • Um novo projeto de lei de autoria do então vereador João Kaus (MDB) propunha proibir as carroças com tração animal no Centro da cidade. Dias depois, a Procuradoria Jurídica da Câmara de Vereadores deu parecer negativo ao projeto

Junho

  • A pedido do Ministério Público, guardas municipais e agentes de trânsito passaram a abordar carroceiros e catadores para identificar crianças ou adolescentes nos veículos

Julho

  • Protetores de animais realizam mais uma reunião, na Câmara de Vereadores para tratar sobre o projeto que proíbe a circulação de carroças, e prefeitura lança licitação para compra de chips para identificação eletrônica de 500 cavalos

Agosto

  • Definida a empresa fornecedora de microchips aos cavalos: Evolução Pet Comércio de Produtos para Banho/Tosa e Veterinária Ltda. Segundo prefeitura, a previsão era de 500 identificadores eletrônicos no valor de R$ 2,4 mil, além de dois aplicadores reutilizáveis e dois leitores de microchips. O investimento foi de R$ 3,34 mil
  • Grupo de pessoas pelo fim das carroças realizou enquete para ouvir a população no Viaduto Evandro Behr. Foram 7.946 votos sendo, 7.863 que opinaram pelo fim das carroças e 83, que posicionaram-se contrários

Outubro

  • Audiência pública debateu a proibição da circulação de carroças na área central. A proposta foi da Comissão Especial que analisa o projeto de lei do vereador João Kaus (MDB)
  • Cavalos começam a ser microchipados na cidade

Novembro

  • Prefeitura apresenta o Programa Municipal de Mobilidade e Bem-estar do Animal de Tração, que prevê quatro fases ao longo de cinco anos

2020

Fevereiro

  • Com a volta das atividades no Plenário, após o recesso, assunto da microchipagem de animais é debatido

Dezembro

  • Na véspera da votação do projeto de proibição de carroças, defensores de animais fizeram vigília em frente à Câmara
  • Projeto de lei que cria o Programa de Controle da Mobilidade e Bem-Estar do Animal de Tração, aprovado no dia 19 de dezembro
  • Prefeito Jorge Pozzobom transformou em lei o projeto que proíbe a circulação das carroças em Santa Maria no dia 23 de dezembro

2021

Junho

  • Entra em vigor a Lei 6.438, que proíbe circulação de carroças na área central da cidade

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