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Um pequeno rio não corre para o mar

data-filename="retriever" style="width: 100%;">As minhas saudades não existem mais; ou, então, necrosaram ao longo do caminho. Sabe-se lá! É impossível distinguir com precisão. A imagem que guardei dos meus mortos se mostra difusa com o passar do tempo, e pelos vivos, o que sinto hoje são irrisórias variações sentimentais. Acho que foi a vida quem me fez assim tão áspero, próximo das pedras que calçam as ruas. Como me tornei um burocrata que procura seguir à risca os deveres do cargo, não figura entre as minhas atribuições funcionais sentir saudade. Isso é coisa de poeta, de gente que vive no mundo da lua, que os dicionários classificam como nefelibatas.

Talvez seja por isso que deixei de chorar. Ou melhor, não chorava, antes de ver aquela fotografia esmaecida do rio da minha infância. Perto da curva de onde retiravam areia para as construções na cidade, aparece eu e um negrinho de boné amarelo, o Nanico, filho do velho Carona e o meu melhor amigo para as travessuras aquáticas, ambos segurando uma câmara de caminhão. Ao fundo, um paredão de árvores copadas impedia que se visse o campo repleto de vacas e terneiros que existia logo atrás dos barrancos arborizados. No meio do leito humilde, próximo àquela curva, pontas de galhos emergiam da parte funda, à semelhança dos resíduos de um naufrágio. À noite, fogueiras anunciavam de longe aos viandantes a presença de pescadores solitários ou namorados aventureiros, abrigados sob o teto de um luar complacente que costumava ficar acordado até tarde.

Era desse jeito um pouco do meu rio, tímido e cheio de peixe miúdo, com muralhas verdes ao correr do leito. Salão de festas e refúgio da gurizada pobre que nem sabia para que lado ficava o tal mar que os filhinhos de papai se gabavam de conhecer como a palma das mãos. Mas que importava o mar, se tínhamos aquilo tudo à disposição, de graça, ao alcance dos pedais das bicicletas, sem que fosse preciso percorrer quilométricas distâncias de asfalto para encontrar a água salgada e traiçoeira? A nossa praia era o rio, pequeno paraíso de curvas e remansos, beleza talhada pelo cinzel delicado de Deus.

Ele hoje está estreito, assoreado e poluído, e não corre mais com a mesma destreza de antes. Ainda assim, mais parecendo um córrego de vilarejo, será sempre aos meus olhos o mais belo rio que conheci em toda a minha vida. O Sena, por exemplo, não chega a seus pés.

Quando surgir o próximo verão, vou convidar os meus filhos para conhecerem o encantado lugar que lhes falo tanto, sobretudo quando o assunto é a infância há muito perdida. Nesse dia, levarei comigo um caniço de taquara, para ver se pesco e mostro a eles o pedaço maior da minha felicidade que ficou submersa naquele rio.

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