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O Abade de Mably



Genève. Almoçamos no restaurante Les Armures e começamos a descer a Grand-Rue. No número 37, em frente à casa onde nasceu Jean-Jacques Rosseau - hoje Maison de Rousseau & de la Literature - havia uma livraria, no número 37, se bem me lembro, mas (vi no Google) já lá não está. Era no início dos anos 2000. Caminhávamos lentamente, eu sem gravata, embora de paletó, a máquina fotográfica em um bolsa de mão. Entramos e vi, em uma estante, os quinze volumes da coleção completa do Abbé de Mably, editados entre 1794 e 1795 - ano III da República - pela Ch. Desbrière.

Nesse exato momento a dona da livraria, que acompanhava um sujeito engravatado, todo chique, falando inglês, indelicadamente mandou-me que saísse da frente.

Saímos os dois e fiquei a olhar a vitrine. Tania chamou-me para irmos embora, mas não fui. Quando o engravatado passou por nós, sem nenhum livro ter comprado, entrei novamente, sendo então bem recebido. Aproximei-me aos livros de Mably e enfaticamente perguntei se aquilo era uma provocação a Rosseau!

Ela me olhou, a dona da livraria, perplexa, sem saber o que dizer. "Os dois eram inimigos e agora a senhora os coloca frente a frente!". E prossegui a falar da desavença intelectual entre Mably e Rousseau, a propósito da qual eu lera algo recentemente. "Irmão de Condillac - disse-lhe em seguida - Mably foi um defensor do socialismo utópico e da Revolução Francesa que transformou a França quatro anos após a sua morte".

Prossegui a falar e ela me olhava espantada, convencida, ingenuamente, de que eu seria um intelectual. Coisa nenhuma - senti vontade de dizer-lhe - eu apenas nasci virado para a lua e li recentemente o que estou a repetir. Tania sorria, discretamente, percorrendo as estantes com os olhos.

Pronto. A partir desse momento iniciamos o diálogo a respeito do preço dos livros e de como transportá-los até Paris, em seguida ao Brasil. Conversa vai, conversa vem e chegamos a um valor razoável. De repente parecia que mais ela desejava vendê-los a mim do que eu comprá-los. Decidimos que os volumes viajariam conosco, nada de despachá-los pelo correio. Vieram conosco e cá estão perto de mim, agora.

Depois disso consegui adquirir outros livros de Mably. Mais quatro títulos, em vários volumes, inclusive os dois do Observations sur l'histoire de France, editado em Genève, em 1765.

Mably era um subversivo, no sentido de que desejava vivêssemos em um mundo melhor. Curiosamente, subverter é, na ponta da linha, o que será subvertido (será mesmo?) no futuro. O fato é que entre os livros que possuo e procuro conservar bem conservados há extremos, pra lá e pra cá, que se tocam. Como este abade e um ateu - terá sido mesmo? - Karl Marx. Lembre-se bem, além de tudo, que sua mulher - Jenny Von Westphalen - era nobre e ele bem que gostava de ser marido da filha de um barão da Prússia!

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