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Cadê o outono que estava aqui?

Decididamente, este vento norte, que esparrama folhas - mortas e arrancadas em plena vitalidade - das árvores no pátio da minha casa, é um vento temporão, que insinua a primavera quando recém o inverno é chegado. Pelo menos é o que nos afirma o calendário. Ficássemos apenas com a orientação das nossas sensações, não tenho dúvida, afirmaríamos, de forma categórica, estarmos na esplendorosa e florida renovação primaveril. Ou na quase causticidade de um verão tropical.

Foi assim o outono inteiro. Até mesmo as cores e a luz características da estação se embaralharam na miscelânea climática dos últimos meses. Mas, por favor, não pensem os leitores que estou a reclamar do calor ou da ausência do frio. Aliás, já gastei muitas crônicas de jornal para externar minhas profundas divergências com a estação gelada. Ressalvando, nas últimas crônicas, se bem me lembro, aspectos reconfortantes para alma e para o corpo, próprios das gélidas noites invernais. "Quais?" Perguntará aquela leitora amiga, temerosa da possibilidade de se ver encarangada com a próxima chegada do frio, anunciada para esta semana.

Pois, respondo, informando pelo menos três: uma boa lareira, o caldo quente de uma sopa, de agnolini ou de legumes com miúdos de galinha, e um tinto honesto. Infelizmente, é forçoso reconhecer, tais confortos anímicos são, na sua maior parte, inacessíveis para a maioria dos nossos irmãos. Também por isso, às invernias restritivas, prefiro as democráticas estações amenas e o escaldante sol dos verões. Mas, há quem prefira o rigor excludente dos invernos e precisamos respeitar tal preferência.

Por que assim é a vida, multifacetada, rica em contrariedades, plena de diferenças, substantivamente desigual (há uma desigualdade adjetiva que pode e deve ser vencida). Isso vale para as estações do ano, para política, para religião e para futebol. Nós somos o resultado das nossas preferências e escolhas e ainda que possamos e, às vezes, até devamos mudar em razão da maturidade adquirida pelas vivências, ou em decorrência do processo de convencimento a que fomos submetidos no diálogo com quem pensa de maneira diversa da nossa ou, simplesmente, pela constatação de que estamos errados. É necessário apenas, na medida do possível, que mantenhamos um mínimo de coerência e que respeitemos nossas próprias histórias e as lutas que abraçamos ao longo do tempo, porquanto, de alguma maneira, essas histórias e essas lutas encerrarão sempre um pedaço das nossas crenças e das nossas esperanças na possibilidade do crescimento individual e coletivo.

Assim, de nada me adiantaria perguntar: cadê o outono que estava aqui? O inverno quando vem? Como nada resolve prostrar-me ensimesmado, repetindo velhas e cansadas reclamações sobre os políticos, sobre a violência, sobre as flagrantes e tenebrosas injustiças do país ou, em síntese, sobre a vida que se quer e não se tem.

É indispensável, da maneira que nos for possível, chamar a atenção, propor debates, falar, enfim, da necessidade de que aceitemos as diferenças e nos capacitemos para dialogar sobre elas. Talvez nunca cheguemos ao consenso, mas será mais fácil aceitar o fato de que o outono e o inverno, às vezes, se parecem com a primavera.

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