Assumida em diferentes expressões, a violência no ambiente escolar vai de casos que assustam à naturalização de práticas reproduzidas e que nem sequer são levadas ao debate ou à investigação. Isso é corroborado por especialistas da área de segurança pública que criticam estatísticas inconsistentes, ou melhor, a inexistência de indicadores de violência em instituições de ensino.
Porém, entre o final de junho e o início de julho, fatos que aconteceram na região central do Estado ganharam repercussão depois que chegaram ou foram descobertos pela polícia, e afetaram a vida pessoal e social, bem como a saúde física e psicológica de pais, alunos e professores.
O primeiro caso, em uma escola municipal de Santa Maria, no Bairro Camobi, veio à tona depois que a polícia encontrou um plano de vingança elaborado por um aluno de 13 anos e documentado em uma folha de caderno. O adolescente planejava um ataque armado contra seis colegas e uma professora, além de prever o uso de explosivos. Já em São Sepé, município vizinho a cerca de 60 km, a frase “massacre em 6 de julho”, escrita fora de contexto de ameaça na porta de um banheiro da escola gerou preocupação. Na mesma instituição, uma munição de um revólver 22 encontrada em uma sala de aula está sob investigação.
Os acontecimentos fomentaram debate nas redes sociais e entre grupos de WhatsApp. Em Santa Maria, escolas públicas e particulares chegaram a registrar ausência de alunos um dia depois do acontecimento em Camobi, onde as aulas seguiram normais e, conforme a própria direção e a Secretaria Municipal de Educação, foi um fato isolado. No dia seguinte à descoberta do plano de vingança do aluno, professores, representantes do Ministério Público foram ao local e garantiram a tranquilidade.
– O caso da escola de Camobi me deixou assustada. Mesmo não sendo na escola da minha filha, fiquei com medo e acabei não levando ela para o colégio na manhã seguinte. O instinto de proteção falou mais alto – relatou a mãe de uma aluna de 11 anos, que estuda em um colégio particular da cidade.
Ela pediu para não ter o nome e a instituição identificados. A mãe relatou que, há meses, na mesma escola, uma menina de 10 anos ameaçou usar um estilete para machucar dois meninos. O motivo era que eles seriam um casal.
– O Brasil vive um momento histórico propício à violência porque ela tem sido estimulada por um discurso intolerante e por maior facilidade de acesso às armas. É claro que isso impacta também as crianças e os adolescentes. O desafio deve ser pensado muito além da repressão e envolve a construção de uma cultura de paz nas escolas – analisa Marcos Rolim, que é doutor em Sociologia, professor de Direitos Humanos da UniRitter (Porto Alegre) e autor, entre outros trabalhos, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema.”
Arma nos Jogos Escolares
Foto: Prefeitura de Santa Maria (Divulgação)
Enquanto essa reportagem era escrita na tarde de sexta-feira, por meio de nota, a prefeitura admitiu uma medida restritiva que teve de tomar para garantir a segurança dos participantes dos Jogos Escolares de Santa Maria (Jesma). Após um adolescente de 17 anos, aluno de uma das escolas participantes da competição, ser flagrado com facão, munição de revólver calibre 22 e um simulacro de arma, a prefeitura restringiu o acesso ao Centro Desportivo Municipal (CDM). Somente estudantes e professores das escolas terão acesso ao local. O caso aconteceu no dia 29 de junho. Na mesma data, dois adolescentes, de 15 e 17 anos, e um jovem de 19, também foram detidos por envolvimento em uma briga generalizada em frente ao CDM. Eles portavam um facão, uma adaga, e uma faca com soqueira. O Jesma segue até outubro, com a participação de 4 mil alunos das redes pública e privada. A manifestação do Executivo municipal só foi emitida à imprensa, na sexta-feira, após o acesso do acontecimento por meio de uma ocorrência policial.
Professor da Faculdade de Direito de Santa Maria (Fadisma) e idealizador do 1º Curso Superior de Tecnologia em Segurança Pública Municipal do país, Eduardo Pazinato observa que essa é uma questão que hoje se apresenta em um universo global, não só em nível brasileiro, ou regional e local. Contudo, há particularidades:
– Vários fatores e casualidades estão na base desse fenômeno social. Alguns já são comumente verificados e intensificados na pandemia, como o isolamento social que afeta questões psicológicas, diminui as interações sociais, além do consumo desmedido de mídias e canais de internet que podem suscitar a violência, por exemplo. Depois, temos no Brasil, de flexibilização do acesso a armas de fogo e o discurso por altas autoridades públicas de que “a arma resolve os problemas”, quando na prática é um fator de risco.
Prevenir sem fomentar cenários de medo
Os fatos que aconteceram em Santa Maria e em São Sepé não têm relação. Do ponto de vista do caráter preventivo, em ambos casos, evidencia-se a necessidade das escolas agirem rapidamente e contatarem os responsáveis pelos alunos, coordenadorias de Educação e órgãos da segurança pública. Ainda mais urgente é a necessidade de antecipar ações que coíbam o desrespeito e a agressão no ambiente escolar. Por outro lado, é preciso trabalhar na educação e no acolhimento de toda comunidade escolar e verificar as particularidades de cada situação. Se na escola de Santa Maria havia uma ameaça, inclusive, com detalhamento de um plano, no colégio de São Sepé, a preocupação emergiu, segundo a direção da escola e da polícia, a partir de uma frase aleatória e em tom de “brincadeira”. Já a localização de uma munição de um revólver calibre 22 no mesmo colégio está sendo investigada.
– É preciso construir uma política pública de prevenção à violência nas escolas que seja capaz de se antecipar às dinâmicas mais comuns que agenciam práticas de desrespeito e agressão. As escolas podem fazer muito se receberem o devido apoio para, com base nas evidências, construir um clima escolar acolhedor. Mais do que isso, é preciso que os municípios e o Estado tenham um protocolo de prevenção à violência que prepare as escolas também sobre o que fazer diante de eventos violentos – explica o professor Marcos Rolim.
Escola Municipal de Ensino Fundamental Santa Helena – Santa Maria/RS
Foto: Reprodução
Um aluno de 13 anos documentou, em uma folha de caderno, a elaboração de um plano para atacar pelo menos seis colegas e uma professora na Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Santa Helena, no Bairro Camobi. O adolescente teria assumido a autoria do plano, o qual pretendia colocar fogo na escola. O caso chegou à 4ª Delegacia de Polícia (4ª DP) após uma pessoa ter encontrado a folha de caderno perto da escola e feito a denúncia. Com a ajuda da direção e de professores, os policiais identificaram o adolescente. Os professores, a diretora e o aluno foram ouvidos pela polícia. O menino, que há oito anos estuda na EMEF Santa Helena, foi descrito como tranquilo pela direção. Ele e a família serão encaminhados para atendimento psicológico.
Há cerca de dois meses, a mesma instituição enfrenta uma situação de luto após a morte de uma professora.
Plano de vingança
Escrita em inglês, a folha de papel foi queimada parcialmente tornando ilegível o centro da página. No topo, estão o título, “Operação Vingança”, e os materiais necessários para a execução do plano. Entre os escritos: “arma (de qualquer tipo), cianeto (se conseguirmos a arma, não será necessário), isqueiro ou fósforo, uma garrafa, álcool e uma faca”.
Na lateral esquerda, constam as instruções do plano e frases como “plantar a bomba na sala” e “acerte os alvos”. Ao centro, o estudante desenha um mapa da escola e o descreve como “mapa não tão preciso”. Ele também desenha uma planta da escola, indicando os diferentes ambientes do prédio e as saídas. No mapa constam a localização das câmeras, e nas duas das saídas da instituição está escrito “molotov”, que sinaliza para utilizar o artefato incendiário. Na lateral direita da folha, estão os nome de seis estudantes e de uma professora.
Escola Municipal de Ensino Fundamental Maria José Valmarath – São Sepé/RS
Foto: Reprodução
Em um dia, a frase “massacre dia 6 de julho” é escrita a lápis na porta de um banheiro feminino da Escola Municipal de Ensino Fundamental Maria José Valmarath, no município de São Sepé. No outro, a direção da escola encontra, em uma sala de aula do 7º ano, uma munição de revólver calibre 22. Os fatos geraram preocupação e atitudes imediatas na instituição. Ocorre, porém, que a escrita da frase não passou de uma “brincadeira”, segundo relato da aluna que a fez. Os professores e a polícia sustentam que foi uma frase aleatória, e que a aluna está sendo acolhida, o que não significa ignorar ou não discutir o fato.
– Não foi uma frase de ameaça. Foi uma frase aleatória, e a mãe da menina já foi ouvida. No dia do fato, a aluna fez relação a um atentado que ocorreu nos Estado Unidos em 4 de julho e escreveu aleatoriamente – esclarece a delegada Carla Dolores, responsável pela delegacia de São Sepé.
A hipótese da relação da adolescente que escreveu a mensagem na porta do banheiro com o aparecimento da munição está descartada. A investigação se detém em descobrir e responsabilizar quem levou o material para dentro da escola.
– A direção fez bem em nos procurar. O caso da menina foi resolvido, e, quanto à munição, estamos investigando. É preciso saber que ter uma arma pode implicar em consequências perigosas, sobretudo quando está livre ao acesso de crianças e adolescentes – completa a delegada.
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“Há uma invisibilidade de indicadores e registro de agressões entre os alunos”
Uma das medidas que são absolutamente necessárias de serem tomadas pelos governos, seja em nível estadual ou municipal, é criar registros de situações de violências nas escolas para serem analisados pela comunidade escolar e reverberados em ações concretas de prevenção naquele lugar. Conforme Eduardo Pazinato, eventualmente, a violência se dá por uma discriminação de gênero, por exemplo. Neste caso, o tema tem de entrar na sala de aula e ser objeto de alguma intervenção envolvendo professores e alunos, para desconstruir esse preconceito:
– Há uma invisibilidade de indicadores e de registro de agressões entre alunos. Sem registros, não se consegue estabelecer um grau de comparabilidade ou desenvolver uma política mais assertiva em que se possa incidir. Quando chega à polícia, as ocorrências são caracterizadas como atípicas ou associadas a uma lesão corporal.
Em 2011, o município de Canoas criou e segue até hoje com a implementação do Registro Online de Violência Escolar (Rove). Cidades como Esteio e Novo Hamburgo também adotam o modelo.
– A escola é só o local em que isso se exprime, mas não é um fenômeno que nasce na escola. A violência deveria ser um eixo central da educação do país, dos Estados e dos municípios. Porque quando a violência escolar aumenta vira obstáculo para o próprio ensino. Não se aprende em um ambiente violento, mas se aprende a romper esse ciclo vicioso da violência. Há possibilidades para reverter esse quadro e, obviamente, começa com o entendimento da dimensão e das características do problema. Isso só é possível se anteciparmos os fatos.
De acordo com a titular da Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente (DPCA) de Santa Maria, Luiza Sousa, são poucas as ocorrências envolvendo escolas que chegam à polícia.
– Acontecem algumas brigas entre alunos. Cerca de uma por mês chega na delegacia, pois depende de representação da vítima. Os casos envolvendo conflitos são, geralmente, alunos com faca, mas que não chegam a usá-las, pois acabam sendo entregues aos professores, que chamam a Brigada Militar. E portar faca não configura crime – pontua a delegada.
Mídia como instrumento educativo
O professor Eduardo Pazinato chama a atenção para a necessidade da educação no meio familiar, do acolhimento e da proteção social que se dá a crianças e adolescentes. Alguns elementos também podem provocar a recorrência de casos de violência que, muitas vezes, são um pedido de socorro, e se manifestam como uma forma de dar visibilidade a outras violências, que emergem no ambiente intrafamiliar. O acesso aos meios de comunicação também é importante.
– Há influência por conta dos meios de comunicação, da internet e do acesso de informação em diferentes instâncias da vida. A mídia deve ser uma estratégia de informação e difusão de conhecimento, pois os hábitos culturais de crianças e adolescentes foram diretamente impactados pelo isolamento social, e a interação com o mundo foi feita a partir das redes sociais, sem outras formas de sociabilidade. E todos os outros danos que isso gera na própria saúde mental.
O especialista contextualiza o momento é complexo, de crise econômica, de desesperança, de uma retomada da normalidade da vida com muitos déficits, inclusive no ambiente educacional:
– Não existe uma receita pré-estabelecida de quais são essas casualidades do emprego da violência, inclusive armada, no ambiente escolar. O que a gente percebe é que a sociabilidade nas escolas tem sido potencializada pela violência. Isso é um fenômeno pré-pandemia, um fenômeno global que a pandemia potencializou. E independentemente do instrumento – arma branca ou de fogo –, o que a gente percebe é que dentro da sala de aula, no espaço do recreio e do intervalo, na entrada e saída, são momentos de maior tensão justamente em razão dessa sociabilidade, que, muitas vezes, está sendo mediada pelo emprego da violência que pode ser verbal, física e que evolui para um ato com potencial de letalidade a partir do emprego de diferentes artefatos.
Patrick Camargo, psicólogo especialista em crianças e adolescentes, levanta o aspecto relacionado à repetição de casos e à importância da escuta:
– Há medo de que os adolescentes comecem a repetir esses comportamentos, muitas vezes, por admiração ao colega. Vamos ficar alertas, prestar atenção e buscar o que os filhos estão acessando na internet, quais sites e pesquisas sobre histórias, armas, e arquitetura. Às vezes, eles (alunos ou filhos) não vão dar sinais de sofrimento, mas de que algo está errado. Essa atenção os familiares têm de ter, perguntar como foi o dia, o que está passando na escola, buscar saber como está o entrosamento com os colegas, ver com os professores ou coordenadores se os relacionamentos estão em dia, se o aluno se integra aos grupos ou se apresenta dificuldade de relacionamento –sugere.
Gestores preparados para diferentes situações
Situações de violência desdobrada no ambiente escolar não são isoladas ou recentes. A pandemia potencializou a incidência de fatos, mas o mundo e o país já assistiram a outros casos. Desde o massacre de Columbine, em 1999, os Estados Unidos tiveram 14 massacres e 169 mortos. No Brasil, casos acontecem em diferentes Estados, sendo o primeiro e mais expressivo, conhecido como Massacre de Realengo, no município do Rio de Janeiro.
– Existe um risco que deve ser acompanhado por escolas de alunos que eventualmente possam produzir atos mais graves. Isso pode ocorrer quando há atos de grande divulgação na imprensa mundial, e o fenômeno conhecido como Copycat, em que alguém estimula ou tenta imitar, o que é mais frequente dos Estados Unidos pela cultura das armas. No Brasil, já aconteceu, mas é mais raro. Aqui, os professores deveriam receber capacitação para identificar riscos dessa natureza, e a polícia, por monitoramento de redes sociais, seguir pistas importantes de jovens que se encontram em fóruns restritos, que são chamados de deepweb, e lá comentam as coisas mais horrorosas. Em geral, são adolescentes com frustrações e que prometem vingança a mulheres, à escola ou mesmo situações de bullyng que podem promover sensações de injustiça e vitimização. Insistimos muito é na existência de protocolos para evitar cenas de violência, mas também para saber como proceder. Exemplo: se acontece um tiroteio? O que fazer? E se alguém entra armado? Isso é importante para a gestão escolar, que está muito solta e sem orientações no Brasil – acrescenta o professor Marcos Rolim.Recentemente, em Porto Alegre, o professor coordenou um trabalho que consiste na criação de um Protocolo de Prevenção à Violência nas Escolas. A ação foi a convite da comissão de Educação Câmara de Vereadores de Porto Alegre, e encampado pelo então vereador Mauro Zacher (PDT), que morreu no dia 26 de junho.
Casos de repercussão
7 de abril de 2011 – Realengo – Escola Municipal Tasso da Silveira, localizada no Bairro de Realengo, no município do Rio de Janeiro. Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, invadiu a escola armado com dois revólveres e começou a disparar. Ele marou 12 alunos, com idade entre 13 e 15 anos, e deixou 22 feridos. O assassino foi interceptado por policiais, mas cometeu suicídio antes de ser detido.
13 de março de 2019 – Suzano – Crime ocorreu na região metropolitana de São Paulo. Segundo a polícia, um jovem e um adolescente mataram cinco estudantes e duas funcionárias e cometeram suicídio logo depois. Um empresário também foi assassinado pela dupla pouco antes de os dois entrarem na instituição
4 de maio de 2021 – Fabiano Kipper Mai matou três crianças e duas mulheres em uma creche no município de Saudades em Santa Catarina. O autor do crime não tinha histórico policial
Maio de 2021 – Uma estudante de 19 anos foi presa por arquitetar um massacre em uma escola no Distrito Federal. A jovem tinha máscaras e simulacros de armas em casa. A jovem foi descoberta pela polícia a partir de suas atividades na internet
Maio de 2022 – Um jovem de 18 anos abriu fogo em uma escola no Texas, matando 19 crianças e dois adultos. Os policiais mataram o atirador no local do crime.
Santa Maria
17 de outubro de 2008 – Uma menina de 13 anos é agredida por três adolescentes na saída da Escola Estadual Paulo Lauda, no Bairro Tancredo Neves. Duas das agressoras eram estudantes do colégio. A vítima foi internada no Husm
29 de março de 2009 – Um estudante de 17 anos da Escola Estadual Cilon Rosa, na área central da cidade, agrediu a ex-namorada, também aluna da escolaJulho de 2008 – Mãe vai à escola registrar violência sofrida pelo filho de 11 anos, alegou que a direção da Escola Municipal Castro Alves “fez pouco caso”
Colaboraram: Eduarda Costa, Gabriel Marques, José Quintana Jr., Lenon de Paula, Maurício Araujo, Mauricio Barbosa e Rafael Menezes
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