Nós brasileiros nos consideramos afáveis, amigos, não propensos a agressões, dotados de compreensão sobre as diferenças étnicas, sociais, culturais e econômicas de nossos semelhantes. No livro “Raízes do Brasil”, Sérgio Buarque de Holanda diz que o brasileiro é cordial e isto foi entendido como sendo um povo que é compreensivo e tolerante, mas o verdadeiro sentido é justamente o contrário da polidez, é um disfarce, um fingimento, que esconde sensibilidade e emoções e, assim, sentindo-se superior, exercendo poder sobre outros, consegue esconder seu sentimento verdadeiro. A cordialidade não passa de uma camada de verniz, que esconde sentimentos de desprezo, desrespeito e prepotência, que começa vem desde como o Brasil foi colonizado, por aqueles que recebiam da Coroa portuguesa privilégios de explorar a terra com a força do braço escravo, tratando índios e negros na base do chicote, mas havendo submissão o “senhor” fingia cordialidade.
A independência manteve a matriz econômica e os meios de exploração da riqueza. O Império, ao substituir a Coroa portuguesa, manteve o sistema e modos de exploração das riquezas agrícolas e minerais, baseada em privilégios e exploração do trabalho escravo.
A escravatura foi abolida legalmente em 1888, no dia 13 de maio, desde lá passaram-se 134 anos, mas a cultura escravocrata, que imperou por 388 anos, ainda nos intoxica.
Ainda hoje, são nítidos sinais de divisão entre privilegiados (com direito, vantagem, prerrogativa, regalia, que não são válidas a todos) e os milhões que sequer dispõem de meios sociais, econômicos, educacionais e sanitários, que lhes proporcionem os meios necessários para, meritoriamente, poder sair da situação de infortúnio em que ainda vivem.
A falta de empatia, que, por vezes, choca a muitos, como nos recentes casos de estupro de uma menor de apenas 10 anos de idade e de uma atriz que, por ter sido vítima de abuso, resolveu dar o filho para adoção legal, mostra que a falta de compreensão, de sentimento de humanidade e respeito ao outro está muito vivo entre nós. São exemplos emblemáticos, que a violência e o ódio que é destilado nas relações sociais, talvez seja decorrente do descarte da máscara da cordialidade fingida, permitindo que os rostos se apresentem como são de verdade.
O crescente número de agressões que as mulheres têm sofrido, apesar de toda uma campanha contra esta violência e da existência de leis que punem criminalmente agressores mostra que estamos muito longe ainda de uma sociedade capaz de conviver com o diferente, entender que não é possível admitir a submissão de ninguém pela força bruta. O mesmo pode ser dito quando se fala em racismo, em desmerecer a religião do outro, em impor regras morais, em querer suprimir as opiniões contrárias.
O brasileiro não é cordial, nem mais por fingimento.
Leia todos os Colunistas