A Constituição brasileira era ainda um bebê de uns dois anos quando eu, lá pelos meus sete, aprendi na escola sobre o que são atribuições de vereador(a), prefeito(a), deputados(as) estaduais e federais, senadores(as), presidente, entre outros cargos públicos. A didática da época me parece hoje bem deficiente, pois éramos obrigados a decorar tudo e responder numa provinha aterradora, mas mesmo assim, sinto que aqueles conteúdos de aprendizagem sofrida fazem, sim, relativa diferença em minha ideia sobre cidadania. Eu nunca mais esqueci, por exemplo, em que esferas as leis são criadas, votadas e, finalmente, postas para funcionar. Mas, sem dúvida, o que mais guardo de tudo isso é a consciência do valor e do poder do meu voto, a responsabilidade que tenho sobre as minhas escolhas, e a consequente necessidade de acompanhar a trajetória daqueles que ajudo a eleger, para, também, fiscalizá-los afinal.
Nas aulas de história, fiquei radiante quando entendi que havia nascido a tempo de ter como lembranças mais consistentes as vivências de uma época democrática, compreendidos o que eram afinal os tempos não democráticos. Lembro que perguntei à professora, indignada, “mas então as pessoas não escolhiam o presidente?!”. Destaco aqui: a esta altura eu tinha uns 10 ou 12 anos, e assim como a maioria das crianças na minha faixa etária, eu não militava por qualquer outra coisa que não fossem papeis de carta, LP’s da Xuxa, séries especiais dos meus gibis favoritos ou exemplares raros dos copos da Coca-Cola alusivos ao Michael Jackson. Tá, eu já curtia videogames, a coleção de revistas exotéricas do meu avô Bento, e tinha gostos musicais e fílmicos um tanto estranhos para minha idade, mas não discutia com ninguém por causa dessas coisas. Aliás, que saudade daquela época, mesmo que a internet que havia no Brasil ainda fosse “coisa de rico”, e discada. Fui apresentada a uma versão relativamente decente dela em 2002, na faculdade, e cada página demorava cerca de dois minutos para abrir. E em meio a tudo – talvez pela precariedade da internet, talvez porque o contato humano nos fosse mais palatável – conseguíamos iniciar e terminar uma conversa sobre qualquer assunto.
Logo depois, ali por 2004, conheci um tal Orkut. Pouco depois, em meados de 2008, um amigo em comum me apresentou ao Facebook. Lembro que no início eu não ia muito com a cara dele, mas o danado me pegou de jeito! Já era, eu tinha sido fisgada pela lógica das redes sociais, ou, como eu prefiro dizer, das confortáveis “bolhas sociais”. E estar em meio aos pares era, mesmo, algo muito sedutor. A zona de conforto social era uma novidade adorável. Só que o gosto pela concordância alheia pode evoluir para um vício tão corrosivo quanto o vício em açúcar, que, por sua vez, pode nos fazer pensar que o sal das discussões seja repugnante ou mesmo repulsivo. E, sim, o ser humano tende ao menor esforço e ao comodismo. Aliás, arrisco dizer que a totalidade das tecnologias que criamos, em última análise, têm o objetivo de nos poupar: poupar energia, dissabores, trabalho, esforço e tempo. Um tempo extra que, em geral, não queremos dedicar a algo que nos desafie de verdade, a ponto de abandonarmos nossas ideias prontas, que achamos tão lindas, e que queremos ouvir repetidas na boca do outro.
E que alguma boa alma cientista me corrija em resposta a esta coluna se eu estiver cometendo uma gafe, mas, até o momento, entendo que o esforço em compreender as diferenças – sejam as materiais e objetivas, sejam as imateriais e subjetivas – foi o que nos permitiu chegar até o grau de discernimento que temos hoje como espécie humana. Afinal, foi a compreensão do que seja útil e inútil, certo e errado, bom e mau, bem e mal que alçou o ser humano ao que ele ostenta ser: o animal mais inteligente do planeta Terra. E isto não é afirmação minha, é o que está no crachá de qualquer ser humano médio. E mesmo que sejamos tudo isso, será que o marasmo das “bolhas sociais”, ao nos poupar do esforço do debate, ao nos fazer provar do açúcar que oxida o senso crítico, não nos estaria fazendo regredir e descer deste pedestal? Acalma o coração aí, que isto é só uma pergunta, ok?
Inquieta sobre essas coisas, nos últimos anos tenho encontrado nos estudos sobre literacia digital e literacia midiática algumas respostas a meus questionamentos. De cara, “literacia” me pareceu uma palavrinha tão agradável ao ouvido, e quando descobri que ela significa “letramento”, bah, arrepiei! É que além de linda, a palavrinha é essencial, afinal, letramento e aprendizado constante é a tônica da vida de uma espécie que se reafirma tão inteligente, não? Arrepiei porque eu também me reconheço como parte de uma sociedade que passa cada vez mais tempo nas mídias digitais e nas redes sociais e que precisa, sim, de senso crítico renovado sobre os caminhos e eventuais descaminhos percorridos nas tramas da informação e da desinformação. Intoxicados que tantos de nós estamos pelo açúcar da concordância em nossas bolhas de opinião há tanto tempo, desnutrindos do debate de ideias, do convívio civilizado com as diferenças, já comecei a montar mentalmente para nós um plano alimentar que nos fortaleça como cidadãos e mantenha a democracia bem vitaminada. Afinal, pense aí, quando foi a última vez que você participou de uma discussão com início, meio e fim? Daquelas em que entramos com uma ideia sobre as coisas e, juntos, chegamos a outras conclusões possíveis? E – mais raro ainda – sem levar nada para o lado pessoal?
Empolguei com a ideia da dieta para uma reeducação cidadã, e fui montando cardápios em que a literacia digital vai bem como uma entrada generosa, que nos prepara para ir muito além de operar computadores com competência. É que ela sobretudo nos ajuda a entender a importância e o impacto de ambientes como redes sociais, avaliando as informações que nos chegam para então intercambiá-las com responsabilidade. Já a literacia midiática vira prato principal. Ela proporciona a compreensão mais profunda dos meios de comunicação, provocando-nos a discernir o que são os significados postos em cada frase, em cada foto, em cada vídeo que acessamos, independente de qual seja o jornal, a rádio, o site em questão. Digerida tanta informação, o corpinho vai estar nutrido de pensamento crítico, consciência social e política, tudo o que a democracia mais gosta e precisa para se manter bem das pernas e garantir a sobrevida de tudo o que construímos até aqui, além de qualidade de vida e bem-estar para quem vier depois de nós.