Alguém dirá que estamos a ver esta cidade de avião. Antes fosse! O fato é que o elevador do nosso prédio quebrou (só existe um!), e as escadas são terrivelmente antipáticas, insuportáveis. Resta-me fingir que estou lá embaixo. Tenho coisas a fazer nesta véspera de retorno à Terra da Santa Cruz, como nosso Brasil era chamado quando nos descobriram.
Faz de conta que estou lá embaixo, vencendo o tempo. Lá embaixo, a caminhar pelo vinhedo que abraça a igreja enquanto tocam seus sinos.
Em um livro que escrevi, contando das coisas do meu quartier, lembrei-me de que há um rumor de passado, de tempo antigo, nas vozes desses sinos. Como se passassem mensagens. Não as de toques que anunciam isso ou aquilo, a morte de alguém, o chamado para a missa. Mais do que isso, vozes que reproduzem os mesmos sons, exatamente os mesmos sons que Diderot havia de ouvir, da esquina da rue Taranne com a Saint-Benoît, e Sartre em seu apartamento da rue Bonaparte. Ouço-lhes as mensagens e fico à espera das gralhas que passam nos finais de tarde. As gralhas de Paris, as mesmas às quais se referia Júlio Cesar no De bello gallico.
Cá de cima, giro pelo ar, qual uma gralha a voar. Domino o presente, o futuro e o passado. Voo pelo passado, alcanço o dia 2 de setembro de 1792, quando, na prisão da abadia de Saint-Germain, bem ao lado da igreja, aconteceu o ¿massacre de setembro¿. Corria a notícia de que a aristocracia preparava um golpe, e o povo, ardendo de paixão, em ódio de classe incontrolável, assaltou a prisão e matou padres e presos que lá estavam. Quatro dias de fúria, mais de trezentos mortos.
De um momento ao outro, contudo, de repente (não mais que repente, como diria o Vinícius) voltam as gralhas de outro Tempo, tempo de paz.
Balzac, filho da mãe, disse uma coisa que eu gostaria de ter dito antes dele: flanar em Paris é a gastronomia dos olhos! Mais ainda no meu quartier, digo eu. A realidade, para quem está por aqui (mais ainda quando flana cá de cima), será sempre um sonho. Mais e mais quando você se senta próximo à janela, e Paris é quem flana pra você.
O Tempo, no entanto, é movimento. Em poucos minutos, o elevador volta a marchar e descemos nossas malas. É hora de retornarmos à Terra da Cruz (bah! o teclado deste meu velho computador não me permite mais digitar o nome completo da minha terra).
Cá de cima, outra vez – agora cá de cima do avião – vejo a cidade piscando para nós, como um pirilampo. Perguntando quando voltaremos. Como se nos quisesse dizer que sentirá saudades, pensará em nós o tempo todo durante o qual estivermos longe. Respondo-lhe cantarolando ¿Quando setembro vier¿, aquela linda canção com Billy Vaughan em inglês e Wanderlea na versão em português. Voltaremos aos seus braços, então!