Criado um dia após sua morte, Casa de Memória Edmundo Cardoso completa 20 anos

Bernardo Abbad

Criado um dia após sua morte, Casa de Memória Edmundo Cardoso completa 20 anos
Meu pai foi uma figura, como muitos denominam até hoje, multifacetada. Ele fez muita coisa durante a vida – é assim que Gilda May Cardoso, 79 anos, define o pai, Edmundo Cardoso.

E a alcunha se justifica. O santa-mariense foi ator, diretor, jornalista, radialista, funcionário da Justiça, escritor, memorialista e responsável por deixar um grande legado para a cultura da cidade. 20 anos depois da sua morte, em 5 de dezembro de 2002, em função de problemas cardiorrespiratórios, a casa que ele comprou em 1944, na Rua Pinheiro Machado, número 2712, segue habitada, na forma de memorial e acervo que contam não só a história de Edmundo Cardoso, mas, principalmente, a de Santa Maria.

A Casa de Memória Edmundo Cardoso (CMEC) foi inaugurada praticamente no dia seguinte à morte de Edmundo, também em dezembro de 2002, e é administrada pela viúva do diretor, Therezinha Pires dos Santos, 82 anos, e pela filha, Gilda May Cardoso. O espaço, hoje uma entidade privada mantida pela família, continua com os cômodos, incluindo o escritório – lugar preferido de Edmundo – praticamente intactos e está aberto para visitas, mediante agendamento, e para pesquisas no rico acervo.

A CASA

Ao longo de suas atividades nas diversas áreas em que atuou, Edmundo reuniu e preservou em sua residência fotografias, jornais, revistas, livros, obras de arte, objetos e outros documentos que serviam como fontes de pesquisa aos interessados na história da cidade de Santa Maria. Gilda Cardoso conta que o pai tinha a perspectiva de deixar uma marca e então começou a montar um acervo porque imaginava que, no futuro, isso seria preservado:

– Desde guri, ele já juntava, guardava, preservava, documentos, fotografias, livros, obras de autores santa-marienses e coisas que o lembrassem da cidade. Tanto que, hoje, existe aqui, na casa, uma coleção importante de escritores santa-marienses do passado. Desde adolescente, ele entendia a importância disso.

Aos poucos, a enfermidade impossibilitou Edmundo de organizar e disponibilizar o seu acervo, momento em que houve um maior envolvimento de sua família que, após o seu falecimento, planejou a criação de um espaço de memória dedicado a ele.

A Casa de Memória Edmundo Cardoso (CMEC) foi criada no dia seguinte à morte do ator e mantém, até hoje, os mesmos cômodos que tanto serviram à Edmundo e sua família.

A equipe que ajuda a manter o local em pleno funcionamento é composta por Gabriel Dal Forno Leite e Matheus Fonseca Meller, coordenando o laboratório digital e o Clube de Cinema; Clara Kurtz, líder dos projetos e vice-presidente da Associação de Amigos da Casa de Memória Edmundo Cardoso (AACMEC); Serafina de Araújo Abreu, bibliotecária; Jovana Oliveira, historiadora; Bruna Silva Rodrigues, arquivista; e Elizabeti Lopes, voluntária.

A casa é dividida em três “seções”. Uma deles é o museu, que são os próprios cômodos da casa: sala, dormitório e escritório. Neles, é possível ver obras de arte, pinturas e mobiliário que ficam em exposição. O acervo museológico inclui objetos reunidos pelo próprio Edmundo ao longo de sua vida e doações da família e da comunidade santa-mariense em geral que retratam a história e a cultura da cidade ao longo do tempo. Por exemplo, objetos que pertenceram à antiga estação ferroviária de Santa Maria, como pratarias, lanterna de guarda-freio e telefones antigos de parede. Outra seção é o arquivo, onde se realizam pesquisas e estão preservados jornais e revistas. A biblioteca fica no escritório de Edmundo e é composta por mais de cinco mil livros.

Therezinha dos Santos conta que, quando conheceu a casa, ela já era assim da forma que é hoje, como um museu. Ela lembra que, na sala, hoje com suas paredes lotadas de quadros, incluindo um retrato dado pelo pintor e amigo Iberê Camargo, o marido sempre recebeu muitos alunos e pesquisadores diariamente, o que deixava a casa sempre cheia e viva.

Quando começou a conhecer o arquivo e a biblioteca que Edmundo já construía no escritório, Therezinha sentiu necessidade de ajudar a guardar e catalogar todo aquele material da casa. Logo, decidiu contratar uma bibliotecária para organizar os livros.

– Logo após eu fiz um curso de conservação de documentos, encantada com a riqueza de materiais e fotografias antigas que eu encontrei. Em 2000, houve a oportunidade de um curso da Unifra, de especialização em museologia e eu também fiz. O meu projeto de conclusão de concurso foi organizar uma casa de memória para homenagear o Edmundo Cardoso. Quando ele faleceu, dois anos depois, em 2002, eu e Gilda decidimos criar a Casa de Memória Edmundo Cardoso – conta a viúva de Edmundo.

Desafios

Therezinha reforça que é necessário muito trabalho para manter a instituição em pé. Por ser uma casa particular, o local não recebe subsídios. Apesar disso, ela lembra que, durante as duas décadas de funcionamento, muitas coisas boas foram realizadas na Casa de Memória Edmundo Cardoso. A pesquisa no rico acervo criado e cultivado pelo ator é frequentemente visitada por professores universitários, grupos de alunos e muitos pesquisadores de fora de Santa Maria, inclusive estrangeiros, principalmente em busca de material sobre a passagem dos judeus pelo Brasil e em Santa Maria.

O vasto material da Casa de Memória, tanto de fotografias, como de livros, revistas e jornais antigos, já possibilitou o lançamento de três livros. O primeiro foi A Arte Fotográfica e o Teatro em Santa Maria, em 2005, através da Lei do Livro da Câmara de Vereadores: um livro com o acervo que Edmundo tinha ganho do escritor Getúlio Schilling, que deixou muitas coisas boas escritas sobre o passado de Santa Maria. Em 2008, depois foi lançado Vivências e Memórias de Edmundo Cardoso, uma série de artigos e crônicas escritas por ele. Recentemente, para festejar o centenário de Edmundo, em 2018, foi lançado Edmundo que eu Conheci, que conta a história dele, do teatro e tem entrevistas com pessoas que o conheciam.

– Nessas duas décadas, para divulgar a Casa, realizamos exposições externas temporárias em vários locais, como a Câmara de Vereadores, a antiga Casa de Cultura que existia na época, muita escolas. A gente foi fazendo esse trabalho que é de divulgação e, ao mesmo tempo, é uma ação cultural – conta Therezinha.

Amigos da Casa de Memória

A Associação dos Amigos da Casa de Memória Edmundo Cardoso (AACMEC) foi criada em 24 de abril de 2015, com a finalidade de conduzir o interesse da comunidade na suplementação de carências administrativas, técnicas e culturais da Casa de Memória Edmundo Cardoso. Os associados contribuem com um valor anualmente. A comunidade pode participar da associação preenchendo um formulário disponível na CMEC. Também são aceitas doações, que podem ser feitas pelo telefone (55) 99204-7620 e pelo e-mail [email protected].

A primeira diretora foi a professora Fernanda Pedrazzi, Na mesma época, através da Lei de Incentivo à Cultura de Santa Maria (LIC-SM), já foi possível começar a fazer projetos, visando, principalmente, a digitalização dos jornais antigos, que não foi concluída ainda.

– Recentemente, fizemos projetos em escolas da periferia, trabalhando também outras questões, como a ecologia. É assim que ganhamos verbas para manter a Casa: realizando bons projetos. Agora, conseguimos verba para construir uma reserva técnica, para passar os objetos para lá. Tudo são conquistas com a intenção de manter a memória do Edmundo viva. Tudo que fazemos aqui lembra o Edmundo. Esperamos que permaneça sempre, por que de memória diversificada da cidade, acredito que seja o maior local – ressalta Therezinha.

Pela variada atividade cultural e pelos acervos bibliográfico, documental, iconográfico e museológico, essa instituição tem importância capital para a nossa cidade. Vejo, com gosto, a continuidade de sua obra, sob a liderança das fiéis sucessoras. Para escrever os livros Retratos & Memórias (2007) e Theatro Treze de Maio: um espetáculo de história (2016), além da coluna Imagens da História, no jornal A Razão (2007-17) e, agora, no espaço Plural e na página Memória, do Diário, servi-me da Casa para fotografias e informações. Em 2022, ano do 20.º aniversário dessa entidade, nela realizei pesquisas, frequentei o reativado Clube de Cinema, assisti a eventos, proferi palestra sobre Patrimônios Culturais daqui. A ela, meu reconhecimento e votos de contínuo êxito.

Luiz Gonzaga Binato de Almeida, arquiteto e produtor cultural

Conheço o acervo de Edmundo Cardoso desde 1998, quando pesquisei para o meu Trabalho Final de Graduação (TFG), no Curso de História (UFN), sobre Iberê Camargo. Recorri ao acervo novamente em 2001, quando escrevi um capítulo para um livro coletivo sobre cinema, em que falei acerca da película Os Abas Largas. Nessa ocasião, efetuei História Oral com o Edmundo Cardoso, que foi ator no filme. Na sequência, cursei Especialização em Museologia (UFN) com a então esposa de Edmundo, Therezinha de Jesus Pires Santos. Na ocasião, elaboramos conjuntamente a monografia da especialização, que seria o embrião do que veio a ser a Casa de Memória Edmundo Cardoso, em 2002. Para a dissertação de mestrado em História (PUC/RS), retornei à Casa (2001-2003), pois minha pesquisa foi sobre a Escola de Teatro Leopoldo Fróes, que Cardoso criou e dirigiu por 40 anos, encenando 40 peças (1943-1983). De lá para cá continuo mantendo uma ligação com a Casa, com a Therezinha e com a Gilda May Cardoso Santos, sua filha. A importância da criação e manutenção de espaços de memória é fundamental para a existência humana. O ser-humano é, a priori, um curioso acerca de seu passado, pois conhece-lo nos dá uma dimensão do porvir. Edmundo era a expressão dessa curiosidade e não poupava esforços no sentido de reunir material a respeito da história da cidade e da região. Tinha uma consciência ímpar da importância da preservação de documentos os mais variados, bem como de fotografias e obras de arte, visando a preservação da memória. Esse entendimento foi incorporado pelas organizadoras da CMEC, as quais concretizaram o projeto idealizado pelo colecionador.

Roselâine Casanova Corrêa, historiadora e professora

A Casa de Memória Edmundo Cardoso, as pessoas que ali exercem o seu ofício com excelência e o riquíssimo acervo merecem ser celebrados com vigor nesta data em que a instituição completa 20 anos. A existência do legado do patrono da casa é imenso estímulo para fomentar o surgimento e a formação de novas gerações de pesquisadores dedicados à investigação do passado de Santa Maria.

Valter Antônio Noal Filho, escritor e pesquisador da memória de Santa Maria

Talento multifacetado

Nascido em 29 de janeiro de 1917, Edmundo sempre foi, desde criança, apaixonado por teatro, cinema e literatura. Em 1943, ele fundou, junto a outros amigos, a escola de teatro Leopoldo Fróes, que durou até 1983. Uma entidade amadora, mas que marcou época na cidade e no Estado. Excursionou muito pelo Interior e, nos anos 1950, fez três temporadas no Theatro São Pedro, o que foi inédito na época, um grupo amador do interior fazer temporadas no São Pedro. Todas com bom público e boas críticas. Outra paixão era o cinema. Edmundo nasceu atrás do hoje Theatro Treze de maio, que, na época, abrigava o Diário do Interior, jornal onde o pai dele era tipógrafo e chefe. Ao lado, tinha o Cine Independência, onde hoje funciona o Shopping Independência. Então ele cresceu nessa zona bastante cultural desde os 5 anos.

Therezinha Santos e Gilda Cardoso contam que, na adolescência, um fato marcante foi que o pai de Edmundo acreditava que ele devia adquirir conhecimento convivendo com intelectuais da época. Então, ele passou a conviver com poetas, artistas, pintores, escritores da cidade que se reuniam ao redor da Praça Saldanha Marinho em vários cafés, um deles era o Café Guarani. Ele ia assistir aos encontros em silêncio, bebendo da sabedoria de toda aquela gente. Foi um tipo de aprendizado também. Depois de algum tempo, Edmundo começou a trabalhar no jornal, até virar repórter. Quando surgiu o jornal A Razão, ele foi convidado a assinar artigos. Escrevia sobe o cotidiano da cidade, assinava crônicas em conjunto com o Dr. Romeu Beltrão. Depois passou a assinar também com o pseudônimo Pigmaleão.

Nesse meio tempo, fazia teatro, associava-se e fundava entidades diversas em Santa Maria, como a associação dos serventuários da Justiça de Santa Maria e do Estado. Sempre escrevendo muito, Edmundo deixou livros, e um infindável número de crônicas e artigos. Foi aprovado na Academia Rio-grandense de Letras, ocupando a cadeira que foi de João Belém.

Edmundo casou-se em 1943, com Edna May Budin, com quem teve dois filhos: Gilda May e Cláudio. Edna atuou profissionalmente em diversas funções ligadas a área educacional e, inclusive, participou como atriz das atividades da Escola de Teatro Leopoldo Fróes.

No teatro, nos anos 50, começou a sentir a necessidade de fazer também teatro infantil. A escola Leopoldo Fróes foi pioneira em teatro infantil em Santa Maria. Em 1959, foi lançada a primeira peça de teatro infantil de Santa Maria, da qual a própria Gilda fez parte.

Legado

Foi premiado e homenageado várias vezes, ganhou o troféu Vento Norte, sendo o primeiro homenageado do SMVC, Como era amigo de infância do Dr. Mariano da Rocha ele também ajudou em atividades culturais na época da inauguração da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

– Como pai, ele era uma figura maravilhosa. Alegre e companheiro, mas também sabia ser exigente, e tanto como pai quanto no teatro. Fiz 22 anos de teatro sob direção dele e nunca tinha privilégio nenhum. Gosto de lembrar que até os presentes que ele dava ele teatralizava. Nos meus 15 anos, ele encheu a casa de flores que ele trouxe de Kombi da chácara de Salvador Isaía – relembra Gilda, emocionada.

Afilha relembra que, além de tudo que fez como escritor, ator, teatrólogo e memorialista, Edmundo ainda teve um programa na Rádio Imembuí por 10 anos nos anos 70, onde tinha uma crônica. Na época, as famílias almoçavam juntas e ouviam ao rádio, também dando dicas de assuntos que deviam ser comentados, além de reclamações, que Edmundo levava ao poder público e depois agradecia, quando eram solucionadas.

Em 1985, casou-se com Therezinha de Jesus Pires Santos, que o acompanhou por quase duas décadas. Edmundo faleceu em 5 de dezembro de 2002, aos 85 anos de idade.

Ao ser perguntada sobre o que o pai falaria, se pudesse ver a casa que comprou e morou por tanto anos, transformada na Casa de Memória Edmundo Cardoso, Gilda prontamente responde:

– Ele ficaria muito feliz. As palavras exatas eu não sei, porque ele era multifacetado até no falar. Mas tenho certeza que ficaria muito feliz de ver que esse sonho que ele tinha já é mantido por 20 anos. Ele gostaria imensamente de saber disso.

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