“Parece bobagem para quem está acostumado, mas para quem nunca se viu em uma tela de cinema, é de uma importância muito grande.” O ano era 2018 e o primeiro filme de super-herói indicado ao Oscar de Melhor Filme contava a história de uma poderosa nação africana. Quem a liderava era o herói Pantera Negra, que dá título ao filme.
A historiadora, pesquisadora e mestranda em História Taiane Anhanha Lima, mulher negra, reforça o quão representativo foi ter um filme cuja maioria dos personagens eram negros e negras em posições de poder, por mais que isso tenha demorado a acontecer. Para ela, o fato influencia, sobretudo, na autoestima:
– Lembro que, enquanto criança, não via bonecas negras, não via pessoas negras na televisão, então vem acontecendo essa mudança muito grande que ajuda na nossa representatividade. É muito especial vermos mulheres negras fortes como a personagem da atriz Viola Davis no filme A Mulher Rei.
Celebrar e pensar
Desde 2003, o dia 20 de novembro é reconhecido em todo o território nacional como Dia da Consciência Negra. A data foi escolhida, dentre outros motivos, por coincidir com o dia atribuído à morte de Zumbi dos Palmares, líder quilombola brasileiro que lutou pela libertação do povo contra o sistema escravista e morreu em 1695. A data é uma ocasião para refletir sobre questões raciais, relembrar as lutas e conquistas, além de celebrar a cultura do povo negro.
Para celebrar a data e refletir sobre as questões da população negra, a Revista MIX amplia a voz de personalidades de Santa Maria de diversas áreas. São professores, estudantes, ativistas sociais, produtores culturais, pessoas do mundo do direito, da moda e do carnaval, que compartilharam suas percepções sobre representatividade e consciência negra.
Perguntamos a elas quais dificuldades são encontradas em suas respectivas áreas de atuação, se as pessoas brancas que os cercam têm consciência dos privilégios e, principalmente, como enxergam a representatividade negra na cidade de Santa Maria atualmente.
Um nome importante para o Movimento Negro, Vilnes Gonçalves Flores Jr., o Nei D’Ogum, teve sua trajetória de ativismo relembrada por Carmem Lucia Coelho Chaves, a Baiana. De acordo com a amiga, Nei era um negro que nunca se deixava abater, porque, dentre outros motivos, acreditava na luta diária.
Para além da mídia
Taiane menciona que a representatividade dentro da cultura é, sim, importante porque gera, também, formação de um público interessado em conhecer e consumir histórias de pessoas negras, feitas por negros.
– Anteriormente era mais comum vermos nas telas, principalmente pensando nas infâncias, somente homens e mulheres brancas e hoje percebemos uma diferença significativa, embora lenta, nesse sentido.
Contudo, Taiane Lima reforça que Santa Maria precisa de mais investimento para que a população negra possa mostrar tudo que tem, não só na cultura, mas em áreas como pesquisa e educação, por exemplo.
– Sabemos o quanto a cidade e o Estado se colocam como locais de uma história muito branca, mas existem santa-marienses negros. Pessoas que nasceram aqui e são daqui. Então, é preciso valorizar isso para que essas pessoas possam ser, efetivamente, vistas e outros negros enxerguem nisso uma representatividade e queiram se somar à luta para combater o racismo.
Conforme Taiane, no poder público, é necessário ter cada vez mais vereadores negros para levar as pautas e questões da comunidade negra.
– Na UFSM também precisamos ter mais professores negros. Então, para além das questões culturais importantes, também é preciso representatividade nas questões intelectuais.
Maria Rita Py Dutra
74 anos
escritora, mestra em Ciências Sociais e Doutora em Educação
A importância da representatividade é que ela é estimulante, motivadora e inspiradora. Quando uma criança negra chega na escola e se depara com a professora da mesma cor da pele, com os cabelos pretos, com um fenótipo parecido com o seu, isso dá alegria, isso motiva. Acredito que desde os anos iniciais até o nono ano, ela está construindo sua identidade. De repente, poderá até descobrir que aquela professora frequenta o culto afro. Não precisa falar, ela chega com uma pulseira ou uma guia colorida idêntica ao que a vovó ou a mamãe usa em casa. Isso aí fortalece a construção da identidade da criança.As dificuldades que eu percebo estão na ausência de representatividade negra em muitos campos, não só de conhecimento. Na minha pesquisa, vários estudantes me disseram “eu nunca tive um professor negro”.Nós não temos professores negros. E aí tu vai. A criança está doente, não tem médicos negros, dentistas negros. Eu comecei a frequentar uma farmácia no centro onde tinha um farmacêutico negro porque eu me identificava. É muito necessário que nós estejamos repartindo os espaços de poder com as demais etnias. Infelizmente, no nosso país os espaços de prestígio ainda são ocupados pelos decentes de senhores de escravo. Aí o povo negro, afrobrasileiro não se vê, não se enxerga. Até na Igreja, quantos padres negros tu conhece? E aqui em Santa Maria, quais são os secretários negros que nós temos? Santa Maria não é uma ilha. É Brasil. O racismo estrutural se reproduz aqui. Nos falta representatividade. Começando por mim, sou professora estadual e em toda a minha carreira, de 30 e tantos anos, eu tive duas colegas negras. Na universidade, pergunta para um professor de medicina que tenha 30, 40 anos de carreira quantos estudantes negros ele formou. Essa invisibilidade é tão grave que essas pessoas não se dão conta de que elas estão em um espaço sem negros.
Carmem Lucia Coelho Chaves (Baiana)
60 anos
artesã e amiga de Nei D’Ogum
O Nei era um negro com a autoestima muito elevada, porque acreditava na luta, no trabalho diário, na militância diária para mulher, para negro, para gay, para os terreiros, para a comunidade periférica… Ele via a luta no sentido positivo, de muita construção. Já faz 6 anos que o Nei morreu, e o processo ainda continua muito lento, mas avançando sempre. O que ele pensava eu também penso. Acabamos de conseguir que o dia do Nei D’Ogum fizesse parte do calendário de Santa Maria. Ele encontrava apoio nas pessoas negras, não negras, mulheres, homens, gays. Tanto que quando o Nei fez a passagem dele, essas mesmas pessoas que andavam junto com ele na luta estão carregando hoje a militância que o Nei deixou. Falar de movimento social, de militância, na periferia, na educação, se não falar o nome de Nei D’Ogum em Santa Maria, está negando uma história. O Nei conseguia abrir esses espaços de educação, de saúde, de moradia. Ele foi uma das primeiras pessoas a lutar pela cota racial dentro das universidades. Mesmo ele tendo morrido, ele abre caminhos para essas lutas.
Mayara Leme
25 anos
acadêmica de Direito, modelo e influencer
Todo esse mundo da beleza é muito novo para mim porque ele não é feito para mulheres negras, embora estejamos avançando lentamente nesse quesito. O que mais me motivou a participar de concursos de beleza foi a representatividade. De mostrar que toda a mulher é um padrão de beleza, que não existe somente um tipo, principalmente no Rio Grande do Sul, um Estado “pseudo-europeu” no qual a beleza só é vista nos cabelos e olhos claros. Estar num concurso com a maioria de participantes sendo mulheres brancas, como o Miss Santa Maria, foi bastante desafiador, mas quebrou alguns tabus. Eu acredito que não tem como medir a beleza das pessoas, porque todos são bonitos, com suas particularidades. Mas eu estar participando de concursos assim, enquanto uma pessoa ativa na militância negra, estar ali dentro foi, sim, para causar um desconforto. A presença de uma mulher preta retinta, periférica, macumbeira ocupando um espaço que não tem uma figura preta sempre, como esse, foi pra trazer uma outra beleza, um outro “padrão”.
Gustavo Rocha (Afroguga)
38 anos
ativista social antirracista e pesquisador na UFSM
Ser uma pessoa negra é se afirmar a todo tempo, pois sabemos que o erro para nós pesa mais. A população negra é maioria, mas ainda não nos vemos representados como devemos ser. As empresas precisam ser antirracistas de fato. A consciência do privilégio elas têm, pois quando falamos em racismo, já direcionam para nós. Mas, muitas pessoas ainda ignoram e negam o racismo. Poucas pessoas tentam avançar na luta antirracista. As pessoas não negras precisam ultrapassar esse estágio e começar a agir, para além de reconhecer privilégios. O que você, pessoa branca, faz com seu privilégio? Em Santa Maria me incomoda muito entrar nos bares centrais e não ver pessoas negras em quantidade. Há uma segregação, mas isso não é falado. Sempre que chego aos espaços, faço o exercício do pescoço e procuro negros e negras. Isso também tem que ser um exercício da branquitude.
João Heitor Silva Macedo
46 anos
historiador, arqueólogo, escritor e gestor cultural
A vivência desde a formação acadêmica em espaços hegemonicamente brancos me levaram a situações de racismo desde a infância, ou seja, toda essa estrutura histórica que foi formatada, principalmente, no pós-abolição, acabou determinando um tabu sobre a questão do racismo e sepultando as mazelas da escravidão à uma estrutura de desigualdade social e racial muito grave. O racismo sempre me atravessou. Mesmo me tornando professor, pós-graduando, essa questão é bastante latente, na medida em que ainda me considero e sou visto como estando num lugar que não é meu. Em muitos lugares onde trabalhei, quando me apresentava como professor, era surpreendente quando aparecia um homem negro. Nas relações pessoais também estar em alguns lugares considerados consagrados para a população branca fazem com que o racismo se torne cada vez mais forte. A representatividade, hoje, tem uma percepção maior pelo restante da sociedade. As novas gerações estão sendo educadas para a diversidade e para o reconhecimento de sua própria identidade. O fortalecimento dessa identidade permite que haja o protagonismo de pessoas negras em vários setores da sociedade. Além de ser um processo contínuo, ele tem a visibilidade, por exemplo, dos veículos de comunicação, dos setores de ensino e políticos. Na representatividade, ainda somos minoria, mas há uma visibilidade, hoje pautada por pessoas com postura e algo para falar em vários setores que fazem com que a negritude seja reconhecida como um pilar formativo do Brasil. Ela existe à medida em que vemos hoje crianças, jovens e adultos falando de África com orgulho, diferente do que víamos na minha geração, onde não valorizamos nosso cabelo, nossa cor de pele. Hoje, falar de ancestralidade é motivo de orgulho. Ver pessoas falando de África como sendo seu lugar de origem tem feito a diferença para chegarmos nessa semana e estarmos revendo nossa própria consciência histórica para essa identidade. Ela é mais do que uma identidade de uma etnia, é humana, na qual todos nós podemos nos reconhecer como parte desse todo.
Isadora Bispo
37 anos
advogada
Na advocacia, a questão do racismo estrutural é muito mais latente. Eu era uma das poucas jovens negras no curso de Direito. A sociedade está estruturada de tal maneira que ela impede que olhem para mim enquanto mulher negra como profissional da advocacia. Não vejo avanço na representatividade em Santa Maria. Ainda somos uma pequena parcela. Apesar de termos várias negras e negros pulsantes, referências e grande profissionais, com destaque até internacional, ainda somos minoria, tendo que agir de forma enfática para garantir espaços que nos são de direito. É só olhar o entorno e perguntar quantos negros estão em cargos de gestão e poder? Ainda percebo a negação da existência do racismo em Santa Maria. Ao não ter a pauta racial nos centro de grandes debates para mudanças sociais, estamos sendo coniventes. É preciso que toda a sociedade tenha consciência da participação fundamental da população negra, ainda mais ter consciência da necessidade de reparação para que possamos falar de fato em igualdade.
Elen Ortiz
33 anos
musicista, maestrina e professora de música
Na música existem diversas possibilidades de atuação. Geralmente as pessoas me vêem e consideram que eu seja cantora de samba ou pagode. Imaginam que eu tenha um vozeirão e pedem que eu cante Alcione. Não que isso não seja verdade,muito pelo contrário, mas é um estereótipo. Dentro do universo da regência, o mais complicado é demonstrar conhecimento, de que você é qualificado para ocupar a função de regente. Já ouvi de um colega meu que eu só tinha oportunidade de estar em um determinado espaço por eu ser uma mulher negra, uma vez que isso dava certo “destaque”, e não pela competência. Algumas pessoas não-negras compreendem o espaço distinto que ocupamos, mas a maioria não se importa com isso. Somos poucos na música, se comparados com o efetivo total de pessoas que atuam na área. Além disso, ocupamos espaços com poucas condições de acesso a lugares melhores, então, precisamos ser estratégicos. Buscar qualificações, fortalecer parcerias que nos façam crescer e criar oportunidades.
Sérgio Silva
67 anos
policial federal aposentado e presidente da escola de samba Vila Brasil
No meu trabalho, quase que não tinha esse preconceito até porque eu era um policial. Ninguém vai afrontar um policial em termos de racismo. Já aconteceu, mas, em Santa Maria, que era minha base, quase nunca sofri esse tipo de discriminação. Eu sei que, em outros lugares, ocorre isso muito forte. Mas aqui, até pelo meio social que eu vivia, essa discriminação ocorreu algumas vezes, mas muito discreta. É claro que as pessoas brancas têm muito mais privilégios em quase todas as camadas sociais. Para dar um exemplo, na nossa política em Santa Maria, a Câmara de Vereadores, que é a casa do povo, tem somente dois negros, um titular e uma reserva que é a Maria Rita Py Dutra. A parte negra que é quase 50/50 em Santa Maria, logo não ficou bem representada. Até na nossa universidade, professores negros são poucos. Essa é uma luta que o povo negro vem fazendo há anos e, hoje em dia, deve ser feita na base. Crianças negras muitas vezes param seus estudos para ajudar em casa e não voltam mais para a escola, não tendo como se qualificar para o mercado de trabalho. Então, nossa luta não é nem mais pelas cotas, é para que a criança negra consiga chegar até os anos universitários.
Alcione Flores do Amaral
69 anos
professora e tradutora
Sou de um tempo bem pior, de quando começamos o Movimento Negro aqui em Santa Maria. Eu tinha 16 anos. Graduei-me em Letras, Português e Inglês, pela UFSM e atuei como professora. Sou ligada à escola de samba Vila Brasil, meu pai é fundador, mas não sou ligada a cultura gaúcha porque nós negros não podíamos entrar em CTG. Eu não tive essa vivência e nunca tive um vestido de prenda. Não é que não me importe. Sei que nasci no Rio Grande do Sul, que a cultura é importante, mas ela não faz nada comigo. Fui fazendo minha própria vida, fui me autodefendendo e trabalhando. Virei professora, mas sempre fiquei ligada à tradução. Um dia alguém me ligou buscando tradução para o filho. Ele foi na minha casa, eu abri a porta do prédio e ele falou para mim “ela saiu?”, eu disse “como?”, ele “a tradutora saiu?”, eu respondi: a tradutora não saiu, porque ela sou eu. Aí você vê o racismo. Assusta-me a quantidade de casos nacionais e internacionais. Acredito que esteja pior. Passei por cima de tudo isso e tive que largar o Movimento Negro, porque alguns jovens não aceitavam pessoas de mais idade.
Alice Carvalho
26 anos
psicóloga
Uma das grandes dificuldades e frustrações na minha área de atuação começa na nossa formação universitária. Pouco ou quase nada se fala sobre relações étnico raciais, adoecimento psíquico de pessoas pretas e os efeitos psicossociais do racismo. Então, se queremos saber mais desse assunto que é tão importante, especialmente no Brasil, temos que buscar por conta. Isso afeta como psicólogos(as) lidam com questões raciais na clínica. Algumas pessoas do meu convívio compreendem a desigualdade racial que vivemos e, de alguma forma, se mobilizam pra contribuir na luta antirracista. Mas, há quem não tenha consciência e como militante creio que é um pouco do nosso papel ser pedagógica com quem está disponível para aprender. Em Santa Maria vejo que nós ocupamos bastante espaços e de maneira positiva ou contundente. Mas ainda não estamos ou somos poucos em espaços institucionais, de poder e decisão. É algo que precisa mudar!
Sérgio Marques
33 anos
relações públicas e presidente do Conselho Municipal de Política Cultural
Uma das grandes dificuldades e frustrações na minha área de atuação começa na nossa formação universitária. Pouco ou quase nada se fala sobre relações étnico raciais, adoecimento psíquico de pessoas pretas e os efeitos psicossociais do racismo. Então, se queremos saber mais desse assunto que é tão importante, especialmente no Brasil, temos que buscar por conta. Isso afeta como psicólogos(as) lidam com questões raciais na clínica. Algumas pessoas do meu convívio compreendem a desigualdade racial que vivemos e, de alguma forma, se mobilizam pra contribuir na luta antirracista. Mas, há quem não tenha consciência e como militante creio que é um pouco do nosso papel ser pedagógica com quem está disponível para aprender. Em Santa Maria vejo que nós ocupamos bastante espaços e de maneira positiva ou contundente. Mas ainda não estamos ou somos poucos em espaços institucionais, de poder e decisão. É algo que precisa mudar!