reportagem especial

O que Santa Maria oferece de cultura para quem não ouve e quem não vê

Camila Gonçalves e Pâmela Rubin Matge*


Quando o assunto é acessibilidade, não são apenas por condições adequadas de mobilidade que reivindicam as pessoas com deficiência. O acesso a diferentes manifestações culturais também é necessidade para quem está rodeado de tecnologia, mas ainda enfrenta barreiras para consumir conteúdo artístico.

Promover cultura para quem não ouve e para quem não vê, por exemplo, não só é possível, como já está determinado em lei. Teatros, shows, e salas de cinema são espaços que têm regras específicas para acomodar e disponibilizar o acesso às obras exibidas com ajuda de recursos e equipamentos.

Em Santa Maria, há cerca de um mês, uma rede de cinemas passou a oferecer 12 aparelhos que ajudam deficientes visuais ou auditivos a consumirem a sétima arte. Porém, a cidade ainda peca em aspectos básicos. Há muitas ruas, calçadas, imóveis públicos e privados que carecem de adaptações arquitetônicas. São buracos ou lajotas quebradas que oferecem risco à segurança de quem trafega por ali.

Segundo especialistas e os próprios usuários apresentados ao longo desta reportagem, junto à melhoria de aspectos estruturais, é necessária uma mudança gradativa de comportamento. Somente com a compreensão coletiva e com o exercício da empatia é que a inclusão cultural será, de fato, uma realidade.

- O Cinema Azul, ação para incluir os autistas na sala de cinema em Santa Maria, já foi muito importante e se espalhou por todo o Estado. Mas, agora, é preciso que as pessoas aceitem a diferença. Na rede tradicional de cinemas ainda enfrentamos dificuldades. Em contrapartida, há ótimas iniciativas como a do Banrisul, com o Festival de Cinema Acessível: Veja, Ouça, Sinta, em parceria com a Cia do Som e da Luz, que trazia janela de Libras e audiodescrição. Foi um projeto até premiado pela ONU - menciona Paulo Cesar Freitas, advogado especialista em Direitos do Deficientes.

 CIDADE DEVE FOMENTAR E  PRESERVAR ESPAÇOS  DE ARTE

Foto: Renan Mattos (Diário)

O acesso à cultura é amplo e se desdobra em diferentes vertentes. Vai da sétima arte a outras manifestações artísticas sediadas nas ruas e em diversos estabelecimentos. Em Santa Maria, muitos já tentam inserir recursos que comuniquem peças teatrais a quem não ouve ou enxerga. Porém, ainda há um longo caminho a percorrer.

A Associação dos Amigos do Theatro Treze de Maio, por exemplo, informou que, nos últimos anos, algumas peças teatrais já foram apresentadas com intérprete de Libras.

Quanto à acessibilidade arquitetônica, o teatro oferece elevador para pessoas com dificuldades de locomoção, que levam do térreo para o mezanino, onde há espaço para cadeirantes. Há lugar para até quatro cadeiras de rodas. As peças infantis que reúnem escolas são as que mais preenchem os espaços. Conforme a diretora do Theatro, Ruth Péreyron, nunca faltou lugar para os cadeirantes.

Ainda, conforme a associação, "há outras melhorias a serem realizadas, de modo que as barreiras sejam reduzidas ou eliminadas".

Ruth conta que em 2019, apenas duas peças tiveram o recurso: Pequeno trabalho para velhos palhaços, da Cia Stravaganza, de Porto Alegre, e Terra à vista, da Cia Armazém, daqui da cidade.

A arte urbana também se revelauma fonte de consumo cultural. Daverlan Dalla Lana, 26 anos, é músico, professor da rede municipal e do Colégio Marista Santa Marta. Para ele, espaços que promovam diálogos possíveis entre a comunidade surda, cega e pessoas que não têm deficiência é fundamental. A propósito foi ele quem ajudou a escrever uma frase em braille em uma parede na Rua Alberto Pasqualini, no centro da cidade, há dois anos. A iniciativa integra do projeto Acción Poética, da professora argentina Marcela Echeverría, que distribui poemas em muros. Contudo, o único muro com a escrita está pichado. Os pontos em braille que formam a frase "sem poesia não há cidade" foram arrancados, e a calçada por onde quem tem deficiência visual acessa para tocar a obra está em péssimas condições.

- A calçada está toda quebrada, começa por aí. E aquele era o único espaço com braille na rua. Era importante justamente para mostrar as diferentes formas de comunicação (são frases em 11 idiomas). Santa Maria precisa evoluir muitos nesses cuidados - analisa Daverlan.

Foto: Renan Mattos (Diário)

DEMOCRATIZAÇÃO DA LEITURA
A produtora cultural Rose Carneiro, da empresa santa-mariense Chilli Produções, que organizou eventos como a Feira do Livro de Santa Maria e está à frente da programação do Viva o Natal, diz que entende a relevância da Lei Brasileira de Inclusão (LBI). Entre as ações da Chilli, estão a Mala de Leitura, que leva livros literários a escolas públicas e instituições de Santa Maria. Uma das participantes é a Escola Estadual de Educação Especial Dr. Reinaldo Fernando Cóser, que atende alunos surdos. A primeira língua dos alunos é Libras, não são todos que são alfabetizados em português. O aprendizado do português leva mais tempo, em função da audição. Então, as ações com os livros da Mala envolvem a leitura e a tradução para Libras por parte dos professores e também dos alunos que já são alfabetizados em português.

Durante a Feira de Leitura, no ano passado, ocorreram as maratonas de leitura. Em uma delas, um aluno surdo leu e traduziu histórias em Libras, enquanto uma professora intérprete traduzia em português, e um professor cego fez a leitura de livros em braille para o público de estudantes.

- Uma integração importante é a que envolve trabalhar a diferença não como deficiência, mas como diferença. As crianças ouvintes e que enxergam tiveram uma oportunidade de entender o outro, de conhecer as limitações de alguém que não ouve ou não enxerga. Foi muito rico e gratificante - diz Rose.

Neste ano, das 40 bancas da 46ª da Feira do Livro de Santa Maria, apenas uma oferecia livros em braille. Dos títulos disponibilizados, todos eram de literatura infantil.

LEI EXIGE CINEMAS EQUIPADOS ATÉ JANEIRO DE 2020
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) determina que as salas de cinema devem oferecer, em todas as sessões, recursos de acessibilidade para pessoas com deficiência.

Conforme a educadora Jéssica Jaíne Marques de Oliveira, professora da Faculdade Integrada de Santa Maria (Fisma), o Decreto 5.296, de 2004, considera, para fins de acessibilidade, a eliminação de barreiras urbanísticas, nas edificações, nos transportes, nas comunicações e informações. As regras seguem a Norma Técnica (NBR) 9.050 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).Já a Agência Nacional do Cinema (Ancine), responsável por regular e fiscalizar o mercado do cinema e do audiovisual no Brasil, diz que as salas de exibição comercial deverão dispor de tecnologia assistiva, como recursos de legendagem, legendagem descritiva, audiodescrição e Língua Brasileira de Sinais (Libras).

Os serviços estão condicionados à existência dos recursos na obra e à quantidade de equipamentos. O cumprimento, segundo a normativa, deve se dar em todas as salas de cinema até 1º de janeiro do ano que vem. Para microempresa e empresa de pequeno porte, inclusive microempreendedor individual, o prazo de adaptação se estende até 12 de junho de 2020.

O número mínimo de equipamentos e suportes individuais varia. Para locais com uma sala de exibição, é preciso, no mínimo, três equipamentos. Para cinemas com mais de 20 salas, a exigência é de, no mínimo, 15 equipamentos para acessibilidade visual e auditiva.

Paulo, Cesar Freitas, advogado especialista em Direitos dos Deficientes, acrescenta pessoas com deficiência que se sintam prejudicadas podem exigir que cinema disponibilize os equipamentos. A Ancine oferece o e-mail ficacalizaçã[email protected] e o telefone (21) 3037-6340.

RECURSOS EVOLUÍRAM, MAS AINDA SÃO LIMITADOS

Foto: Renan Matos (Diário)

Caroline Fagundes Domingues, 27 anos, formada em Administração pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), é surda e é uma das pessoas que enfrentam na prática as barreiras de comunicação nas salas de cinema. Apesar de ter uma vantagem que muitos na comunidade surda não têm, que é o fato de ser alfabetizada e pode assistir filmes com legenda em português, muitas das obras ficam fora do alcance dela.

- É um ou outro filme que consigo assistir. Os nacionais, por exemplo, é impossível, porque eles nunca têm legenda. Já reclamei muito sobre isso - conta Caroline.

Ela e o namorado Willian da Motta Brum, 35 anos, professor de Libras na Unipampa São Borja, que também é surdo, costumam ir ao cinema com o filho dele de 6 anos. Como os filmes para o público infantil raramente são legendados, nem todo mundo tem a mesma experiência. O filho de Willian é ouvinte. Recentemente, o trio foi assistir o filme Turma da Mônica: Laços. Como a obra não tinha legenda, o casal ficou sem entender.

- As crianças surdas que vão ao cinema assistir alguma coisa só vão ver as bocas se mexendo - lembra Caroline.

O casal reclama que outras atividades do shopping são inacessíveis. Eventos de Natal e de Páscoa, por exemplo, não têm intérpretes de Libras.

- Ajudaria se tivesse intérprete. A gente teria mais segurança. Há surdos que não têm noção do português, só da Libras- diz.

Ainda que os cinemas oferecessem legenda para todas as obras, os surdos ficariam prejudicados, pois a legenda para o público em geral é diferente da chamada legendagem descritiva. O recurso inclui informações de efeitos sonoros, música, sons do ambiente, silêncios significativos e aspectos paralinguísticos do discurso perceptíveis pela entonação ou pela emissão de sons não verbais - como choro ou riso -, bem como a identificação dos falantes.

Caroline testou os novos equipamentos disponibilizados pelo Cinépolis. Ela assistiu trechos do filme Homem Aranha - Longe de Casa com o equipamento que parece uma tela de celular que fica acoplada na cadeira. A experiência deixou a desejar, segundo ela:

- Achei interessante a janela em Libras, a tradução e interpretação simultânea, mas, por um lado ficou ruim prestar atenção no filme e na tela do celular, onde tem o intérprete fazendo a tradução do filme. Fica melhor ter a janela em libras ao lado, na própria tela do cinema. Pelo celular, a gente não consegue focar na ação do filme na tela.

Ela conversou com o Diário por meio Icom, uma central telefônica de tradução simultânea para a qual as pessoas podem ligar gratuitamente para solicitar uma chamada. A pessoa surda liga para a central e fala com um intérprete por vídeo chamada ao mesmo tempo em que o intérprete traduz o que é dito por telefone para o destinatário da ligação. A equipe da central também traduz para Libras o que é dito pela pessoa ouvinte do outro lado da linha.

NA CIDADE

Foto: Renan Mattos (Diário)

No Shopping Praça Nova, a Cinépolis disponibiliza desde o dia 15 de junho, 12 celulares com tecnologia para audiodescrição, legenda descritiva e legenda em Libras. A informação é da gerência local da rede de cinemas. Já a Arcoplex, do Royal Plaza Shopping, informou que dispõe de espaços livres reservados para pessoas com deficiência e acessibilidade para chegar até as salas e poltronas e que a equipagem das salas de cinema com recursos de legendagem, legendagem descritiva (também conhecida como closed caption ou legenda oculta) e audiodescrição deve chegar dentro do prazo estipulado por lei.

Em relação aos equipamentos para o Centro de Eventos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), a Coordenadoria de Ações Educacionais (CAEd) já discute a possibilidade de adquirir estes recursos. Até o momento, nenhum espetáculo ou show contou com intérprete de Libras ou legenda no telão.

EDITAIS EXIGEM ACESSIBILIDADE
Marcos Lara, diretor da Cia Teatral Santa-mariense Casa das Artes, lembra que editais como os do Sistema Pró-Cultura e da Lei Rouanet exigem que os projetos inscritos apresentem medidas de acessibilidade, porém, não limitam quais. Para Marcos, além de espaços reservados como poltronas e estrutura adequada para mobilidade, cabe a cada diretor optar sua forma de tornar mais acessível o consumo da arte apresentada. O espetáculo Kiriku - A Lenda do Menino Guerreiro, por exemplo, contou com intérprete de Libras em uma das apresentações, em Passo Fundo. A peça já passou por Santa Maria e outras cidades da região.

- Como um espetáculo trabalha possibilidade do improviso, o que eu optei, por ser mais viável, foi trazer um tradutor de Libras. Isso é importante para que as pessoas não fiquem limitadas a eventos da sua comunidade (surda), mas que possam ir a todos lugares. Isso proporciona mais interação - analisa.

TECNOLOGIA PARA ACESSAR O MUNDO VISUAL

Foto: Gabriel Haesbaert (Diário)

A servidora pública Fernanda Taschetto, 42 anos, diz que, mesmo sem enxergar, frequenta cinemas, teatros e casas de show. Para isso, conta com a ajuda de amigos que atuam como ela mesma chama de "sussurradores", descrevendo as imagens que estão nas telas ou nos palcos e que são importantes para o pleno entendimento da obra, já que os produtos culturais, em sua grande maioria, não são pensados para pessoas com deficiências e, portanto, não possuem recursos de acessibilidade.

Toda a linguagem que foge ao som: as características dos personagens, ações, cenários e todos os efeitos visuais que compõe e enriquecem uma obra são negados aos cegos quando não existe o recurso para torná-las acessíveis, a audiodescrição. Ela conta que nunca foi a uma peça de teatro que disponibilizasse o recurso da audiodescrição. No cinema, teve acesso a filmes audiodescritos somente em sessões provenientes de projetos e que foram exibidos na Cooperativa dos Estudantes de Santa Maria (Cesma).

Em casa, assiste a filmes audiodescritos disponibilizados em sites como o Youtube e Portal Cegos Brasil.

- Alguns filmes disponibilizados na internet vêm sem a imagem, somente com o áudio original da obra e a audiodescrição - conta.


Fernanda, além de usuária do recurso da audiodescrição por ser cega, também atua profissionalmente na área. Ela integra a Comissão de Audiodescrição da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

- Como usuária do recurso, sei da importância que ele tem na minha vida, trazendo o mundo visual até mim. Como profissional, sei da responsabilidade que tenho em avaliar uma audiodescrição para que seja disponibilizada aos outros usuários - diz.

Sobre a diferença de estar diante de uma obra com audiodescrição, ela explica:

- A audiodescrição, além de tornar os produtos culturais acessíveis, também os torna muito mais ricos e interessantes para nós. Nem sempre os diálogos dos personagens e os sons originais são suficientes para o pleno entendimento do que se passa na tela ou no palco. As cenas, imagens e efeitos visuais são muito significativos, e a audiodescrição faz a tradução de tudo o que pode ser visto em palavras, para que nós, pessoas cegas, possamos formar uma imagem mental a partir delas.

CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR

Foto: Gabriel Haesbaert (Diário)

A convivência e a sociabilidade são apontadas por Marli Terezinha Schmitt, 70 anos, vice-presidente da Associação de Cegos e Deficientes Visuais de Santa Maria como um dos primeiros passos para inclusão cultural. Para ela, são necessárias melhorias físicas para chegar até os locais, bem como que pessoas com quaisquer deficiências sejam mais conhecidas:

- Para nós, que não "enxergamos" as diferentes formas de cultura, fica bem difícil. Teatro é quase impossível, cinema não é sempre que entendemos, pois a audiodescrição não vem para qualquer filme. Quando vou a um show ou a uma livraria sozinha, preciso ligar antes e saber se vai ter alguém para me atender e me orientar. As pessoas parecem que tem medo da aproximação. Por meio da associação, gostaríamos de participar mais de eventos, conscientizar as pessoas sobre as diferenças para que todo mundo possa conviver normalmente. E isso deve começar na escola. Algumas oficinas já estão até sendo feitas - exemplifica Marli.

*Colaboraram Gabriele Bordin e Rafael Favero

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