reportagem especial

Do caos à recuperação, relatos de quem convive ou superou o alcoolismo em Santa Maria

Pâmela Rubin Matge

Foto: Eduardo Knapp/ Folhapress

A alteração que pode encorajar, mascarar a timidez e esquecer momentaneamente do pior dos problemas também pode levar ao descontrole emocional, à ruína pessoal e profissional. Não raro, dependentes de álcool caem em depressão. As consequências do alcoolismo, porém, não são isoladas e respingam no núcleo familiar. A propósito, é considerado o maior gatilho da violência doméstica e dos crimes de trânsito no país. Socialmente aceitável e fortemente estimulado, o consumo de bebidas alcoólicas cresce e preocupa. Dados de uma pesquisa do Ministério da Saúde divulgadas na última sexta-feira apontam aumento no consumo abusivo de álcool no Brasil. Entre 2006 e 2018, o índice de brasileiros que afirmam tomar mais de quatro a cinco doses em uma mesma ocasião cresceu 14,7%.O aumento é puxado principalmente pelas mulheres _entre elas, o crescimento no período foi de 42,9% (índice passou de 7,7% para 11%). Entre eles, a variação foi de 4,8% (passou de 24,8% para 26%).

Foi pela naturalização do consumo e o desconhecimento dos riscos do álcool que Evandro* se viu em condições degradantes durante quase três décadas. Sem consumir bebidas alcoólicas há quase seis anos, ele é uma das pessoas ilustradas na reportagem especial do Diário deste fim de semana. a matéria também propõe uma reflexão acerca do alcoolismo, mostra os riscos, as alternativas para quem procura tratamento, a necessidade de romper o preconceito em relação ao tema e os serviços oferecidos no município.

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Campanhas de conscientização aparecem, sobretudo, época do Carnaval ou durante o Maio Amarelo, movimento internacional de conscientização para a redução dos acidentes de trânsito. Paradoxalmente, não há um dia sequer o consumo do álcool não seja naturalizado e incentivado por meio de um outdoors, pela televisão, em eventos sociais e até mesmo dentro de casa. 

_ O álcool está muito inserido na rotina das pessoas. O caso do esportes: não pode-se consumir nos estádios, mas no intervalo dos jogos, os principais comerciais são de cerveja, times são patrocinados por marcas de cerveja. Está no imaginário coletivo essa ideia de sucesso. Isso estimula também o consumo precoce. Em outros países, a gente vê que há horários e leis estabelecidas para adolescentes, por exemplo. Se já existe uma vulnerabilidade genética, quanto mais se usa precocemente, mais se induz o gatilho para dependência. As taxas de dependência de alcoolismo estão estáveis, mas o consumo abusivo aumentou , o que não vai demorar para aumentar (a médio e longo prazo) o número de dependentes _ analisa o médico-psiquiatra e aposentado da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Carlos Alberto Machado Nascimento.

Alerta por meio do Cage

O Cage, que tem na classificação americana de transtornos mentais, é um instrumento validado no Brasil desde 1983, sendo um dos questionários mais rápidos e e indicados pela Associação Médica Brasileira (AMB).

1 _ Você já tentou diminuir ou cortar ("Cut down") a bebida?

2 _ Você já ficou incomodado ou irritado ("Annoyed") com outros porque criticaram seu jeito de beber?

3 _ Você já se sentiu culpado ("Guilty") por causa do seu jeito de beber?

4 _ Você já teve que beber para aliviar os nervos ou reduzir os efeitos de uma ressaca ("Eye-opener")

A presença de duas respostas afirmativas sugerem uma indicação positiva de dependência de álcool

 EXPERIÊNCIA DE RECUPERAÇÃO COMPARTILHADA

Foto: Renan Mattos (Diário)

A chuva torrencial que caía em Santa Maria na noite de mais uma terça-feira não impediu que nove pessoas deixassem suas casas para mais um encontro redentor, como os próprios participantes denominam. Todos que ali estavam compartilhavam de objetivos em comum: manterem-se sóbrios por mais um dia e ajudar outras pessoas com o mesmo problema. Aquela era mais uma reunião de um dos grupo dos Alcoólicos Anônimos (AA). A reportagem do Diário acompanhou dois encontros. Trechos dos relatos dos participantes  (abaixo) tiveram a publicação permitida.

Durante a reunião da terça que durou cerca de duas horas, os participantes atestavam trajetórias transformadas e outras em processo de mudança. Um recém-chegado trazia a voz embargada e lágrimas.

Naquela noite, como em qualquer outra reunião, a tradição do AA parecia ser mantida: não interessam sobrenome, gênero, profissão, religião, classe social ou ligação partidária. É por isso que o anonimato se justifica e se ampara na prerrogativa que todos são iguais, que o ambiente é protegido e ninguém sofre julgamentos ou exposições. Todos que participam _ seja há um dia ou há 30 anos _ têm como único requisito o desejo de parar de beber. Não há lista de frequência, recrutamento ou acompanhamento de seus membros, que podem comparecer uma única vez. Não há hierarquias, apenas coordenadores em sistema rotativo _ a cada três meses _ para que não acumule tempo e para que seus interesses pessoais não interferiram sobre os demais. O propósito é compartilhar experiências, seja por fala ou mera escuta. O AA é autossuficiente e não aceita doações ou parcerias.

Algumas pesquisas e artigos científicos já questionaram o modelo terapêutico e a eficácia do AA. Contudo, a recuperação de dependentes químicos, seja isolada ou paralela a psicoterapias e ao uso de medicamentos, também tem publicações reconhecidas pela medicina.

Histórico
O AA surgiu em Akron, nos Estados Unidos em 1935. Funciona com base no Programa de 12 passos, 12 tradições e 12 conceitos pra recuperação individual contra o alcoolismo fundamentando-se no anonimato de seus membros. Está presente em 180 países. Em solo gaúcho, são cerca de 400 grupos

Para participar do AA
Não é necessário agendar, pagar mensalidades ou taxas. As reuniões servem para auxiliar as pessoas que querem combater a dependência em bebidas alcoólicas. Informações sobre as atividades desenvolvidas pelos coletivos no Estado podem ser obtidas pelo telefone (51) 99114-4162. Em Santa Maria, são cinco locais: 

  • Grupo Bravura - Avenida Rio Branco, 880, em prédio anexo à Igreja Episcopal. Nas segundas e sextas-feiras, às 19h30min
  • Grupo Orientação - Rua Euclides da Cunha, 1.885. Nos domingos, terças quintas-feiras e domingos, às 19h30min
  • Grupo Alvorada - Rua Inácio Teixeira Cezar, 187, na Paróquia Nossa Senhora da Glória, no Bairro Camobi. Nas quartas-feiras, às 19h30min
  • Grupo Recuperação - Avenida Paulo Lauda, 705, no Centro Comunitário da Cohab Tancredo Neves. Nas quartas-feiras, às 19h30min
  • Grupo Serenidade - Avenida Borges de Medeiros, anexo à Igreja São José. Aos sábados, às 18h

Outros grupos

  • Familiares e Amigos de Drogaditos - Na Avenida Euclides da Cunha, nº 1.885, anexo ao Conselho Municipal de Entorpecentes (Comen) - Bairro Dores. Nas quintas-feiras, às 20h
  • Familiares e Amigos de Alcoólatras - Na Avenida Euclides da Cunha, nº 1.885, anexo ao Conselho Municipal de Entorpecentes (Comen) - Bairro Dores. Nas terças e domingos, às 19h30min
  • Narcóticos Anônimos (N.A) - Grupo Despertar Rua acampamento, esquina com Rua Tuiuti. Informações - (55) 99148-7685

Os relatos dos frequentadores dos grupos

Foto: Renan Mattos (Diário)

"A coisa mais importante que eu ganhei foi minha liberdade de escolha. eu posso escolher o que fazer. Hoje eu não posso dizer nunca mais, mas eu já consigo escolher entre beber e não beber "

"O pior é que sabemos que é uma droga socialmente aceitável, bonita e atraente. Qualquer esquina vende e todo comercial de TV exalta. Mas quando álcool vira problema, torna-se a droga da negação, que quase toda família lida, mas morre de vergonha admitir"

"Eu me achava sempre certo e só queria "beber socialmente", mas não sabia que tinha cruzado essa barreira fazia tempo" 

"O pior é que sabemos que é uma droga socialmente aceitável, bonita e atraente. Qualquer esquina vende e todo comercial de TV exalta. Mas quando álcool vira problema, torna-se a droga da negação, que quase toda família lida, mas morre de vergonha admitir "

"Eu me achava sempre certo e só queria "beber socialmente", mas não sabia que tinha cruzado essa barreira fazia tempo "

"Na ativa do alcoolismo, eu cheguei a ponto de olhar para o campo e ter ciúmes de um cavalo. Ele tinha paz, eu não. A família não tinha me abandonado, mas eu me excluí. Me encerrava para beber, pois sentia vergonha de mim mesmo"

"Consigo admitir que é uma doença, a qual sabemos que é lenta, progressiva e fatal. Não é fácil vencer, mas hoje quando olho minha vida, o alcoolismo fica no retrovisor "

"Até quatro anos atrás, eu não tinha limites. era daqueles que bebia e virava um monstro, agressivo com as pessoas depois davam os apagões. Fui preso e tive vários processos por lesão corporal, graças a Deus, estão arquivados "

"Cheguei em um fundo de poço, que estava por perder meu emprego. O álcool me tolhia tudo: trabalho, família, amigos. Fui para uma clínica. Depois vim para o AA onde me encontro há 24 anos. Readquiri a pior coisa que eu havia perdido: minha dignidade"

"FUI SALVA PORQUE ALGUÉM ME PEGOU PELA MÃO", DIZ MULHER QUE ENCONTROU AJUDA EM GRUPOS DE AA

Foto: Renan Mattos (Diário)

Foi a convite de um sobrinho que a diarista Solange*, 48 anos, foi parar em um grupo do Alcoólicos Anônimos (AA). Desde de maio de 2012 até hoje, nunca mais uma gota de álcool tocou sua boca. A vitória contra o alcoolismo foi tamanha que, hoje, Solange chega a frequentar dois grupos de AA em bairros da cidade bem distantes um do outro. O que ela quer é ajudar outras pessoas, pois acredita que quando alguém está "doente", mal consegue "raciocinar". Ela refere-se à própria história, quando estava condicionada a cumprir tarefas básicas, já pensando em beber a próxima cerveja:

- Hoje, sem álcool, me sinto transformada e agradecida. Posso dizer que tenho vida. Porque antes, eu estava "fora", não enxergava mais nada. Eu achava que "sabia beber" e me ofendia se me questionassem. Eu, alcoólatra? Jamais! Mas, abria os olhos de manhã e pensava: cerveja! Gastava muito com mototáxi e ia parar em uns locais estranhos nem sei como. Era só festa, minha casa era cheia de gente, mas não de amigos. Uma vez, alcoolizada, caí da moto e cortei feio a cabeça. Acordei ensanguentada, mas nem dei bola, não sentia nada. Até que dia fui salva porque alguém que me pegou pela mão. Foi meu sobrinho que levou eu e minha filha no AA. Eles também tinham problemas com álcool e outras drogas. Ela, infelizmente, recaiu e não quer se ajudar. Me culpo, pois começamos a beber juntas.

 Romper preconceitos

O médico-psiquiatra Carlos Alberto Machado Nascimento ressalta importância de um apoio - clínico e emocional - bem como o rompimento de preconceitos:

- Muitas vezes, o estigma é dentro da família. Tem gente que associa a falta de responsabilidade e caráter e não como uma doença. Não se trata de vitimizar ninguém mas, em algum momento, o dependente não vai mais conseguir resolver e precisa de assistência. 

*Nome fictício, pois a entrevistada pediu para  não ser identificada

PROCURE AJUDA!
Além do trabalho dos grupos, o acolhimento ou encaminhamento dados as pessoas que têm problemas com alcoolismo pode ser por meio Unidades Básicas de Saúde (UBS), Estratégia Saúde da Família (ESF) e Centro de Atenção Psicossocial (Caps), que também atende a demandas espontâneas. Em UBS/ESF, o paciente receberá avaliação médica e, em casos mais difíceis e de média e alta complexidade, será encaminhado ao Caps Álcool e Drogas (AD). As duas unidades especializadas são o Caps AD II Caminhos do Sol (Rua Euclides da Cunha, 1.695, telefones 55-3921-7144 e 3921-7281) e o Caps AD II Cia do Recomeço (Rua General Neto, 579, telefone 55-3921-1099). 

Segundo a superintendência de Comunicação Social da prefeitura, o município também com a regulação do Estado para comunidades terapêuticas e internações voluntárias e compulsórias. Segundo a política de Atenção Psicossocial do Município, "no que se refere a produção do cuidado junto a sujeitos que têm problemas na relação com álcool e outras drogas, não se trabalha com foco nas substâncias e, sim, no sujeito e seu território de vida, na restauração das relações com as pessoas e as coisas, ampliando a rede de vida e apoio, de cuidado e relação por meio de projetos terapêuticos singulares. Entendendo os danos coletivos e sociais que podem ser produzidos numa relação exclusiva com alguma substância e, também, que o "problema das drogas" é um sintoma coletivo e social das relações , o foco é acessar, por meio de práticas acolhedoras na rede, a causa destes problemas/sofrimentos e articular a rede de cuidado mais adequada para cada situação, envolvendo acompanhamento pelos serviços territoriais de saúde, articulação com outros setores e internação hospitalar, quando necessário".

A prefeitura não disponibiliza de um levantamento acerca do número de pessoas que lutam contra o álcool e que passam pelos Caps.

O Hospital Universitário de Santa Maria (Husm) chegou a se referência em oferecer um serviço psiquiátrico para o tratamento do alcoolismo. Porém, desde 2012, o Serviço de Recuperação de Dependentes Químicos (Serdequim) foi extinto.

Foto: Renan Mattos (Diário)

É TRATÁVEL, MAS NÃO TEM CURA
O álcool é considerado um droga psicotrópica, pois atua no sistema nervoso central e pode causar dependência levando ao alcoolismo, uma doença crônica, comparável ao diabetes e à asma. Conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS) é doença porque o dependente tem compulsão pelo álcool, com grande necessidade ou vontade incontrolável de beber, sem capacidade de parar sozinho. Há dependência física, com a ocorrência de sintomas de abstinência, quando se pára de beber depois de um período bebendo muito.

As causas podem estar relacionadas a um conjunto de fatores com conflitos sociais e familiares associados ou não a bagagem genética (filho de pai ou mãe alcoólatra tem quatro vezes mais chance de ter doença).

A curto prazo, acontecem os problemas sociais e ocupacionais, provocando o distanciamento da pessoa com o seu meio. A longo prazo, podem surgir problemas orgânicos, como complicações cardiovasculares, neurológicas (demência e perda de memória), hepáticos (cirrose), gastrointestinais (úlceras) e até câncer de boca e esôfago.

Embora o alcoolismo seja tratável, não há cura. Mesmo que o dependente esteja sóbrio por anos e com saúde, ele está suscetível a recaídas e deve continuar evitando a bebida. Para se tratar, é preciso abstinência total, ou seja, parar é fundamental. 

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