Cidadania

Afinal de contas, o que são os Direitos Humanos?

Tatiana Py Dutra


Arte: Paulo Chagas (Diário)

"Uma arma do povo". Esse era o slogan do Aqui Agora, programa que estreou, no SBT, em maio de 1991, fazendo nascer um prolífico filão jornalístico na TV: o policialesco. Boa parte de seu conteúdo era reportagens que acompanhavam sequestros, tiroteios e perseguições policiais mostradas ao vivo. O sucesso do programa foi tão grande que emissoras concorrentes criaram suas próprias versões da atração. Algumas existem até hoje.



O êxito do formato pode ser explicado pelo inesgotável desejo de "justiça" de uma parcela expressiva da população que se sente cada vez mais insegura com o avanço do crime, o recrudescimento de uma cultura da violência, de ódio e de intolerância, que, não raro, encontra eco no "fazer justiça com as próprias mãos". Para esse público ávido por vingança e punição, advogados de defesa e ativistas dos Direitos Humanos se tornaram empecilhos à execução da lei, considerada lenta, pouco rígida e efetiva.
Para essas pessoas, a violência é justificada, e os abusos são aceitos (e desejados) sob justificativa do controle da ordem, independentemente da averiguação dos fatos e da observância das garantias constitucionais, como a da ampla defesa. Por essa razão, para esse segmento, a expressão Direitos Humanos" se tornou a antítese da justiça. Inclusive e, paradoxalmente, inclui-se nesse grupo uma desembargadora que, como integrante do Poder Judiciário brasileiro, deveria zelar pela Constituição Federal e, por consequência, pelas garantias e direitos humanos.

COM AS PRÓPRIAS MÃOS

Ilustrativamente, em dois casos emblemáticos acompanhados, recentemente, pela reportagem do Diário, a crença dessas pessoas se manifestou de forma contundente: o assassinato do garçom Gilberto Mendes e de seu filho, Gabriel, no último 3 de março, em Santa Maria; e a execução da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, na capital do Rio de Janeiro, no dia 14.
Centenas de comentários nas redes sociais pediram a morte do atirador da Rua Floriano Peixoto (que acabou morrendo, possivelmente de overdose, um dia depois do crime); ao passo que, no caso da parlamentar, houve quem justificasse a sua morte, já que ela "apoiava bandidos" - numa referência ao trabalho de Marielle na garantia dos Direitos Humanos, inclusive e, paradoxalmente, junto a uma magistrada do Poder Judiciário brasileiro, a quem caberia zelar pela Constituição Federal e, por consequência, pelas garantias e Direitos Humanos.



Esse tipo de pensamento, que beira a desumanidade, demonstra a desconfiança (e o desconhecimento) do brasileiro em relação ao maior mecanismo de defesa do cidadão. E não é só no "calor da hora" que ele se manifesta. Nos dias 18 e 20 de março, o Diário entrevistou 20 moradores de Santa Maria e fez a pergunta: "O que são Direitos Humanos e para que servem?". Alguns disseram, em tom de crítica, que era uma "instituição para defender bandidos". Também houve quem, em tom de censura, fizesse questão de lembrar que "todos são iguais e têm os mesmos direitos". E temos mesmo.

PARA TODOS



O coordenador do Núcleo de Segurança Cidadã da Faculdade de Direito de Santa Maria (Fadisma), Eduardo Pazinato, adverte que é necessário romper a falsa dicotomia entre "cidadão de bem ou não", "nós e eles", na medida em que as implicações dos Direitos Humanos somente será possível a partir da sua integralidade. Por essa razão, o artigo 6º do texto constitucional elenca uma série de direitos e garantias humanas, a exemplo do direito à saúde, à educação e à segurança, que conferem uma obrigação de observância ao Estado e à cidadania como um todo.  

Conforme Pazinato, associado pleno do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os Direitos Humanos são indivisíveis e se referem a aspectos essenciais da dignidade humana, que constituem o núcleo de todo o ordenamento jurídico do país e da Organização das Nações Unidas (ONU). Assim, para citar um exemplo, valem tanto para a vereadora assassinada como para os 31 policiais mortos violentamente no Rio de Janeiro até a última quarta-feira. E não há contradição nisso. Pelo contrário.
Nesta reportagem, especialistas em Direito, Segurança e Direitos Humanos contam sua história, especulam os motivos da descrença popular e buscam por saídas para essa realidade.

O QUE É?

A ignorância sobre o conceito de Direitos Humanos não faz distinção de escolaridade ou classe social. Toda vez que alguém usa os termos "entidade", "comissão" ou "o pessoal" para falar deles, você já pode desconfiar que a pessoa não sabe bem do que está falando. Isso porque Direitos Humanos são um conjunto de garantias jurídicas básicas, ou seja, leis, que devem ser reconhecidas e estendidas a todos os seres humanos.
- Em nossa Constituição Federal, eles estão descritos em vários momentos, mas, especialmente, no artigo 5º, que tem 78 incisos. Quando falamos em Direitos Humanos, estamos nos referindo ao direito que as pessoas têm de acesso à Justiça, à saúde, à educação, à segurança e a tantas outras dimensões da vida digna nas sociedades modernas. Por isso, ninguém que tenha dois neurônios pode ser contra os Direitos Humanos, porque isso equivaleria a ser contra a civilização - avalia Marcos Rolim, doutor em Sociologia, consultor em Segurança Pública e Direitos Humanos. 
Segundo o especialista, a história da humanidade é repleta de sociedades sem esses direitos. O período de dominação nazista na Alemanha (1933-1945) foi um deles. O stalinismo da antiga União Soviética (1924-1953) é outro exemplo.
- A experiência totalitária do século 20 foi erguida sobre as ruínas dos Direitos Humanos. Não por acaso, a ONU é formada depois da 2ª Guerra Mundial, produzindo, já em 1948, sua Declaração Universal dos Direitos Humanos - explica Rolim.
O Brasil entrou com muito atraso na era dos direitos, que, no resto do mundo, deu seus primeiros passos ainda no século 16, na esteira da Revolução Francesa. Mas, antes da Constituição de 1891, essa questão era ignorada por aqui.
- Nossa legislação sempre foi liberal, e o liberalismo no Brasil é de base conservadora. O Brasil, mesmo independente, mantém a escravidão, o que contradita o liberalismo clássico, antiescravista por natureza. Aqui, os senhores escravocratas defendiam o livre comércio. Então, nascemos como país com os direitos limitados, o direito dos proprietários. A Constituição de 1891 incorpora algumas coisas, mas mais sobre direitos individuais. Não prevê, por exemplo, o acesso a terra. Os negros foram libertos, mas muitos sem trabalho. Já a de 1946, por ser reflexo da 2ª Guerra, é a mais ampliada em matéria de direitos sociais até então. Mas o primeiro governo, o de Dutra, pouco a cumpre. O governo Dutra é tão ditatorial quanto o de Getúlio Vargas - explica o doutor em História Social do Trabalho Diorge Konrad, professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
A Constituição de 1988, que completa 30 anos em outubro, amplia os direitos sociais, assegurando sua primazia diante dos individuais. É dela que vem, por exemplo, a lei que permite desapropriações para a reforma agrária ou para o bem comum. 
- Desde então, no Brasil, há uma parcela da população que tem acesso a informação e abomina os direitos sociais porque acredita que não são universais. Os trabalhadores, influenciados por esse discurso reacionário, o repetem. A própria relativização da importância da vida ou da morte de uma pessoa é um sopro fascista - acredita Konrad.

QUEM TEM MEDO DOS DIREITOS HUMANOS?

O Brasil começou a ouvir essa expressão em meados da ditadura militar, com as denúncias de tortura que começaram a aparecer na imprensa alternativa e quando surgiram os Comitês pela Anistia, as Comunidades Eclesiais de Base e as primeiras organizações independentes da sociedade civil empenhadas na volta da democracia. Segundo o sociólogo Marcos Rolim, a primeira onda de aversão a esses direitos veio no final dos anos 70, quando já estava claro que a ditadura iria terminar. Veio do receio de militares e policiais que haviam se envolvido com a repressão ilegal, especialmente os responsáveis pela tortura e pelo desaparecimento de presos políticos. 
- Eles imaginavam que poderiam ser punidos pelos seus crimes e que a militância em Direitos Humanos exigiria isso. Essa turma passa, então, a construir um discurso contrário, que aparece, inicialmente, em programas populares de rádio, como o de Afanasio Jazadji, na Rádio Globo de São Paulo. Ele foi o pioneiro desse tipo de programa "mundo cão" que explora notícias sobre violência e chegou a ter mais de um milhão de ouvintes por minuto. Com seu sucesso, ele virou deputado estadual por 20 anos - relembra Rolim. 
Com a volta da democracia, diz Rolim, algumas polícias tiveram dificuldade de se adaptar. Não podiam mais fazer prisões sem ordem judicial; a tortura a suspeitos poderia render processo e prisão, bem como mortes fora dos limites legais. 
- Para a velha guarda das polícias, acostumadas com as máquinas de choque, a culpa só podia ser dos tais dos "Direitos Humanos". Grande parte da imprensa brasileira, especialmente dos setoristas que cobriam polícia, comprou esse discurso anti-humanista, reforçando, em escala industrial, os preconceitos e o atraso cultural da população. De lá para cá, surgiram centenas de programas que transformam a violência em espetáculo, sempre com grandes audiências. A mentira foi ampliada e, no Brasil, como se sabe, a mentira tem pernas compridas - afirma Rolim.  Na opinião do coordenador do Núcleo de Segurança Cidadã da Fadisma, Eduardo Pazinato, esse preconceito se disseminou entre a população, chegando ao ponto da ojeriza de hoje.
 Esse sentimento se retroalimenta da carência ou até da ausência de políticas públicas de segurança e de Justiça, do aumento dos sentimentos de insegurança e medo, sempre irracionais:
- As pessoas acham que, de um lado, temos "os Direitos Humanos" que são imputados a bandidos, e, de outro, os "direitos das vítimas". Em verdade, do ponto de vista teórico e prático, não existe essa divisão. Os Direitos Humanos são uma garantia fundamental baseada no respeito à dignidade humana, independentemente da trajetória individual das pessoas.



RESSENTIMENTO

Porém, na avaliação de Percival Puggina, professor da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra, os cidadãos estariam ressentidos porque pessoas, grupos sociais e entidades públicas e privadas "se apropriaram do tema numa perspectiva que a sociedade rejeita", com "motivações políticas, ideológicas e econômicas".
- Refiro-me, por exemplo, ao empenho de elencar entre esses direitos as reivindicações de grupos sociais que só encontram realização contra direitos alheios, sendo o aborto, talvez, o mais eloquente. É preciso não desconsiderar as políticas de desencarceramento, de redução e abolição de penas, as demasias do Estatuto da Criança e do Adolescente, as leis de cotas, e a lista extensa de "direitos" que confrontam direitos de propriedade.           

HÁ SAÍDA PARA A SENSAÇÃO DE INSEGURANÇA?

"O Brasil está parecendo a Síria", escreveu uma leitora na fanpage do Diário no Facebook quando da morte dos Mendes, no início do mês. O desabafo ignora o fato de que ataques daquele tipo são uma raridade em Santa Maria. Mas, e de onde vem a sensação de insegurança que leva o cidadão a esse tipo de percepção? O delegado regional de Polícia Civil, Sandro Meinerz, culpa a mídia e as redes sociais.
- As pessoas veem TV, leem jornais, ouvem rádio, acessam redes sociais e encontram com uma violência que não é daqui, mas do Brasil todo e até do Exterior. A violência entra dentro das casas dessa forma e causa essa sensação de impotência. As pessoas se sentem vulneráveis - diz. 

As estatísticas estão a favor da afirmação de Meinerz. Os indicadores de furtos e roubos a pedestres, carros, residências e veículos, em Santa Maria caíram de 2016 para 2017. Os homicídios, porém, aumentaram, mas o delegado faz uma ressalva:
- Quem morre são pessoas que têm ligações com o tráfico ou outros ilícitos e assumem esse risco. Ainda assim, nosso índice de resolução de homicídios está entre 85% a 90%, que é maior que o dos Estados Unidos.

Para o comandante do 1º Regimento de Polícia Montada (1º RPMon), tenente-Coronel Erivelto Hernandes, a atuação das polícias gaúchas, baseada no respeito às leis, não deixa margem para conflitos com os Direitos Humanos. Porém, entende que, em outras partes do país, a relação entre polícia e militantes dos Direitos Humanos se deturpou. Para ele, há desvalorização do policial militar.
- A polícia brasileira é a que mais mata, mas também é a que mais morre. Nenhuma polícia no mundo tem tantos embates com criminosos armados. Os Direitos Humanos não percebem - argumenta o comandante.
O professor Percival Puggina faz coro com Hernandes:
- A população repudia, com razão, a criminalização da atividade policial, o constrangimento que isso produz sobre tão necessária e perigosa profissão e a inequívoca preferência que muitos defensores dos ditos "Direitos Humanos" têm por criminosos.



A JUSTIÇA SOLTA?

"A polícia prende, e a Justiça solta", é outro discurso corrente. Especialistas, porém, não estão de acordo com a ideia de que falta rigor para punir os criminosos. O delegado Meinerz, em diz que entre janeiro e fevereiro, a Polícia Civil, sozinha, efetuou 94 prisões na região. E de 1994 a 2017, o Brasil aumentou sua população carcerária de 143 mil para 728 mil, segundo o Departamento Penitenciário Nacional.
Para Pazinato, o receituário que prevê mais leis penais e mais prisões vem sendo eficientemente cumprido pelo Estado. Mas não é socialmente eficiente.
- São necessárias políticas de segurança pública com foco na repressão qualificada e no controle da criminalidade, combinadas com políticas de prevenção das violências, promoção das juventudes, etc - explica.
Na avaliação do especialista, os Direitos Humanos são o próprio Estado em ação. Isso porque é obrigação do poder público garantir a dignidade dos cidadãos, e, quando há algum obstáculo a ele, fazer cessar a prática de violência, com a rigorosa responsabilização do seu autor:
- É por essa razão que o Estado estruturou um sistema de segurança e Justiça formado por polícias, Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia e Poder Judiciário, para fazer cumprir a lei, nos marcos de um Estado Democrático de Direito, o que pressupõe o respeito às regras do jogo, previstas na Constituição. O contrário disso é a barbárie. É preciso para prevenir, e não apenas punir.



E X P E D I E N T E

reportagem
TATIANA PY DUTRA

vídeos
CHARLES GUERRA
GABRIEL HAESBAERT
TATIANA PY DUTRA

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