reportagem especial

A história dos irmãos com doença rara atendidos pelo serviço de home care

Pâmela Rubin Matge

Foto: Renan Mattos (Diário)

Apelar à Justiça para continuar lutando pela sobrevivência de forma digna não é opção, mas a única alternativa para milhares de pessoas que se submetem a esperas que nem sempre têm o desfecho desejado. São pedidos de medicamentos, fraldas, dietas, equipamentos e internações. Há, ainda, um serviço àqueles pacientes que precisam de tratamento ininterrupto, não necessariamente dentro de hospitais, mas sob cuidados domiciliares especializados. É o já chamado home care.

Dados da Secretaria Estadual da Saúde, por meio da assessoria de comunicação, informam que, somente em Santa Maria, são 21 pacientes com contratos vigentes, além de dois com processos já em tramitação para contratação e outros dois na fase de instrução do processo. Os pacientes têm de 2 a 90 anos. O custo mensal, que sai dos cofres do governo, é de R$ 212.267 (dos contratados) e R$ 20 mil (dos em andamento). Para as pessoas que precisam do serviço, porém, o ônus da espera é imensurável e pode valer uma vida.

O cenário chama atenção já que, em 2018, Santa Maria foi a cidade que mais judicializou ações de saúde no país. A informação veio à tona em um evento de lideranças ligadas à Justiça e às procuradorias municipais, na Antônio Meneghetti Faculdade, em Restinga Sêca, onde trataram sobre a "Judicialização dos Serviços de Saúde". A informação foi sentenciada pelo desembargador Martin Schulze, à época, coordenador do Comitê Estadual de Saúde.


Nesta reportagem, mostramos o caso de duas famílias. Uma teve decisão favorável há um ano e hoje usufrui do home care, e outra que, no mesmo período, lutava pelo atendimento de três irmãos. Um deles morreu durante o processo. 

Em Santa Maria*

  • 21 contratos vigentes
  • 2 processos em tramitação para contratação do serviço
  • 2 em fase de instrução do processo
  • R$ 232 mil (por mês) dos cofres do Estado

*Com informações da Secretaria Estadual da Saúde

Foto: Pedro Piegas (Diário) 

HOME CARE
Há cerca de um século, o home care tem sido uma prática recorrente nos Estados Unidos, local no qual surgiu a forma de atendimento associado à noção de conforto. No Brasil, o serviço, viabilizado judicialmente, está tentando se estabelecer há duas décadas. A palavra "home" significa "lar" e "care" traduz-se por "cuidados". Portanto, a expressão deve ser compreendida como uma modalidade contínua de serviços na área de saúde, com ação de manter ou restaurar a independência do paciente trabalhando de forma especializada na residência do mesmo. Entre os atendimentos pontuais, estão os de fisioterapia, fonoaudiologia, nutricionista ou de aplicação de medicação via endovenosa e intramuscular. Em outros casos, dependendo da gravidade, há presença de um técnico de enfermagem na residência por 12 ou 24 horas por dia. 

No país, que se debruça sobre a necessidade de reforma da atenção hospitalar, a proposta dessa modalidade - que atende determinações da Anvisa - deve ser criteriosa devido aos altos custos aos cofres públicos. Vale esclarecer que uma empresa que oferece apenas os serviços de enfermagem ou outro serviço na área de saúde em domicílio não é uma empresa de home care, pois para isso, é preciso atender aos protocolos do Estado. Do mesmo modo, equipes de Estratégia Saúde da Família (ESF) também não são home care, embora atendam em domicílio e utilizem de protocolos semelhantes.

"JÁ ESTAVA SEM ESPERANÇA E RECEBI A LIGAÇÃO QUE MUDOU TUDO"

Foto: Pedro Piegas (Diário) 

A ex-esposa, três das cinco netas e os dois filhos do aposentado Carlos José da Costa, 65 anos, tiveram um diagnóstico em comum: a doença Machado-Joseph, uma moléstia hereditária, neurológica e rara, que causa a perda do equilíbrio e da coordenação motora. É decorrente de uma mutação genética no cromossomo 14 e, por conta do caráter degenerativo, os sintomas podem evoluir para dificuldades ao engolir e alterações na fala e na visão.

Em Cristiano Marcirio Lima da Costa e Ediano Leonel Lima da Costa, de 39 e 41 anos, filhos de Carlos, a doença se manifestou no início da idade adulta. Em ambos, os sintomas começaram com tombos frequentes durante partidas de futebol e culminaram em quedas mais graves em simples movimentos do dia a dia. Hoje, nenhum deles fala, os dois se alimentam por sonda e são cadeirantes. O mais velho chegou a cursar até o penúltimo semestre do curso de Informática, mas teve de parar por conta de complicações da doença.

Nos últimos oito anos, o quadro clínico da mãe dos rapazes, também portadora de Machado-Joseph se agravou e ela não teve mais como cuidá-los. Coube ao pai, assumir a responsabilidade de cuidar dos filhos e da ex-mulher.

- Os guris eram casados e as esposas largaram. As três filhinhas do Cristiano têm a doença. A minha ex-mulher era filha única e ficou sozinha. E, nesta hora, não tem parente ou amigo que assuma isso com a gente. Eram três pessoas em cadeiras de rodas, banho, consultas, comida, tudo comigo. Para ir ao Husm, por exemplo, onde eu consegui fisioterapia de graça, eu tinha de fazer duas ou três viagens no mesmo dia. Deixava um, voltava de ônibus e buscava o outro. Ano passado, a mãe deles faleceu e, hoje, só peço que Deus me dê saúde para eu continuar nessa luta. Amo muitos meus filhos. Eles só têm a mim, e eu só tenho eles - desabafa o pai.

Foto: Pedro Piegas (Diário) 

A rotina do aposentado, que ainda é totalmente dedicada aos filhos, mudou há cerca de um ano. Depois de procurar a Defensoria Pública Estadual, por meio da defensora Ana Carina Teixeira Dal Ponte, ele buscou pelo serviço de home care. Foram meses correndo atrás de documentações e driblando prazos judiciais.

- Tu não faz ideia do quanto corri. Precisava de atestados, de três orçamentos de cada serviço e mais os papéis do banco. Aí, eu não tinha com quem deixar os guris. Eu estava à beira do desespero. Há anos, não sabia nem o que era dormir uma noite inteira. Já estava sem esperança e recebi a ligação que mudou tudo - conta.

No dia 6 de abril de 2018, Costa recebeu a ligação de que a documentação estava aprovada e o serviço de home care garantido. No outro dia, 7 de abril, a mãe dos rapazes faleceu.

Atualmente, os filhos conseguem ter o mínimo que necessitam, conforme orientações médicas. São duas técnicas em enfermagem, uma para cada um 24 horas, uma fonoaudióloga e uma fisioterapeuta de segunda a sexta-feira, uma terapeuta ocupacional duas vezes na semana e um psicólogo quatro vezes ao mês. A maior demanda é por fraldas. Segundo o aposentado, o material é disponibilizado pela 4ª Coordenadoria Regional de Saúde(4ª CRS), mas, desde dezembro, está em falta.

"SE FOSSE MAIS CUIDADO PODERIA ESTAR VIVO"

Foto: Renan Mattos (Diário) 

Alda Julia Silva Siqueira, 62 anos, é divorciada e por algum tempo dividia o pátio com duas irmãs e um irmão, que viviam em casas separadas. Há 10 anos, o irmão Onerio Antonio da Silva sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC) e há um ano morreu. Há três anos, outra vez um AVC tirou a mobilidade e a visão de Santa Clara da Silva, 79 anos, a mais velha dos quatro. Há dois, foi a irmã Maria Antonia da Silva Rodrigues, 70 anos, que por após ficar dias internadas por conta de uma cirurgia na vesícula perdeu parcialmente o movimento das pernas e hoje convive com problemas de artrose e tireoide. Ocorre, que Alda se viu sozinha tomando conta dos três irmãos e vivendo em um local de difícil acesso para transporte e longe de hospitais ou unidades de saúde. Com orientação de uma advogada particular, tenta há um ano conseguir o serviço de home care. Durante o processo, que já foi indeferido duas vezes, o irmão acabou morrendo. 

- Não tinha como ter um tratamento adequado. a gente fazia o que dava, mas precisava ser virado de lado, cuidava. Um dos fatores que causaram a morte foi água no pulmão, pois ficava parado. Os médicos nos disseram que a fisioterapia ajudaria nisso. Se ele tivesse sido mais cuidado, poderia estar vivo. Pediram um monte de papéis e nunca é suficiente. Falaram em falta de estrutura, mas ultimamente os três, saíram da casa de madeira e vieram morar aqui - conta Alda.


Foto: Renan Mattos (Diário) 

A saga de Alda, que também necessita de cuidados médicos, pois é hipertensa, inclui a luta na Justiça e a ginástica para despesas em casa, já que as duas irmãs contam com cerca de um salário mínimo. Eventualmente a filha e uma cuidadora que cobra R$ 300 por mês ajudam na parte da tarde. O tratamento das duas irmãs também o acompanhamento adequado.

- A Santa teve um AVC faz 10 anos e só consultou duas vezes no neurologista. A Maria precisa de psiquiatra e de uma nutricionista, mas mal temos como ir ou como pagar um "executivo" (carro particular) - lamenta.

Foto:Renan Mattos (Diário) 

Advogada relata falta de critério
Márcia Muhlbaier Berghahn, advogada família, considera os processos de home care burocráticos e até com uma certa falta de critérios por parte do Judiciário. Segundo Márcia, mesmo apresentando todas as documentações, os pedidos são indeferidos. É ela que acompanha o caso dos irmãos de dona Alda. Ela ingressou com o processo em março de 2018. Em junho do mesmo ano o pedido foi indeferido. Ela entrou com agravo e, maio deste ano, recebeu novo indeferimento da liminar.

- É uma família que não tem condições e uma luta que tenho faz mais de um ano. Um deles faleceu no ano passado. E quando um juiz indefere uma liminar baseada em laudos médicos, sendo que somente eles têm competência para avaliar e apontar uma recomendação, não tem o que discutir. Se há dúvidas, que nomeiem um outro perito. Tratam-se pessoas que não caminham, que nem têm condições de tomar um táxi e arcar com essas despesas. Sabemos que a Constituição prevê que se preze pela coletividade, mas a Constituição também diz que saúde é um direito de todos - salienta.

Foto: Renan Mattos (Diário) 

DEFENSORIA PÚBLICA AUXILIA NO ENCAMINHAMENTO

Em 2018, foram ajuizadas quatro ações de home care pela Defensoria Pública Estadual (DPE), na sede de Santa Maria. Alguns atendimentos demandaram planos de saúde ou o próprio Estado. Em geral, quem chega à DPE são pessoas que carecem de quaisquer planos, conforme informou a defensora pública Ana Carina Teixeira Dal Ponte, que atua na área da saúde. A propósito, foi ela quem ingressou como processo para que os filhos de Costa tivessem o serviço.

Conforme Ana Carina, tratam-se de ajuizamentos complexos e de muita responsabilidade, pois geram um custo elevado.

- Pode ser em virtude de síndromes, doenças degenerativas, pós-interação, por precisarem de um cuidado técnico, que pode ser de sondagem, de oxímetro, de curativo, quando a pessoa é acamada e tem limitações que as impedem de sair de casa. Às vezes, não há leitos hospitalares disponíveis, e a pessoa precisa dar alta, mas permanecer com cuidados especializados- explica a defensora.

Para o encaminhamento jurídico da documentação, a DPE baseia-se primeiramente no laudo médico. Porém, há casos em que é feito um estudo social antes mesmo da decisão liminar.

- São duas frentes: o laudo profissional, com critério técnico, e a análise da capacidade financeira da pessoa. Há casos, em que tramitam ações de alto custo e, aí, são da Defensoria Pública Federal, pois demandam recurso da União. No âmbito municipal, se conseguem consultas e alguns materiais, mas serviços domiciliares não são fornecidos. Tentamos também por via administrativa extrajudicial, por convênios com as universidades, mas, na maioria das vezes, é preciso judicializar e recorrer ao Estado - acrescenta Ana Carina.

A prefeitura de Santa Maria esclarece, por meio da Secretaria de Saúde, que não disponibiliza o serviço de home care. Porém, há uma parceria entre Estado e município que disponibiliza materiais usados pelos profissionais na realização das visitas e medicamentos. Somente em março deste ano, foram 186 atendimentos domiciliares.

Foto: Renan Mattos (Diário) 

Defensoria Pública Estadual

  • Onde - Alameda Montevidéu, 308. De Segunda a sexta-feira das 9h ao meio-dia e das 13h30min às 18h
  • Informações - (55) 3218-1032

MINISTÉRIO PÚBLICO FISCALIZA PROCESSOS
Cabe à 2ª Promotoria de Justiça Cível de Santa Maria atuar como fiscal nos processos que envolvem home care. Segundo a promotora Giane Saad, em 2019, passaram pela promotoria cerca de 15 processo requerendo o serviço:

- A promotoria de Justiça tem o cuidado de diligenciar a o estudo social da parte visando adequar os pedidos às possibilidades reais do núcleo familiar do paciente. O papel do MP é assegurar o equilíbrio entre o direito fundamental à máxima proteção da saúde, com a tutela do patrimônio público para que o ônus ao erário não seja maior que o necessário, em análise minuciosa das provas - esclarece Giane.

O deferimento dos processos é geralmente viabilizado pela 1ª Vara Cível Especializada em Fazenda Pública.

DIFICULDADE ATÉ NO REPASSE DE FRALDAS
Ambas famílias mostradas nesta reportagem lamentaram a dificuldade em conseguir as fraldas que estavam sendo viabilizadas pela 4ª Coordenadoria Regional de Saúde (4ª CRS).

Na família de dona Alda, as duas irmãs gastam cerca de R$ 600 por mês, quando o material não é obtido gratuitamente. Os filhos de Costa, R$ cerca de R$ 400.

Ao Diário, a coordenadoria reconheceu que o governo estadual estava em atraso e informou que, gradualmente, está atualizando os repasses de fraldas desde a última quarta-feira. Porém, enfatizou que é há um acordo no qual, o município também pode fornecer o material.

A prefeitura, contudo, alegou que até 2018, o Estado repassava valores maiores para a compra do material, em alguns meses, ultrapassando R$ 100 mil. Desde janeiro, o Estado expediu uma portaria reduzindo esses repasses e incorrendo em atrasos na distribuição.

Em maio, o repasse referente a março foi de R$ 7.497. Em junho, ainda não foi repassado valor algum.

A Superintendência de Comunicação também informou que o Setor de Gratuidade da prefeitura tem 1, 2 mil pessoas cadastradas para receber fraldas geriátricas e infantis, porém, a verba repassada é suficiente para atender apenas de 50 a 80 pessoas por mês. Cada paciente tem uma necessidade diferente em relação à quantidade do material, mas recebe 60, 90, 120 ou 150 unidades mensalmente.

Em relação ao acordo que a 4ª CRS mencionou, de dividir essa responsabilidade com o município, o Executivo informou que não existe nada comunicado nem oficializado entre o Estado e a Prefeitura de Santa Maria.



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