Justiça em perspectiva: entre o devido processo e o arbítrio

As decisões não são apenas respostas a casos concretos. Elas moldam o espírito de uma época, delimitam os contornos do aceitável e expõem – por ação ou omissão – os traços profundos do sistema de justiça. Nesta última semana, episódios marcantes escancararam não só falhas e abusos, mas também raros gestos de lucidez técnica. Ao analisar o que foi decidido, importa menos o aplauso fácil e mais o discernimento: o Direito, afinal, é tanto bússola quanto espelho.


+ Receba as principais notícias de Santa Maria e região no seu WhatsApp


Prisão ilegal de 15 dias dura mais de dois meses
No dia 23 de maio, um homem condenado a 15 dias de detenção permaneceu preso por mais de dois meses, até ser libertado por decisão do plantão judiciário do Rio. O episódio, brutal em sua banalidade, não é uma exceção estatística. É sintoma. Quando o Estado se torna incapaz de controlar a própria mão punitiva, já não estamos mais diante de uma Justiça que erra, mas de uma engrenagem que consome – sem saber por quê.


STJ anula busca sem autorização formal: o domicílio ainda resiste 
Em 21 de maio, o STJ anulou uma busca domiciliar realizada por policiais militares sem mandado judicial e sem registro da suposta autorização do morador. A decisão, correta, reafirma algo básico que segue sendo ignorado: a casa ainda é (ou deveria ser) território inviolável. O “combate” ao crime não autoriza atalhos processuais. E, se há urgência, que a legitimação decorra do processo – não da força bruta.


Supremo adia tese sobre uso de celular encontrado no local do crime
Também em 21 de maio, o STF adiou a fixação de tese sobre a licitude de provas extraídas de celulares encontrados em cenas de crime sem autorização judicial. O que está em jogo não é apenas um ponto técnico: é o modelo de justiça que queremos sustentar. O uso da tecnologia investigativa precisa de freios. Não basta encontrar um eventual meio de prova – é preciso que ela seja produzida sob a guarda da Constituição.


Prisão preventiva revogada por ser mais grave que a pena 
No dia 22, um juiz de São Vicente (SP) revogou a prisão preventiva de um acusado de tráfico de drogas ao reconhecer que a pena provável seria inferior ao tempo já cumprido em cautelar. Essa decisão deveria representar a regra. Mas, em um país onde se prende “para garantir a ordem”, lembrar que a pena tem limites virou exceção honrosa. O Direito Penal precisa de coragem. Coragem para conter o ímpeto de punir antes de julgar.


Ronnie Lessa condenado por duplo homicídio
No mesmo 22 de maio, o ex-policial militar Ronnie Lessa foi condenado a 90 anos por dois homicídios cometidos em 2014. É imprescindível que agentes estatais, quando se tornam algozes, recebam resposta proporcional. Mas que isso não nos seduza ao excesso. A justiça que se firma pela técnica vale mais do que a que se agarra à vingança.


TJ-SP absolve por injúria racial com base no contexto
Também no dia 22, o TJ-SP absolveu um réu acusado de injúria racial ao reconhecer que a fala ocorreu no contexto tenso de uma briga entre vizinhos, sem dolo específico. Não se trata de relativizar ofensas ou preconceitos, mas de lembrar que o Direito Penal exige mais que indignação. Exige rigor probatório, análise de dolo e leitura contextual. Sem isso, vira retórica punitiva disfarçada de Justiça. Comprovando-se a especificidade dolosa, aplica-se a lei.


Justiça exige mais que intenção: exige método
Entre decisões que corrigem distorções e outras que expõem as vísceras do sistema, o que se evidencia é a urgência de manter a técnica como horizonte. Como advogado criminalista e professor de processo penal, afirmo sem hesitação: o Direito que não resiste ao clamor popular, ao automatismo repressivo ou à lógica de eficiência descompromissada das garantias não merece o nome de Justiça. Garantir direitos não é obstáculo – é a única estrada legítima.

Carregando matéria

Conteúdo exclusivo!

Somente assinantes podem visualizar este conteúdo

clique aqui para verificar os planos disponíveis

Já sou assinante

clique aqui para efetuar o login

POR

Guilherme Pitaluga

Sobre a advocacia criminal artesanal Anterior

Sobre a advocacia criminal artesanal

Justiça e responsabilidade: o fio que não pode ser rompido Próximo

Justiça e responsabilidade: o fio que não pode ser rompido