A tecnologia chegou ao processo penal com força. Inteligência artificial, big data, cruzamentos automatizados, vigilância digital. Tudo parece avançar em nome da eficiência. Mas nem tudo que promete celeridade preserva a integridade do procedimento. A digitalização do sistema penal pode ser instrumento de aprimoramento, mas também de ocultação do arbítrio sob camadas de suposta neutralidade. O desafio é claro: como inovar sem renunciar ao devido processo legal?
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Justiça algorítmica: quando a opacidade veste a toga
A promessa de decisões mais racionais por meio de sistemas automatizados esconde riscos profundos. Sem transparência, governança ou controle externo, algoritmos não eliminam o erro, apenas o tornam invisível. A toga digitalizada pode reforçar padrões discriminatórios e decisões automatizadas sob a aparência de neutralidade.
Cadeia de custódia digital: técnica sem ritual não garante prova
Se a prova digital não for corretamente extraída, preservada e documentada, perde seu valor. O processo penal não pode operar com fé nos sistemas. E tampouco se sustenta na fé cega em quem os opera. O que protege o acusado não é a origem da tecnologia, mas a rastreabilidade e a possibilidade de contraditório efetivo. Sem isso, o laudo não passa de dogma.
Vigilância sem freio: a expansão silenciosa do controle
A expansão de tecnologias de monitoramento (por geolocalização, reconhecimento facial, comportamento online etc.) transfere ao Estado poderes que escapam à tradição do processo penal acusatório. O risco está no uso preventivo de dados, sem o devido controle judicial, para construir narrativas acusatórias antecipadas. A vigilância sem freio é sempre regressiva.
Inteligência artificial no processo penal: ferramenta ou filtro ideológico?
Sistemas de IA são criados por pessoas, treinados com dados enviesados e utilizados, muitas vezes, sem auditoria. Se a decisão judicial se apoia em modelos de risco, perfis comportamentais e predições, estamos diante de um novo tipo de seletividade: mais técnica, mais opaca, igualmente (ou mais) perigosa.
Audiência remota: comodidade não pode suprimir presença
A virtualização do processo parece ser um caminho sem volta, mas a defesa penal é, antes de tudo, presença. Uma audiência à distância fragiliza a escuta, afeta a dinâmica do contraditório e impede o pleno exercício da oralidade. Comodidade institucional não pode(ria) prevalecer sobre as garantias do réu.
Defesa penal no mundo digital: o artesão aprende a lidar com fios
Advogar no século XXI exige compreender perícia digital, metadados, registros de acesso, cadeias de login, vulnerabilidades técnicas e os limites das ferramentas tecnológicas. A técnica da defesa se reinventa: sem abandonar o rigor jurídico, incorpora novas linguagens para continuar fazendo frente ao poder.
Limites são fundamentos, não obstáculos
Não se trata de recusar o avanço, mas de exigir que ele caminhe sob vigilância constitucional. A tecnologia pode ser ferramenta. Mas sem controle, ela vira um meio silencioso de aprofundar assimetrias e ampliar o alcance do poder punitivo. Os limites ao Estado, especialmente em matéria penal, não atrasam a justiça. São eles que a tornam possível.