O crime, quando acontece, já nasce cercado de histórias. Há a da vítima, a do acusado, a dos que viram, a dos que ouviram dizer. Quando o Estado intervém, recolhe fragmentos e tenta costurá-los. Mas já não são os fatos “puros”: são relatos, lembranças, impressões. O processo penal não começa no papel; começa na disputa silenciosa entre versões. E, quando chega aos autos, essa disputa já carrega a marca de quem contou primeiro, de quem teve mais voz, de quem pôde escolher as palavras.
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A inevitabilidade de narrar
Não existe prova nua. Toda prova é vestida de contexto, apresentada com uma entonação, posicionada em certo lugar na ordem dos fatos. Uma mesma fotografia pode acusar ou absolver, dependendo de como é mostrada. O inquérito, a denúncia, a resposta, as alegações finais – todos são capítulos de um enredo construído para convencer. Narrar é inevitável, porque comunicar é organizar os acontecimentos em sequência. A pergunta que resta é: com que fidelidade?
O processo como palco de versões
Audiências não são apenas coleta de informação: são momentos de representação processual. O que se pergunta, o que se cala, o tom, a ênfase, a escolha de chamar uma testemunha antes ou depois de outra – tudo compõe a dramaturgia da causa. No júri, isso se revela de forma explícita, mas, mesmo no rito mais formal, a construção narrativa está sempre presente. É ali que se percebe que não julgamos fatos crus, mas interpretações sobre eles.
Os riscos do “tudo é versão”
Há um perigo real em reconhecer o caráter narrativo do processo: o relativismo absoluto. Se tudo é apenas versão, a noção de verdade processual se dissolve. Passamos a premiar a história mais sedutora – e não a mais fiel aos elementos de prova. É um terreno fértil para injustiças: o réu pode ser condenado não pelo que fez, mas porque a acusação soube contar melhor. Aqui, a técnica e a ética se tornam trincheiras contra a tentação da retórica pura.
O desequilíbrio do poder narrativo
No duelo de histórias, o Estado larga na frente. Dispõe de aparato policial, pericial, informacional. A defesa, por vezes, corre atrás de um tempo que não volta. Uma prova mal colhida nas primeiras horas dificilmente se recupera. Um depoimento viciado contamina todo o processo. Por isso, garantias como o contraditório e a ampla defesa não são formalidades: são freios que equilibram vozes num espaço em que a narrativa mais alta tende a se impor.
Entre emoção e razão
A narrativa não é só lógica; é também emoção. Jurados, juízes e até tribunais superiores são compostos por pessoas – e pessoas sentem antes de raciocinar. Uma história bem contada desperta empatia ou repulsa, molda a percepção do que é plausível. A defesa precisa saber lidar com isso: não basta ter razão, é preciso fazer a razão ser sentida. A arte está em unir coerência argumentativa com impacto humano – sem trair a prova.
A técnica como bússola
A defesa não pode se deixar arrastar pelo improviso narrativo da acusação. A técnica jurídica é a bússola que orienta a construção da própria história – uma história que não se sustenta em invencionices, mas em prova analisada, garantias constitucionais respeitadas, lógica argumentativa sólida. A boa narrativa defensiva é aquela que, mesmo bela, não se afasta da verdade possível. Porque, no fim, é essa verdade que a defesa está ali para servir.
Narrar é inevitável; manipular é escolha
O processo penal não é um espelho perfeito da realidade, mas também não é um romance de livre invenção. Ele vive dessa tensão: construir um relato fiel o bastante para merecer o nome de justiça. Cabe a quem acusa, a quem defende e a quem julga o compromisso ético de não transformar a narrativa em arma de manipulação. Sem isso, o que teremos não é justiça, mas simulacro – um teatro onde, invariavelmente, alguém paga com a própria vida por uma história mal contada.