tecnologia

Não contabilizamos sucesso - muito menos felicidade - a partir de visualizações, curtidas ou compartilhamentos


Já tem alguns meses que não passo por aqui, sobretudo em meio à pandemia. Isso porque, simples e, naturalmente, tal e qual - tenho certeza - significativa parte das leitoras, não dou conta de tudo. Vocês devem ter acompanhado notícias como a pesquisa, dita inédita da Datafolha, que revela que afazeres domésticos dificultam o home office para 64,5% das mulheres. De acordo com a pesquisa, as que passaram a trabalhar no regime de home office também passaram a acumular a maior parte dos cuidados com a casa. Em algumas situações, não tenho dúvidas, a centralização pode ser o motivo. A carga mental e, muitas vezes, a expectativa de conseguirmos carregar o mundo nas costas nos acompanha. Por outro lado, sabemos, o mais expressivo, no índice, é a sobrecarga não escolhida, a inevitável, pela condição solitária de gestionar um lar, com tudo aquilo que ele congrega, do sustento às necessidades, e de todos momentos de uma vida compartilhada, doces ou não.

De acordo com outra pesquisa, que levou o título "Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia", 50% passou a responsabilizar-se pelos cuidados de outra pessoa. Entre as mulheres negras, o percentual é maior. Como não poderia deixar de ser, até pela minha profissão e projetos, eu sou uma defensora nata das tecnologias educacionais e corporativas. E, sem dúvida, vejo o home office como uma oportunidade e, em alguns casos, como o meu, que tenho um filho no grupo de risco, uma verdadeira bênção. Mas, como tudo na vida, é preciso que (re)conheçamos a necessidade de equilíbrio. Não romantizemos o home office é o que estou tentando sugerir.

O Covid-19 acelerou inovações necessárias, inclusive comportamentais, o que é bom, sobretudo quando o assunto é tecnologia. Tivemos a vitória de quebrar inúmeros paradigmas. Mas, a verdade, é que o vírus também escancarou muitos problemas históricos. Todos sabidos, muito embora alguns aceitos por muitos, refutados por outros tantos. 70 milhões de brasileiros têm acesso precário à internet e enquanto prevemos robôs, carros autônomos e todo mais, a desigualdade digital é uma questão, um indicador, uma verdade. Somos parte de uma revolução, por certo, mas como necessidade fundamental, na pirâmide de necessidades de incontáveis e invisíveis, não está o WiFi, a bateria e, nem, por conseguinte, o dispositivo móvel. Para os diferentes, desiguais e desconectados, creio que avaliaria Canclini, está pura e simplesmente conseguir o auxílio emergencial.

E, sim, existe uma face da pandemia que só aquelas mulheres referidas pelas pesquisas (como se precisasse disso) enfrentam. O coronavírus tem afligido homens e mulheres de maneira diferente. Embora a doença em si pareça causar um pouco mais de complicações no sexo masculino, suas consequências para a sociedade e a quarentena afetaram sobremaneira o bem-estar da ala feminina. E é exatamente esse o tema do podcast Detetives da SAÚDE, que recomendo aqui.

Mas, passado esse "contexto", se chegou até aqui deve estar se perguntando por qual motivo isso e tanto interessa numa coluna de tecnologia? Interessa porque parece que seguimos a não aproveitar as chances que temos, enquanto sociedade e, talvez, como humanidade. A pandemia, como eu disse, acelerou mudanças necessárias. Mas também escancarou carências.

Um aluno me disse nessa semana que nosso futuro é um problema porque esquecemos de viver - e crescer de fato - no presente e que, ao mesmo tempo, ignoramos os aprendizados do passado. É isso, ele tem razão!

Ficamos sempre crendo num futuro promissor, aguardando a próxima revolução, sem perceber o caminho que as anteriores abriram para o hoje. As redes sociais virtuais, por exemplo: espero não ter sido a única que percebeu que o fato é que elas fizeram surgir poucos criadores de conteúdo de verdade (ou, ao menos, relevantes). Nós temos, na realidade, como também ouvi recentemente, muito caçadores de aplausos. E, sincera e honestamente, que saco seus e-mails incontáveis!

Dos criadores de "essa reunião deveria ter sido um e-mail", passamos a vivenciar a rotina de "essa webconferência poderia ter sido uma mensagem no WhatsApp". Qualquer um produz - e até vende - conteúdo. Óbvio que são fantásticas as possibilidades e a criatividade envolta no processo de encontrar formas de geração de renda. Mas frente a superficialidade e liquidez que já enfrentávamos antes da pandemia, mais do que nunca precisamos dar um basta no irrelevante.

Se tem perfil no Instagram, já percebeu que essa quarentena sem fim provocou a explosão das lives, transmissões e todo mais. Isso, definitivamente, cansa - se sem propósito ou foco. Dependendo do horário, todos querem a nossa atenção. E eu, preciso dizer, sinto muitíssimo pelos profissionais da Comunicação que estão fazendo mais do mesmo ou pelos profissionais que não são da área se aventurando a fazer ações no ambiente digital sem buscar conhecimento e informação para fazê-lo com qualidade.

É preciso que percebamos que todo exagero é desgastante. A oferta sem limites pode reforçar sentimentos de ansiedade e angústia - tudo que não precisamos, pelo menos não mais do que já temos, agora. A verdade, talvez dura, é que boas intenções não excluem a ideia de que há muitas lives e similares que simplesmente não deveriam existir. Já pensaram naquelas pessoas, sobrecarregas (mas público-alvo de seus produtos) sendo parte dessa enxurrada? Não serão fiéis, pegarão aversão.

Todo profissional de Comunicação e Tecnologia que se preze precisa ter como premissa básica que visualização não implica sucesso. Certa vez fui a um evento em que uma agência de publicidade apresentava cases, todos sustentados em "views". O motivo da campanha destacada era a venda de seguros de vida a jovens, um público comumente não preocupado com isso. Slides lindos, falas bacaninhas, cheias de frases de efeito, a maioria delas com expressões em inglês, norteavam a exposição e, claro, os aplausos, principalmente pelo fato do cliente deles ser um banco famoso. Depois de uma hora e meia ouvindo sobre "views", eu levantei a mão e perguntei o que realmente interessava (por mais que me achassem "azeda"): - Quantos seguros foram vendidos?

Os responsáveis pela campanha que, fundamentalmente, tinha esse objetivo não souberam me responder. Só acho que não podemos esquecer o básico nos encantando com a perfumaria. Eu penso que entendendo que escutamos, falamos, vemos, ouvimos e até sentimos, não como outrora, mas o tempo todo, junto ou frente a um novo mundo, onde dados, informação e gestão do conhecimento, a partir das mais diversas plataformas tecnológicas, revolucionaram e seguem a revolucionar a nossa forma de pensar e fazer, notamos mudanças significativas que impactam uma diversidade de contextos organizacionais. Mas as regras que conhecemos antes não podem simplesmente serem aplicadas no contexto vivenciado. E, quem não enxerga isso, não é profissional, é amador.

Foquemos em conhecer quem desejamos alcançar. Comunicação e tecnologia só são efetivas se cumprem seus objetivos. Do contrário, não houve interação. Antes do Covid-19 já era possível perceber que o empreendedorismo seria a nova religião do homem moderno. Incrível se assim o fosse em prol do desenvolvimento. Os "Evangelhos" passaram a ser, por exemplo, os infoprodutos de como ganhar um milhão em tempo x; como crescer com o networking em x passos e; como tornar-se um comunicador assertivo num curso de x vídeos etc. Os ministrantes (influencers?), na maior parte das vezes, nunca ganharam o dito milhão; seu networking era raso e não tinham experiências de comunicação nos negócios verdadeiramente.

Agora, os empreendedores de palco dão lugar aos influencers da pandemia. A explosão das transmissões ao vivo não tem precedente. Em abril, segundo dados do YouTube obtidos pela revista EXAME, as buscas por conteúdo ao vivo já crescia 4.900% no Brasil na quarentena. O fenômeno foi e é mundial. Fantástico, conforme a consultoria americana Tubular Labs, especializada no segmento de vídeos na internet. Na época, eles indicaram que houve um crescimento de 19% nas transmissões ao vivo pelo YouTube no fim de março - média de quase 3,5 bilhões de minutos de conteúdo por dia. "Há um sentimento de comunidade que as pessoas encontram nos vídeos neste período de distanciamento social. Isso elevou os vídeos ao vivo a um novo patamar", dizia Amy Singer, diretora do YouTube para a América Latina e o Canadá e maior autoridade da empresa na região. Concordo, como mera mortal, claro, em gênero, número e grau com ela. Só que esses grandes nomes prenunciavam algo: "o que impulsiona o formato é a espontaneidade".

E o que temos visto agora? Sejamos sinceros! Temos visto justamente a perda disso. Da naturalidade!

Antes de tudo isso, o tempo já era o artigo mais cobiçado. Ele escapava por entre nossos dedos. A geração que hoje tem entre 30 e 40 anos e, agora, também os de 20 e poucos, representava os seres que nunca tinham tempo para nada. Protagonistas de um isolamento que era invisível, já estavam em casa, produzindo sem parar, indo para a cama a noite pensando na lista de coisas infinitas que não fez no dia e que ficou para o dia seguinte. Tudo na certeza da impossibilidade de ter final de semana e de, ironicamente, sair de casa. Agora, o universo nos convida a ressignificar o tempo. Mas, ao que tudo indica, estamos novamente desperdiçando a chance. O quê estamos fazendo com ele? Vendo os posts sem enxergá-los; curtindo sem saber do que se trata e; compartilhando o que não temos.

Não se trata do mundo ser uma live. Mas do conteúdo que escolhemos absorver e repercutir. Sobretudo, de quem queremos que nos influencie e de quem queremos influenciar. Tecnologia é meio, não fim. Ainda não entendemos isso. E precisamos, acreditem, saber disso para sermos felizes.

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