Enviado para discussão no Senado, o Projeto de Lei 3262 de 2019, altera o código penal para permitir que a educação de alunos possa ser feita em casa, sem configurar como abandono escolar. O texto, que é uma das prioridades do governo de Bolsonaro (PL), já foi aprovado na Câmara dos Deputados no último mês, e torna a educação em casa uma alternativa de livre escolha e responsabilidade dos pais ou responsáveis legais.
Quem defende a iniciativa diz que o ensino domiciliar permite maior acompanhamento da família quanto a educação das crianças e adolescentes. Já quem critica, teme a falta de socialização dos alunos, a lacuna na aprendizagem e a precarização do trabalho docente. Se aprovado, sua aplicação em Santa Maria demandaria discussão entre diversos âmbitos e profissionais da educação, para a construção de um modelo que não prejudique professores e alunos.
O projeto do Homeschooling
O modelo se popularizou com o termo em inglês homeschooling (que significa ensino em casa), como é chamado nos Estados Unidos, país que serviu de modelo à iniciativa defendida por Bolsonaro. No projeto de lei brasileiro, as principais exigências para permissão desta forma de ensino são: a comprovação de escolaridade de nível superior do responsável; a matrícula de professor e aluno na mesma instituição e; a prestação de relatórios de avaliação à escola a cada trimestre.
O texto brasileiro não especifica que o ensino fique restrito apenas àqueles que possuam alguma limitação ou recomendação de saúde. Desta forma, qualquer responsável que optar por retirar seu filho da escola, o pode fazer.
Para a doutora em Educação e professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Dóris Pires Vargas Bolzan, a forma com que o Projeto de Lei foi escrito, deixa uma lacuna para beneficiar pais que querem aplicar os próprios métodos de ensino aos filhos, sejam por questões pessoais, religiosas ou por insatisfação com o conteúdo apresentado:
— Eu vejo que não há, ainda, uma clareza de como nós vamos operacionalizar uma proposta desta natureza que pudesse beneficiar quem de fato precisaria estudar em casa, e não privilegiar aqueles que não querem ir para a escola — afirma a pedagoga.
Em alguns, dos mais de 60 países em que o ensino domiciliar já foi aprovado, o atendimento tem objetivo de favorecer o aluno, que por algum motivo, seja de saúde ou comportamental, não pode estar na escola. Esta regulamentação já ocorre em alguns países como os Estados Unidos, Dinamarca, Canadá, Inglaterra e França. Em contrapartida, há países que o proíbem, como Alemanha e Suécia.
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Em Santa Maria
Se aprovado em âmbito nacional, o ensino domiciliar ainda precisa ser debatido nos estados e municípios. Para começar a vigorar em Santa Maria, questões práticas ainda devem ser discutidas entre os órgãos de Educação da cidade. Conforme o presidente do Conselho Municipal de Educação e professor da rede municipal, Ronan Simioni, a falta de convívio entre os alunos é a principal preocupação dos educadores, uma vez que suas consequências já são observadas após o retorno presencial.
— O que nos preocupa muito nesse projeto é como garantir esse espaço de socialização, se o aluno está fechado no ambiente em casa, e em contato apenas com o núcleo familiar. A escola não é só transmissão de conhecimento formal, mas é sobretudo um espaço de socialização e de encontro entre os diferentes.
Com seis anos de atuação como professor da rede municipal, Ronan afirma ainda que na construção de uma possível regulamentação do homeschooling na cidade, o debate estaria voltado à garantia de um melhor cenário para professores e alunos, em que nenhum saia prejudicado:
— Essa discussão está ocorrendo fora dos espaços onde ela deveria ocorrer, que são nos cursos de formação de professores, nos fóruns de educação e nos seminários. Os especialistas devem ser ouvidos para esse assunto. Porque o profissional de hoje precisa ter capacidade de conversar com diferentes públicos, em diferentes contextos, e penso que o homeschooling não prepararia para isso, seria um grande atraso no cenário da educação e da sociedade como um todo — enfatiza.
No Rio Grande do Sul, um projeto de autoria do deputado Fábio Ostermann (Novo), chegou a ser votado na Assembleia Legislativa em agosto de 2021, mas não avançou. Na época, o ex-governador Eduardo Leite (PSDB) vetou o Projeto de Lei (PL) declarando-o como inconstitucional. Na votação, a maioria dos deputados gaúchos também foram contrários.
A precarização do social e dos professores
Para quem é contrário à regulamentação do ensino domiciliar, o principal argumento é que a iniciativa resume à escola apenas a apresentação de conteúdos, e a “descola” do espaço de socialização dos indivíduos e à função social de ensino de valores que só serão construídos por meio da convivência com outras pessoas.
— Com a pandemia ficou evidente que nós precisamos da escola, que as crianças precisam da escola. A escola é um espaço social e cultural onde as experiências éticas e políticas, do sentido das decisões que nós vamos tomar, são necessárias para que a gente possa se constituir um cidadão. Existem exigências no desenvolvimento que os pais não estão aptos a fazer — destaca a pedagoga Dóris Bolzan.
Ainda segundo Dóris, além da privação de convivência dos alunos, outros dois pontos centrais da discussão são a precarização do trabalho dos docentes, junto à desoneração do Estado de sua obrigação de educar os cidadãos. Quanto ao Estado, a pedagoga analisa que não fica claro no projeto de quem será a responsabilidade sobre o pagamento do ensino, bem como quanto aos direitos dos professores:
— O professor não é um empregado do aluno, e esta ideia vai levar a uma precarização do trabalho assustadora, porque este professor vai ficar submetido a algo que aquela instituição vai ofertar para atender a uma demanda específica. E quem me garante que eu vou ter o mesmo salário, um plano de carreira ou aposentadoria? Porque se tem a ideia de que como é apenas um aluno, o professor não estará tão cansado, e dependendo da área de conhecimento ele vai ter mais ou menos horas de trabalho.
Maior acompanhamento do ensino dos filhos
A pedagona Ana Cristina Souza Rangel, professora aposentada da UFRGS, participou da audiência pública em Porto Alegre, defendendo as questões pedagógicas do homeschooling para o Projeto de Lei gaúcho. Para ela, o principal ponto positivo deste método de ensino é a educação particular deste aluno, com a elaboração de métodos de aprendizagem e de avaliação conforme seus interesses e necessidades, o que não seria possível de ser aplicado em sala de aula com turmas grandes de alunos.
— Quem educa desta forma não está pensando só no agora, mas no futuro dos filhos. Em casa, os pais são modelos e os filhos aprendem pelo exemplo. Não se pode prejudicar quem tem condições de estudar em casa somente porque a escola pública é defeituosa. Muita coisa teria que mudar, o problema não é de agora, a educação precisa ser diferenciada, assim como a valorização dos professores.
A professora acompanha de perto casos de ensino em casa, e até de famílias que montam uma “rede homeschooler” para que os seus filhos possam conviver e praticar juntos atividades além das curriculares. Nestes casos, enquanto não existe a regulamentação, ao encerrar os estudos e completar 18 anos, os alunos precisam passar pela avaliação do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), para poderem acessar o ensino superior.
— É como se quem praticasse homeschooling fosse contra a escola, eu não sou contra a escola, eu defendo a escola. Passei toda a minha vida formando professores para atuarem nas escolas, mas o homeschooling é uma outra modalidade de ensino e que dá certo. Não existe pai abusador ou negligente fazendo homeschooling, porque é preciso se comprometer radicalmente com a educação dos filhos, e educar não é fácil, não é para qualquer pai, e nem queremos que seja — declara a pedagoga Ana Cristina.
Saiba as principais exigências previstas na PL para regulamentação do ensino domiciliar
Quanto ao professor, aluno e aos responsáveis:
Pais ou responsáveis precisam comprovar escolaridade de nível superior;Pais ou responsáveis devem apresentar certidões criminais da Justiça Federal e Estadual ou Distrital;Professor e aluno devem estar regularmente matriculados na mesma instituição de ensino;Envio de relatórios trimestrais de atividades pedagógicas realizadas;Envio de avaliações anuais de aprendizagem.
Quanto às instituições de ensino e aos responsáveis:
Manutenção de cadastro, pela instituição de ensino, dos estudantes em educação domiciliar nela matriculados;Conteúdo curricular deve cumprir os estudos previstos na Base Nacional Comum Curricular;O aluno deve realizar exames de avaliação da educação básica, sejam dos sistemas nacional, estadual ou municipal;As atividades devem estimular a formação integral do aluno;Pais ou responsáveis legais, devem garantir convivência familiar e comunitária do aluno.
Eduarda Costa, eduarda.costa@diariosm.com.br
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