Camas montadas no chão e aquele murmurinho característico da convivência indicam que famílias continuam no abrigo instalado no Centro Desportivo Municipal (CDM). O espaço, aos poucos, foi se transformando em lar provisório para quem não pode mais voltar para casa. Quartos e cozinhas foram improvisadas para receber dezenas de famílias que passaram pelo local. Das mais de 50 que procuraram o CDM no início do mês, restam 9 famílias - entre elas as de Daiane e Diego, Rochele e Sandra que não veem a hora de encontrar um lugar seguro - e permanente - para ficar.
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O sol que entrava pelas janelas do ginásio nesta quarta-feira (29) evidenciava não só boas novas em relação ao tempo em Santa Maria, mas também uma rotina que persiste há um mês. Sandra Macedo Oliveira, 63 anos, que chegou dia 30 de abril no abrigo, conta que a rotina começa cedo: “7h30min já está todo mundo de pé para o café”. Dona de casa por natureza, ela ocupa o tempo varrendo, brincando com as crianças e também no convívio com as outras famílias:
– Eu nunca tive problema com ninguém, me dou bem com todo mundo. E o tempo passa. Eu consigo passar os dias. Claro que não é fácil porque não estava acostumada com tanta gente. Por muito tempo foi só eu e meu marido.
Sandra morava com o marido no Balneário Passo do Verde e logo no início das chuvas precisou deixar o local. A água passou por cima da casa onde residia com o marido e, mais uma vez, levou tudo que tinham. Por isso, o abrigo foi a única alternativa do casal. Por conta do trabalho, o marido foi para a casa de familiares até que encontrem um novo lugar para ficar. Voltar não tem sido uma opção.
– Não quero mais voltar. É a quarta enchente que dá e eu perco minhas coisas – conta Sandra.
Horários para as refeições do dia e entretenimento sem hora marcada
O abrigo montado no CDM não se resume apenas a um lugar para dormir. No espaço, uma espécie de cozinha foi montada em um dos cantos do ginásio em que voluntários distribuem as refeições quatro vezes ao dia, com horário marcado: café da manhã às 07h30min; almoço a partir das 11h30; café da tarde por volta das 16h e jantar à noite. Banheiros também são disponibilizados para banhos e higiene pessoal.
– A gente foi bem acolhido, somos bem tratados aqui, não falta nada. Tudo que a gente pede eles nos ajudam – afirma Rochele Freitas Lima Lorenzo, que há 20 dias vive no abrigo.
Com 43 anos, é a primeira vez que Rochele precisou sair de casa por conta da chuva. Ela morava no Bairro Bela Vista e foi alertada pela Defesa Civil sobre o risco de desmoronamento. Por isso, optou por sair acompanhada do marido, dos cinco filhos e da neta. Para passar o tempo, ela conta que fica arrumando o quarto improvisado que montou do ginásio. Nele, separações na tentativa de simular um cômodo foram feitas com cones e fitas. Mesas escolares e cadeiras cumprem o papel de guarda-roupa. Apesar da tentativa de organizar um “cantinho", Rochele espera encontrar logo um lar permanente:
– A gente conhece as pessoas, vê as histórias. Mas não é a nossa casa. Queremos voltar o quanto antes para ter nossa rotina, nossas coisas e nossa vida. Aqui, as crianças ficam nervosas e choram e isso não é bom. Eu não desejo para ninguém o que eu passei.
Até a última semana de maio, 19 crianças ainda estavam no abrigo. Para elas, não falta entretenimento. O CDM, que tradicionalmente é palco de competições esportivas como futsal e voleibol, agora abre o espaço para jogos sem muitas regras definidas. Toques de bola, corrida de motocas e desenho são o passatempo das crianças. Das mais diferentes idades, é como se tivessem virado uma grande família. “Não se desgrudam, tem que ver”, relata um dos abrigados que acompanhava de perto a movimentação das crianças.
Em alguns momentos, a música também toma conta do ginásio. Na tarde da quarta-feira (29), a orquestra do Exército esteve no CDM e tocou clássicos da música gaúcha e da tradicional bandinha. Foi o suficiente para que adultos e crianças dançarem junto aos músicos.
– Quando a gente menos espera está chegando alguma coisa para nos alegrar um pouco – comenta Sandra, uma das mais animadas durante a orquestra.
A espera pelo novo lar
Na residência em que o casal Diego e Daiane de Souza moravam com os seis filhos, em Nova Santa Marta, não sobrou nada. Com a forte incidência da água e do vento, parte da estrutura acabou cedendo e o muro caiu: “se tu pisar na nossa casa, ela afunda”, resume Diego. Por isso, há cerca de uma semana, eles estão no CDM. No local, apesar da segurança e do amparo, os dias são acompanhados de angústias e incertezas.
– É difícil porque estávamos acostumados com a nossa casa, as crianças também. Minha pequeninha, de 1 ano, só pede para ir para casa, ou embora. Daí é complicado explicar para uma criança o que aconteceu. A gente só diz para ela que estamos fazendo uma casinha nova. Mas é difícil – conta Diego.
Assim que a família ficou desalojada, procurou o abrigo montado na Igreja Santa Catarina. No dia seguinte, foram encaminhados para o CDM. Daiane conta que foram bem acolhidos e têm ocupado os dias e aproveitado as férias que recebeu no trabalho como auxiliar de limpeza, para organizar a mudança. A família foi aprovada no Aluguel Social e agora procura uma casa disponível para locação. Para Daiane, os filhos e o marido, a expectativa é grande pela nova casa e rotina. Por enquanto, as crianças, assim como outras no abrigo, não têm ido à escola pela distância - já que estudam no Bairro Juscelino Kubitschek.
– Pensar que vamos para outro lugar com mais segurança nos deixa mais tranquilos. Já dá para descansar um pouco. Não 100%, mas nos dá uma expectativa melhor – afirma Daiane.
Rochele e Sandra também estão com contratos fechados a partir do Aluguel Social. A expectativa é que façam a mudança no fim de semana. Um recomeço para quem vive há semanas, a rotina fora de casa:
– Estou quase me mudando e é um recomeço. O que eu posso dizer é que tenho saúde, o que para mim já é uma grande coisa. Perder as coisas não tem muito o que eu possa fazer. Volta por cima… vou começar tudo de novo – conta Sandra.
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